domingo, 28 de maio de 2023

Comentando A Pequena Sereia (Disney/2023): Revisitando o clássico que deu início à febre das princesas

Ontem, fui assistir o live action da Pequena Sereia com minha filha.  Tínhamos planejado o programa fazia meses e os problemas que enfrentamos neste mês não nos impediriam de ir.  No fim das contas, o filme foi bem melhor do que eu imaginava. E não estou falando das questões de representatividade, do fato de  Halle Bailey estar adorável como Ariel, mas que o filme se sustenta muito bem e é interessante boa parte do tempo.  Acredito que se alguém não assistiu ao desenho, poderia gostar do filme por ele mesmo sem conhecer qualquer referência salvo o conto original assim bem por cima.  Agora, como eu vi o desenho animado, e considero desnecessárias todas essas adaptações com pessoas de verdade, o original vai guiar a minha análise, negar isso seria ridículo.

Para quem não conhece a história da animação que fez renascer o interesse pelas princesas da Disney, Ariel (Halle Bailey) é uma sereiazinha de 16 anos que é fascinada pelo mundo da superfície.  Apesar de seu pai, o rei Tritão (Javier Bardem), haver proibido o contato entre sereias e humanos, Ariel sobe até a superfície e termina apaixonada por Eric (Jonah Hauer-King), um jovem príncipe.  O navio do rapaz naufraga em uma tempestade e Ariel o salva.  Eric ouve a voz da moça, mas não consegue ver o seu rosto.  Percebendo a mudança de comportamento da filha, o rei Tritão termina descobrindo que a menina foi até a superfície e se apaixonou por um humano.  Ele destrói a coleção de artefatos da superfície da garota e reitera as proibições de contato com os humanos.  

Ariel se revolta e termina sendo alvo fácil para sua tia, Úrsula (Melissa McCarthy), a bruxa do mar.  Banida para uma caverna, ela aguarda uma oportunidade para se vingar do rei dos oceanos.  Em troca da voz da moça, Ariel teria pernas e três dias para trocar um beijo de amor com o príncipe, se não conseguisse, ela iria perder sua liberdade e pertencer à Bruxa do Mar para sempre.  Ariel consegue reencontrar seu príncipe, mas ele, que estava procurando a moça que o salvara, não a reconhece.  ainda assim, os dois acabam se apaixonando, mas Úrsula decide atrapalhar a jovem e impedir que ela consiga o seu beijo de amor.

O live action acertou mais do que errou, eu diria.  Na minha escala de adaptações desnecessárias (*porém, lucrativas*) de animações para o cinema, o filme está mio que empatado com Aladdin, ou seja, está muito na frente de A Bela e a Fera, Cinderella, Rei Leão, o primeiro Malévola e Dumbo, que às vezes esqueço que existiu.  Os outros live actions, não vi, na verdade, até assisti a um pedaço de Peter Pan e Wendy e, bem, pelo pedaço, achei que não valeria ver por completo.  Colocar a menina andando de lá para cá em roupas de baixo e, não, no camisolão de dormir, como no desenho animado, me causou uma certa repulsa.  Não sei o que vai na cabeça de quem pensa que isso seria OK.

A proposta do live action da Pequena serei foi trazer o original para a tela, modificando algumas passagens e preenchendo lacunas.  Uma das mudanças significativas foi que Ariel não escreveu seu nome no contrato com a Bruxa do Mar, o acordo foi selado com sangue.  Até tropecei em uma matéria o Splash que comentava a opção do diretor por "corrigir" o original.  Se Ariel soubesse escrever, como na animação, ela poderia revelar quem era ao príncipe.  A opção do live action, quando após a sequência a música Beije a Moça (Kiss the Girl), a menina usa as estrelas para dizer seu nome ao príncipe. Ficou fofo e meio bobo, também, mas mais fofo que bobo.  😄

O filme aprofundou a relação entre o Rei Tritão e a vilã, Úrsula, mesmo que a razão do castigo da vilã não seja explicado. Segundo consta nesses livros paralelos da Disney, Úrsula é irmã e Tritão, mas não me perguntem como fica a irmã da Bruxa do Mar que aparece no segundo filme da Pequena Sereia, aliás, nem é função do filme explicar, ou o motivo pelo qual a vilã não é sereia, mas meio polvo.  Segundo consta nos livros, e eu só sei disso porque Júlia assiste o canal da Dear Maidy, Úrsula foi responsável pela morte da mãe da Ariel. 

O filme fala da morte da mãe da protagonista, diz que ocorreu quinze anos antes, mas não fala a idade de Ariel.  Na animação, ela tem 16 anos e as irmãs se reúnem para celebrar o seu aniversário.  Dentro da cultura norte-americana, ela seria uma debutante, pronta para ser apresentada à sociedade e para amar.  Tanto que seu pai não se aborrece ao suspeitar que ela está apaixonada, o problema é quando Sebastião, o caranguejo mordomo, acaba contando que o escolhido de Ariel é um humano.

Aliás, o filme é bem enfático em marcar a proibição que Tritão impôs às sereias de terem contato com humanos.  Eles foram responsáveis pela morte de sua rainha.  As irmãs de Ariel, uma delas, uma das que eram interpretadas por atrizes brancas e não me lembro qual, reclama que os humanos poluíam o mar com os detritos dos seus naufrágios, mas em nenhum momento é sugerido que Tritão é o responsável pelo aumento dos afundamentos.  Foi Úrsula?  Porque efetivamente há toda uma questão sobre o aumento do número de naufrágios, algo que é repetido várias vezes pela mãe de Eric.

E, sim, o príncipe tem uma mãe e esse acréscimo foi um dos pontos ruins do filme.  No original, nada era dito sobre a família de Eric.  Ele era órfão?  Provavelmente.  No filme, o reino do rapaz fica no Caribe, em uma pequena ilha e vi ecos de Enrolados na composição do castelo e mesmo nos uniformes dos guardas.  E ele foi encontrado em um naufrágio e adotado.  A rainha é interpretada por uma mulher negra, a atriz Noma Dumezweni.  A história da adoção em um filme que não parece ser color blind  tem como objetivo justificar um menino branco filho de pais negros.  O melhor seria escalarem um ator negro para o papel, aliás, eu torci para que o fizessem.

Enfim, as falas da rainha são quase sempre super protetoras, ela quer seu filho debaixo da sua saia.  E a história dos naufrágios, do mar perigoso, do fique quietinho por aqui, parecia uma reedição de Moana.  Nenhum dos diálogos dos dois eram necessários, a própria presença da mãe só serviu para castrar o príncipe e criar uma falsa equivalência entre ele e Ariel.  A menina é uma adolescente e tem um pai super controlador e protetor, ela deve se submeter a autoridade do pai, que também é o rei, e este conflito é fundamental para que ela acabe caindo nas garras de Úrsula. Entram nesta equação o etarismo e as hierarquias de gênero. Há uma falta de diálogo e muito autoritarismo.  Já Eric é maior e idade, é um homem, pela lógica do século XIX (*falaram em Império do Brasil em uma sequência com mapas*), ele seria o rei e a mãe não deveria ter toda essa ingerência sobre ele.

Ser adotado o incapacitava a assumir o trono?  De novo, se assim for, a ideia da adoção foi péssima.  Não parece ser assim, no entanto.   Enquanto Ariel se revolta e faz bobagem, mas se redime ao enfrentar Úrsula, além e fazer o pai refletir sobre seu comportamento, Eric recua.  Ele termina fazendo o que a mãe quer, inclusive quando já no fim do filme, ela diz que ele deve esquecer Ariel.  E bem no fim, e não darei detalhes, o filme tenta reforçar uma equivalência entre Eric e Ariel, como se as expectativas a respeito dos papéis de gênero, isto é, comportamentos esperados socialmente de homens e mulheres, fossem os mesmos, as pressões de mesma ordem.  Enfim, os príncipes desses live actions têm sido vítimas de releituras que os apequenam ainda mais, como se para as princesas brilharem seus interesses românticos precisassem ser rebaixados. 

Eric nem era lá tão expressivo no original, mas  esse domínio materno e a atitude de menino que faz travessuras quando ele sai para mostrar a ilha para Ariel não ajudam muito a torná-lo mais interessante.  Quando temos a longíssima sequência dele com Ariel na carruagem, Eric foi altamente negligente quando deixou que ela quase atropelasse um monte de gente sem ter lhe tomado as rédeas.  Era visível que ela não sabia guiar, não seria machista assumir o comando da situação para impedir que pessoas se machucassem.  Já escrevi em outras resenhas que deixar que uma mulher faça bobagens, se coloque em situação de risco real por teimosia, não torna uma personagem masculina melhor e uma feminina mais empoderada. De novo, esse tipo de atitude só torna o príncipe um boboca.

Falando de Halle Bailey como Ariel, a menina é muito expressiva e passa no olhar todo o deslumbramento pelo que é novo, seja o mundo dos humanos, seus objetos, cores, sabores, ou o amor.  E Bailey tem um ar inocente que combina com a personagem.  Ela criou uma belíssima Ariel, já Jonah Hauer-King não teve a chance de fazer um príncipe memorável, ele pareceu inexpressivo e eu tenho boas lembranças dele como Laurie da última versão de Little Women da BBC.  Mas eis que o problema pode residir aí, ele parece um menino, mesmo não sendo mais.  E eu não posso avaliar mais do que a expressão física e facial, porque tive que assistir dublado.  Aliás, o príncipe também canta neste filme, trata-se de uma música inédita.

Agora, as escolhas ruins do filme em relação à Ariel estão ligadas ao figurino.  Não sei de quem foi a ideia de colocá-la vestindo cores tão desmaiadas que não a destacam em momento algum.  Sua faixa de cabelo também não tem uma cor vibrante.  É tudo sem graça e retiram um pouco do brilho da beleza da atriz.  E vejam que o figurino no geral é bom, confuso quanto à época em que parece se passar, mas guardaram as cores para as demais personagens e não foram gentis com a protagonista.  E há uma cena desnecessária com espartilho, aquela história de apertar a mocinha para mostrar o quanto o mundo era repressivo com as mulheres.  Acredito que seria mais interessante focarem no horror da descoberta de como os seres humanos tratam os peixes, o mar, ou imaginam as sereias.

Enfim, o vestido de Ariel no filme, assim como no desenho, tem um corpete, que fica por fora, ou seja, o espartilho não era sequer necessário e a maioria das atrizes em cena com roupas semelhantes à Ariel parece não estão usando a peça.  E lhe tacam salto alto, também, mas logo ele seja descartado por motivos óbvios.  Só que a roupa que lhe deram se assemelhava a das mulheres comuns a ilha e elas usam sandálias.  Por qual motivo lhe dariam botinhas?  Deveriam ter economizado nessas cenas clichê e mantido a sequência em que Sebastião é perseguido pelo cozinheiro, uma das mais divertidas do original, além de ter a música Les Poissons.  Aliás, não houve a cena do jantar, ela usa o garfo como pente em uma sequência criada para o live action.

Outra coisa, o filme não ficou escuro como os trailers sugeriram.  Apesar de colocarem Ariel vestindo roupas em cores pastéis e apagadas quando estava na terra, as cores do filme são bem vibrantes, seja no fundo do mar, ou em terra.  E isso foi um alívio, eu temia pelo pior.  Aliás, acertaram nas cores da Simone Ashley, que faz uma das irmãs de Ariel, ainda que ela pouco apareça em cena. Outras irmãs têm mais destaque.  Já os bichos, os olhos de Sebastião até ganham certa expressividade, mas Linguado em sua versão realista ficou muito triste.  Já a ave conselheira, o Sabidão, que no filme é um idoso que parece conhecer o mundo dos humanos, recebeu uma dublagem estranha, ao invés da voz de velhinho, tinha voz de mulher.  Eu realmente não entendi a escolha.

Javier Barden estava muito bem como Tritão, com a presença que o soberano dos Mares precisava.  O aio do príncipe, Grimsby (Art Malik), tem bons diálogos e algumas cenas de humor interessantes, agora, ele não parece ser primeiro-ministro, como a Wikipedia coloca, e eu não pude evitar de imaginar que ele e a rainha tinham um caso secreto.  Melissa McCarthy entregou uma ótima Úrsula, mas senti falta das suas vítimas na caverna.  Vanessa (Jessica Alexander), a versão humana da vilã, parecia uma vilã de Malhação, ou filme norte-americano juvenil.  Tudo nela gritava falsidade, por assim dizer.  Que mocinha inocente vai usar lingerie e unhas pretas?  No original, a coisa não era tão na cara assim.

A Pequena Serei não me decepcionou como uma releitura do desenho original.  Para quem esperava grandes rupturas, esqueça, é Disney e é um produto infantil, os maiores arroubos estão na escalação de um elenco diverso, o que nos deu uma excelente Ariel que deve estar alegrando o coração de muitas meninas pelo mundo.  E antes que alguém venha me falar que é um conto nórdico e que a sereia original era branca, favor ler o texto que escrevi sobre como as sereias foram representadas ao longo da História.  As sereias gregas não eram como as representações que se tornaram usuais a partir do século XIX.

Não comentei, mas o conto A Pequena Sereia é um original de Hans Christian Andersen, ou seja, não é derivado de histórias folclóricas.  Foi publicado em 1837 e conta a história de uma sereiazinha que não quer somente o amor, ela deseja se tornar humana para ter uma alma imortal, já que, ao morrerem, as sereias se transformam em espuma.  No fim das contas, ela não realiza o seu desejo de ser amada por seu príncipe, mesmo suportando dores excruciantes para conseguir andar com as pernas que a Bruxa do Mar lhe deu e fazendo-lhe as vontades.  Lembro que quando eu vi uma versão animada soviética exibida na TVE, o príncipe toma a sereia como amante, mas casa com outra.  Enganado, claro, mas mostra nenhum amor, ou respeito por ela.  

Segundo consta, Andersen escreveu A Pequena Sereia para falar do seu amor não correspondido por um amigo, Edvard Collin,  Andersen parece ter desenvolvido fortes sentimentos por Collin, mas o sujeito retribuiu da mesma forma.  De qualquer maneira, Collin terminou se casando com uma mulher, o que era o esperado em uma sociedade heteronormativa, o que partiu o coração do autor da Pequena Sereia e nos rendeu esse lindo e triste conto.   Resumo da história, A Pequena Sereia é um conto que fala de um amor homoerótico não retribu´do, simples assim.

Há um número razoável de músicas, as originais e outras novas.  No geral, ficaram muito boas na versão brasileira.  Vi gente comentando que os efeitos especiais foram ruins e houve comparações com Avatar.  Bem, não sou a melhor pessoa para avaliar isso.  Para mim, estavam OK e eu não tenho nenhum interesse por Avatar.  Aliás, um filme pode encher os olhos com o uso da tecnologia mais apurada e não ter alma, coração, e mesmo um roteiro realmente interessante.  A Pequena Sereia live action não é brilhante, mas conseguiu ser um bom filme.  Isso me basta.

Concluindo, repito que toda e qualquer releitura live action de animação da Disney me parece desnecessária.   Há muitas histórias para contar e recontar o que já foi bem feito é somente uma forma de tentar conseguir dinheiro fácil dos saudosistas e curiosos e um tanto de preguiça, também.  Espero que A Pequena Sereia tenha atendido às expectativas de bilheteria, porque com a estreia do Aranhaverso 2 a disputa vai ser muito cerrada.

3 pessoas comentaram:

Este comentário foi removido pelo autor.

Vc assistiu dublado? quero levar minha priminha para ver, mas queria saber se a dublagem tá boa

O padrão da Disney é alto. A dublagem está boa, sim.

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