Estreou esta semana a novela Amor Perfeito na rede Globo. Em condições normais, sendo uma novela de época, eu pararia para olhar. Não parei, estou assistindo três novelas no momento (Vai na Fé, Força de um Desejo e Bambolê) e simplesmente não cabe nos meus horários. Eu li, porém, as matérias antes da estreia da novela e algumas críticas feitas depois que Amor Perfeito entrou na grade. Enfim, a coautora, Duca Rachid, que escreveu uma das minhas novelas favoritas, Cordel Encantado, disse que iria colocar em cena um grupo normalmente esquecido, a elite negra que existia no Brasil dos anos 1930 e 1940. Não é classe média, é elite.
Ora, seu mocinho é negro e médico (Diogo Almeida), assim como são negros a dona da butique (Juliana Alves) e o promotor (Bukassa Kabengelle) da cidade fictícia mineira da trama. Não sei se existem outras personagens negras na trama para fora esses que citei, os frades, além do menino Marcelino (Levi Asaf), o filho perdido do médico e da mocinha (Camila Queiroz). Colocar negros bem posicionados em uma novela é algo importante e uma das críticas feitas em A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo, que analisa a representação dos negros nas telenovelas (*há o livro derivado da tese de doutorado do autor e o documentário*), assim como ele pontuava como os negros nas tramas normalmente são elementos isolados, sem família, conectados somente aos protagonistas brancos da trama.
Fato, no entanto, é que negros bem posicionados na vida não estavam livres de sofrer racismo, discriminação racial não é somente para os pobres, o racismo, assim como a misoginia, o antissemitismo, a homofobia, não estão condicionados ao econômico. E eis que a autora, mulher socialmente branca, solta o seguinte "A gente quer mostrar um Brasil como ele é, com os problemas todos, mas os personagens não estão lá para serem afetados pelo racismo, eles estão vivendo a vida deles.". Essas coisas me dão nervoso e já fazem com que o meu sensor vai-dar-merda comece a apitar. Será que a Globo não aprendeu nada com Nos Tempos do Imperador? Aparentemente, não.
Eis que estreou a novela e li o seguinte tuíte do jornalista Nilson Xavier "#AmorPerfeito é tipo a série #Bridgerton É de época, mas não se questiona a raça, todos convivem em harmonia. Uma realidade paralela, um metaverso." Eu não veria grande problema algum se a novela, assim como Cordel Encantado, estivesse em um universo paralelo no qual o racismo não existe, nunca houve escravidão no Brasil e os cursos de Administração foram fundados em nosso país antes dos anos 1950. Só que, diferentemente de Bridgerton, que se passa em um mundo que não é um nosso (*no qual um casamento real acabou com o racismo no mundo*) e eu consigo lidar com isso, ou Cordel Encantado, Amor Perfeito está no nosso Brasil mesmo.
E não adianta ser bonitinho, é negar a História do Brasil e fugir de discussões que deveriam ser feitas. Negar que o racismo existe, que a escravidão existe, vejam, não existiu, EXISTE, e ainda continua vitimando muito mais negros (82% dos resgatados) e mulheres, que isso tudo vai desaparecer. Uma novela pode oferecer diversão de qualidade, escapismo, e, ainda assim, ser socialmente consciente. Aliás, por tudo o que li, elogios à escolha de não falar de racismo e o link com Bridgerton, o que mais me deixou assustada foi o texto do UOL de autoria de Thiago Stivaletti (Na estreia, 'Amor Perfeito' acerta ao não sublinhar o racismo) e cito "É uma decisão acertada, após décadas em que o negro aparecia somente como vítima de racismo nas novelas, seja como escravizado em novelas de época ou vivendo situações de preconceito no presente. A representatividade passa pela afirmação de imagens positivas, não apenas ligadas a racismo e preconceito.". Acertada? Será que não é algo que se presta mais ao alívio da consciência de quem se beneficia do racismo estrutural do que daqueles que ainda hoje sofrem com ele?
O Brasil da disparada das células neonazistas e do recorde e libertação de pessoas em condições análogas à escravidão, porque o governo anterior sucateou os órgãos de controle e policiamento de trabalho análogo à escravidão, precisa de representações positivas dos negros que neguem o mundo no qual vivemos e, talvez, louvem o talento fora do comum, a força de vontade, o trabalho duro e o empreendedorismo. Qualquer um pode se dar bem nesse mundo, basta se esforçar. "Você está na m****? Desempregado ou em um trabalho precarizado? Já pensou em mudar o seu mindset?" E vou repetir (*e o farei de novo e de novo*), Bridgerton se passa em uma linha de tempo alternativa, não é nosso mundo, não precisa ter compromisso com a realidade, mas ao colocar Amor Perfeito no Brasil real, a novela não pode se eximir de discutir racismo e isso não significa colocar as personagens negras vivendo em função da discriminação que sofrem.
Aliás, Vai na Fé, novela contemporânea, vem acertando ao tratar o tema; as personagens negras tem sua vida, suas questões profissionais, amorosas, religiosas, mas o racismo continua lá como algo que não pode ser ignorado. De qualquer forma, segundo o diretor da trama, Amor Perfeito não fugirá de tocar no tema do racismo. Dada a empolgação da maioria da crítica especializada, eu não sei, não. E passo para o segundo ponto desse texto. Saiu o teaser-trailer do filme baseado em Perdida, livro da brasileira Carina Rissi. Segue o vídeo:
Não conhecia a série Perdida até ver o trailer, o que mais me saltou aos olhos foi a semelhança (*a cena da porta, em especial*) com Lost in Austen da ITV. A série britânica é de 2008, a primeira edição do livro da brasileira é de 2013. Assim como Amanda (Jemima Rooper), a protagonista de Perdida, Sofia (Giovanna Grigio, no filme) é uma jovem contemporânea que vai parar no Período da Regência na Inglaterra, que a rigor se estende de 1811 até 1820, mas em termos estéticos e de moda termina sendo estendido de 1795 até 1837 (*discuti isso em outro post*). A protagonista de Perdida vai parar em 1830 (*a data está no texto da UOL, que usei de referência*); Amanda entra no livro Orgulho & Preconceito, lançado em 1813, e bagunça tudo lá dentro.
Segundo já me informaram, apesar de eu acreditar olhando o trailer (*e é mostrada a capa de uma edição de Orgulho & Preconceito nele*) que a protagonista ia parar na Inglaterra, já me disseram que é Brasil (!!!), e no interior (!!!), que o fato do interesse romântico da mocinha ter sobrenome britânico é mero detalhe (!!!), e que, não há racismo, nem escravidão naquele mundo, mas que, aparentemente, não é assumido, assim como em Bridgerton, como um universo paralelo, ou Lost in Auten como um livro, ou que se trata de outra linha temporal. A autora foi criticada por isso, já me contaram, e eu achei uma matéria com ela do ano passado. A explicação para não tocar em escravidão e racismo é a seguinte: "Talvez você tenha percebido que eu ocultei um fato importante desse período da história. Em 1830, ainda havia escravos no Brasil (a escravidão terminou oficialmente em 13 de maio de 1888). [...] Além de hediondo, é muito vergonhoso."
Olha, Rui Barbosa também achava vergonhoso e hediondo e, para limpar a nossa história, mandou destruir documentos que, hoje, poderiam ajudar a mapear a linhagem familiar de muitas pessoas negras e embasar pedidos de indenização ao Estado, que foi conivente com o tráfico ilegal e a regularização de gente que entrou no Brasil após a sua proibição com a lei Feijó de 1831. Sim, a tia é historiadora e leva essas coisas de "vamos esquecer", "vamos apagar" muito a sério, porque, normalmente, quem é apagado e quem é esquecido tem cor, tem gênero, tem orientação sexual que não é a de quem detém o poder e, por isso, é bom que deles e delas nada se fale, ou, se falarem, que seja mais do mesmo, ou, na versão que está na moda, que se fale como se todos fossem felizes e integrados, são esses militantes chatos que tentam bagunçar nosso passado de unicórnios e nuvens de algodão doce.
Mas o texto do UOL explica o seguinte sobre a obra de Carina Rissi "Em seus romances, Carina costuma detalhar como são os olhos, cabelos e até alguns atributos físicos das heroínas, heróis e coadjuvantes. Mas nem sempre ela deixa claro qual a cor da pele dos personagens." É curioso que o que não é descrito fica subentendido. Há um princípio na literatura que é, não descreveu a cor das pessoas, ela é branca; não falou de orientação sexual, ela é hetero. Por isso, a controvérsia em torno de Hermione Granger. Há quem veja indícios nos livros de que a menina seria uma pessoa de cor (*porque branco não é cor, é o universal da humanidade*), mas escolheram uma menina branca para interpretá-la nos filmes e quando escalaram uma atriz negra para ser a personagem no teatro, gerou-se uma grita entre os fãs que se acreditam como puristas, mas que, na verdade, só são racistas mesmo e não se assumem, ou sabem que são.
J.K. Rowling nunca se pronunciou claramente (*e isso é comum, no caso dela*) sobre a cor de pele de Hermione, aliás, essa nebulosidade é meio que uma escusa para o que foi feito nas adaptações para o cinema. E, claro, vale a regra que eu citei, se não descreve a cor da pele, a pessoa é branca. Eu fiquei feliz quando lendo um conto em um livro Harlequin-like (NSFW/+18), a mocinha, que é haitiana, de repente é descrita e descubro que ela é uma mulher negra, ou, pelo menos, descrita de forma clara como com sangue africano. Já li montes desses livros e NUNCA me deparei com caso semelhante, não sem prévio anúncio de que um dos protagonistas, ou os dois, seria negro.
Enfim, assim como Rowling, Carina Rissi me saiu com uma desculpa sem pé ne cabeça para o caso "Nas adaptações é exatamente como eu idealizei a série: pessoas brancas e negras todas convivendo ali na vila. É que, muitas vezes, eu não coloquei uma descrição. Automaticamente, o racismo estrutural leva as pessoas a pensar que é uma pessoa branca se você não a descreve de outra maneira". E não colocou por qual motivo, minha senhora? Por que se omitiu em seus livros se o Brasil da sua série é uma democracia racial? No fim das contas, o hediondo, a vergonha, é somente a escravidão, ou a presença de pessoas não-brancas na trama? E, sim, o filme vai tentar corrigir isso, basta ver o trailer.
Uma amiga que leu os livros me passou uma informação curiosa, a melhor amiga da protagonista de Perdida é uma moça negra. Curiosamente, é assim em Lost in Austen, também. A "amiga" é aquela que fica para trás e não tem importância na história, é outra regra meio que subentendida nesse tipo de narrativa ficcional. Em Lost in Austen, porém, quando Amanda vem para a Londres do presente trazendo Mr. Darcy (Elliot Cowan) com ela, porque precisa mandar Elizabeth Bennet (Gemma Arterton) de volta para o livro. O mocinho se comporta de forma racista, porque, bem, ele é um homem do início do século XIX e não consegue não dizer certas coisas, ou olhar assustado para as pessoas no metrô. Já amiga de Amanda, Pirhana (Gugu Mbatha-Raw), se recusa a ir passear no livro, dai, vem um diálogo mais ou menos assim: "É rapidinho" "Não, Amanda!" "Você vai gostar." "Amanda, eu sou NEGRA.", ela diz o óbvio. "Ah, mas vem comigo." "Não, Amanda, eu não vou a nenhum lugar que não tenha papel higiênico e chocolate." Enfim, é o que temos de racismo em Lost in Austen e funciona muito bem e é uma série escapista, divertida e que não tem o objetivo de discutir questões sociais profundas.
Escrito tudo isso, não estou torcendo contra Amor Perfeito, ou Perdida, aliás, neste segundo caso, é muito importante ver o sucesso que Carina Carissi alcançou, porque, além do livro da viajante no tempo pela Disney, há dois outros livros dela sendo adaptados pela HBO, Procura-se um Marido e No Mundo da Luna. O que eu lamento é essa opção por não tocar em questões importantes, por apagá-las de forma proposital e ainda acreditar que está se prestando um bem para a sociedade.
De resto, acho uma delicinha esses mundos ficcionais nos quais o racismo não existe, a escravidão nunca existiu, mas as questões de gênero estão lá, com mulheres oprimidas e discriminadas das mais diferentes maneiras, além das questões de classe, claro. Como todas essas variantes (racismo-patriarcado-capitalismo) se entrelaçam, me parece curioso esquecerem de uma variante, esvaziando as discussões sobre direitos dos negros e estimulando um falso empoderamento, porque baseado em fantasias. Será que chegará o tempo em que a ficção irá representar as mulheres libertas em sociedades de séculos passados, ou relações igualitárias de classe? Um... Acho que não. E, sim, se Amor Perfeito, ou Perdida, estivessem em um Brasil alternativo e, não, supostamente, no nosso, tudo, ou quase tudo, estaria OK.
5 pessoas comentaram:
Eu quase não comento, mas esse é o tipo de post que mais gosto porque me faz ter uma reflexão sobre coisas que talvez eu não veria tão profundamente. Muito obrigada!
esse post foi sensacional. obrigada, de verdade. sou parda clara, e muitos me veem como branca; e meu irmão mais novo é negro, mestiço como eu. é impossível não notar que meu irmão sempre precisará se portar diferente de mim para sua própria segurança. e isso se passa NOS DIAS ATUAIS. me surpreende, portanto, obras que se passam num passado até distante ignorarem o racismo, que é latente até os dias atuais.
não há nada nesse texto q eu discorde de vc. obrigada pelo seu posicionamento, tão óbvio, mas que hj em dia é mais que necessário.
Carol, obrigada mesmo por comentar, porque esse tipo de depoimento é muito importante.
O Elísio Lopes Jr, homem negro, foi coautor da novela junto com a Duca Rachid e o Júlio Fischer
Amor e Revolução, isso só torna tudo ainda mais lamentável.
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