sábado, 14 de janeiro de 2023

Muito Além do Mangá: Comentando Colaboração Horizontal de Navie e Carole Maurel

Colaboração Horizontal acabou de ser lançado pela Nemo, uma editora que eu gosto bastante, porque se preocupa em lançar mulheres em dar visibilidade a autoras e desenhistas, especialmente, as europeias.  Além disso, a editora publica materiais sobre questões relevantes, neste caso, a chamada colaboração horizontal.  O termo pejorativo, machista, é aplicado às mulheres francesas que se relacionaram intimamente com alemães que ocupavam a França durante a Segunda Guerra.  

Com o término do conflito, essas mulheres foram localizadas e expostas à humilhação público, tiveram seus cabelos raspados, algumas foram surradas, suas roupas foram rasgadas, houve as que tiveram suásticas pintadas na testa, ou mesmo marcadas à faca, em alguns casos tiveram que desfilar pelas ruas, não raro carregando os filhos que eram testemunho de sua traição.  Aliás, cortar os cabelos é uma forma de atacar um dos aspectos tidos como naturalmente femininos, não é uma escolha casual, é privar essa mulher dos encantos que ela usara para trair seus compatriotas.

Curiosamente, a França pós-guerra foi muito mais tolerante com os colaboracionistas homens, alguns deles membros das forças policiais que trabalhavam em conjunto com os nazistas.  Talvez, você nunca nem tenha ficado sabendo, porque nem todos os professores sabem disso, e pode não ter dado tempo de comentar em aula, mas parte da França era aliada da Alemanha, era fascista e governada pelo Marechal Pétain, a chamada República de Vichy.  A França que resistiu representava uma parte menor do país.  Foram os próprios franceses que entregaram os seus judeus, começando por aqueles que tinham origem estrangeira.  Há filme sobre isso, recomendo assistir Amor e Ódio (La Rafle).  

Esses homens, ofendidos pela "traição" de suas mulheres, porque as fêmeas são propriedade coletiva de todos os machos de uma nação, decidiram fazer o justiçamento com o apoio das mulheres que por terem elas mesmo resistido durante a ocupação, ou para passarem a imagem correta de indignação cívica, que poderia reafirmar a sua virtude, tomaram parte no espetáculo.  Há muitas fotos desses rituais de humilhação.

O fato é que da mesma forma que foram humilhadas, tratou-se de rapidamente esconder a tal colaboração horizontal, porque, afinal, a França é uma das vencedoras da guerra e precisava reafirmar discursivamente o seu caráter de resistência e horror ao nazismo.  Vocês então, já sabem como termina a nossa história, ou, pelo menos, as memórias da protagonista, Rose, a mulher que ousou amar um alemão e ser amada por ele.

Vou colocar a seguir o resumo da graphic novel na página tirado direto da página da editora francesa, a Delcout: "Colaboração Horizontal é a história de um amor proibido, de uma comunidade de mulheres unidas, do cotidiano de um prédio sob ocupação... Entre o heroísmo e a traição, há apenas um passo, muitas vezes perigoso. 1942, Paris, Passage de la Bonne Graine. Rose, para salvar sua amiga judia, Sarah, decide intervir junto ao oficial encarregado da investigação, Mark. Rose é casada com um prisioneiro de guerra, com quem tem um filho. No entanto, ela se apaixonará por esse alemão que lhe revelará a mulher que ela é. Este edifício é o santuário de mulheres heroicas e comuns, viúvas ou solteiras, judias ou ateias, escandalosas ou rabugentas."

Colaboração Horizontal, lançado em 2017 na França e em 2022 pela Nemo, não trata somente de Rose, nossa protagonista, ele conta a história de uma comunidade de mulheres.  Quando comecei a ler, e nem tinha visto esse resumo, tinha percebido exatamente isso.  Embora soubesse que o centro era o romance de Rose com algum alemão, as autoras primeiro nos apresentam o edifício, a vida em uma comunidade na qual os únicos homens são crianças, um gentil idoso cego, casado com a síndica, e o marido violento da amiga de Rose.

Quando começamos a ler Colaboração Horizontal, somos apresentados a um conjunto de tipos humanos.  A síndica que parece mesquinha e reprime sua filha, Simone, porque ela veste calças compridas e está mais interessada em cursar a universidade e estudar do que arranjar um marido, ela abre as cartas dos vizinhos e quer desocupar o porão do prédio, que está alugado para uma velha viúva, Henriette, que resiste a ideia.  Henriette diz criar gatos, mas o que a velha senhora que parece estar variando guarda no porão são pessoas cuja vida está por um fio.

Há também Joséphine, a bela do prédio, uma jovem solteira que faz faxina para Henriette durante o dia, mas que as vizinhas desconfiam que se prostitui à noite.  Simone é sua melhor amiga, para o desespero de sua mãe síndica.  Secretamente, a jovem Simone alimenta uma paixão por Joséphine.  As autoras se posicionam claramente sobre a profissão noturna de Joséphine, ela se prostitui, ela é mulher, sozinha e precisa de dinheiro, ela não queria estar nessa condição, ela queria uma vida "normal" e dedica um grande carinho ao pai de Simone, o único homem que parece não estar interessado em abusar dela.

Mas o que é uma mulher normal?  Judith, amiga de Rose, tem tudo o que uma mulher poderia desejar.  Ela se casou com um homem com uma profissão segura, ele é policial, ela tem uma casa, mas é humilhada por este homem todos os dias e torce para que a criança em seu ventre seja um menino, pois "eles têm todos os direitos".  Uma das questões discutidas em Colaboração Horizontal é os direitos civis das mulheres na França.  Simone quer o direito de voto, sua mãe defende que o importante é ter comida na mesa e um lar, enquanto chora por seu filho que está aprisionado em algum lugar.

O álbum não detalha, mas imagino que tanto o irmão de Simone, quando o marido e Rose, tenham sido capturados em Dunquerque, porque eles eram das tropas regulares.  Rose também é uma mulher normal, casou-se com um bom homem, tem uma casa e um filhinho, além disso, ela é enfermeira e admirada pelas vizinhas por ter uma profissão (*de mulher*).  Rose casou-se sem amor, não sei em quais circunstâncias, mas ela me lembrou a protagonista de Small Island da BBC, série baseada em livro e que é contemporânea a este quadrinho, a diferença é que a personagem de Ruth Wilson era uma moça das classes trabalhadoras e sem uma profissão mais ou menos respeitável e aceita como a de Rose.

Rose além de ser enfermeira decidiu ajudar a esconder uma vizinha judia e seu filhinho, para tanto, ela se aproximou de um jovem oficial alemão da inteligência, Mark.  O que começa como uma tentativa desesperada de salvar a vizinha, acaba virando um romance.  Sarah e o garotinho são salvos, Rose, no entanto, perde o seu coração e passa a se comportar de uma forma que os vizinhos acham estranha.  Mark é gentil, eles dividem sonhos, o sexo é muito bom também e as autoras não fazem julgamento moral a respeito dela, que começa a se arriscar demais.  Enquanto isso, o marido de Judith assedia Rose, a quem diz ter prometido proteger ao marido prisioneiro da moça.  Rejeitado, ele desconta na esposa.

O idílio amoroso de Rose, no entanto, não pode durar para sempre.  Os nazistas precisam se retirar em 1944 e ela e Mark não poderão ficar juntos.  Ele não quer deixá-la para trás e eu não entrarei em detalhes do que ele faz, ou do que ocorre, mas eu me senti comovida ao encontrar uma folha dobrada na última página do álbum, era a carta que Mark não conseguiu entregar para Rose.  A jovem fica para trás e está grávida.

Antes disso, em um dado momento, Mark fala de sua família e de como desenvolveu seu ódio pelos judeus.  Seu pai morreu na Primeira Guerra, sua mãe tornou-se militante contra a França e contra os judeus, que era culpados de tudo.  Vemos, rapidamente, as falas e sua mãe, a passagem pela escola, pela Juventude Hitlerista.  Mark não conhece nenhum judeu, mas odeia todos, Rose pondera que assim como qualquer grupo humano, há judeus diferentes, os bons, os maus, mas eles têm pressa, preferem se amar a discutir essas questões.  

Enquanto isso, as autoras mostram que a sororidade não domina a pequena comunidade do edifício. Ela pode vir de quem não se espera, a síndica machista, e pode faltar de gente em quem se confia, como Sarah, que deve sua vida à Rose, e Judith.  Aqui, cabe destacar que as mulheres também não são um bloco monolítico e que nos é ensinado desde sempre que a nossa fidelidade deve ser em primeiro lugar para os homens.  Tente deslocar isso para um contexto no qual as mulheres ocupam um lugar não somente subalterno, mas de dependência, pois sua cidadania não é completa.  A classe dos homens sempre se une, a das mulheres é ensinada a fazer o inverso.

Já me encaminhando para o final, dois destinos nesse graphic novel são tristes, o de Rose, claro, privada do seu amor e traída pelas mulheres que acredita amigas, e Joséphine.  O final da moça, que adoece e é acolhida por Rose, que guarda seu segredo, é bem triste, mas ilustrativo da sua solidão e da hipocrisia da sociedade na qual vivia.  Aliás, muitas prostitutas foram acusadas de colaboração horizontal, quando, na verdade, por vontade, ou necessidade, eram exploradas tanto por alemães, quando por franceses.  Até por conta disso e, também, como uma última forma de degradar e ofender, há quem defenda que todas as mulheres que se envolviam com alemães eram prostitutas, se não o fossem por ocupação, o eram por serem traidoras da pátria.

Concluindo, recomendo muito a leitura de Colaboração Horizontal. A arte de Carole Maurel é muito bonita, dinâmica, a quadrinização é precisa e garante uma perfeita compreensão da história.  Navie, a roteirista, é historiadora de formação e especializada em Fascismo, ou seja, ela estava colocando dentro da narrativa todos os seus conhecimentos sobre o período e o assunto.  Além disso, trata-se de um álbum conscientemente feminista e crítico, porque não passa a mão na cabeça e ninguém, ao mesmo tempo em que abraça o amor e nao se propõe a julgar suas personagens.  Gostaria que fosse mais longo, umas dez páginas, talvez.  Eu gostaria de saber o destino do bebê de Mark e Rose, voltando para a comparação com Small Island, lá, pelo menos, a criança nascida do caso entre a inglesa branca e o soldado jamaicano foi adotada por uma família que genuinamente a amou.

7 pessoas comentaram:

Não sei se você conhece, mas há um longa-metragem sobre esse tema chamado Suite Francesa. Não lembro bem a história, porém sei que gostei na época, apesar de achar o romance meio açucarado demais. De qualquer forma, o ator que faz o oficial nazista, Matthias Schoenaerts, nunca esteve tão lindo quanto nesse filme (sim, comentário bem fútil, mas precisava fazê-lo rs). Vou deixar o trailer aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=fW95OMgABVQ

E obrigado pela resenha. Comprarei o quadrinho.

Obrigada por comentar Luiz. E eu não conhecia esse filme, não. Vou dar uma olhada. Acho fundamental que essas questões sejam expostas e discutidas.

Pra quem não sabe... a famosa integrante do grupo ABBA... Annifrid nasceu na Noruega em 1945... filha de 1 sargento alemão e de 1 norueguesa. (o alemão tinha família na Alemanha)
Quando a guerra acabou... a pequena Frida, a mãe e a avó tiveram que se mudar pra Suécia.. porque eram vistas como traidoras da pátria. Em 1977... Frida, já famosa... conheceria o pai .. ela o visitou na RFA.

Os homens tiveram melhor tratamento após a libertação.. sim verdade.. inclusive alguns deles foram anistiados após a guerra.. exemplo... François Mitterrand... que foi comparsa de Pétain... ou Jean Marie Balestre (futuro chefão da Formula 1)... ele serviu nas SS francesas.
Quero recordar que o governo francês anistiou e recrutou alemães na "Légion" por causa da Indochina... https://fr.wikipedia.org/wiki/Allemands_de_la_L%C3%A9gion_%C3%A9trang%C3%A8re_fran%C3%A7aise_dans_la_guerre_d%27Indochine
Nem todos os nazistas eram "malvados".. segundo Paris...
Sim.. realmente as prostitutas foram exploradas pelos 2 lados... esse punitivismo contra elas foi revoltante. Quero citar 1 "madame" que escapou dessa punição rigorosa por colaboracionismo... Coco Chanel. A grande dama da moda foi até mesmo amante de 1 oficial nazista. A posição privilegiada dela evitou a prisão etc.



Quero também lembrar que na Batalha da França em 1940... as forças francesas converteram africanos das colônias em bucha de canhão contra os alemães.... o documentário redescobrindo a 2ª guerra mostrou esses pobres africanos...

Miterrand mudou de lado ainda no início da guerra e foi um dos organizadores da resistência francesa, por isso, ele não é contado como colaboracionista.

Eu acho que a criação do estado-fantoche de Vichy foi inspirado em "Manchukuo" (Pu Yi) e Eslováquia (Tiso)...
interessante a presença da "Eisernkreuz" sobre o coração... ficou bem desenhado.
voltando a questão do colaboracionismo.. os filhos de francesas com soldados alemães sofreram inúmeras perseguições.... "les fils de boches" (boche = termo pejorativo contra os alemães)...
Como se essas crianças tivessem culpa!
https://youtu.be/ImTNQr6eSlA
https://youtu.be/vAdZJQ5nCxA
https://youtu.be/V1P144F3XwY
https://youtu.be/Rs1dedBK7Ns

Fiz minha resenha agora. Mas nem de longe tão completa como a sua. :-)

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