terça-feira, 7 de maio de 2024

Madonna passou como um furação por Copacabana e preciso comentar os discursos absurdos que emergiram depois.

Não ia escrever nada sobre a repercussão do show da Madonna, mas acredito que está no escopo do Shoujo Café fazer algumas observações feministas sobre o que tem circulado por aí.   Começo escrevendo que não sou fã de Madonna, sou, na verdade, um ZERO à esquerda quando se trata de música pop, vocês que frequentam o blog, já sabem disso faz tempo.  Também não iria a nenhum show, nenhum, porque detesto aglomerações, gente entulhada, e sempre que entro em um lugar que pode estar lotado fico observando qual seria a rota de fuga em caso de necessidade.  Em um show com milhares, ou milhões, seria impossível escapar em caso de emergência.  Eu não tenho estrutura para essas coisas, não.  Agora, como historiadora feminista, não posso ignorar a importância que ela teve e tem como símbolo de resistência e por abraçar causas nobres quando a maioria tinha medo de se posicionar.

Madonna tem quarenta anos de carreira, eu tenho quarenta e oito anos de idade. Ela é odiada e criticada faz tempo. Eu acompanhei pela mídia muitos dos (supostos) escândalos da cantora.  Madonna foi acusada mais de uma vez de vilipêndio de símbolos religiosos, católicos, em especial.  Madonna é ítalo-americana, teve formação católica.  Ela foi excomungada três vezes.  Houve mais de uma ameaça de prisão por simulação de masturbação em show; liberdade de expressão tem limites nos EUA, vocês sabem, especialmente, se de trata de sexo e de criticar o genocídio em Gaza, esses dias.  

Quando Madonna começou suas performances hipersexualizadas, ainda era algo inaceitável (*Deixou de ser?*) para muita gente que mulheres falassem publicamente de sexo, de prazer e, o mais importante, que elas fossem protagonistas e, não, alvo da libido dos homens.  Aliás, é isso que certamente ofende mais.  Madonna está no controle do seu corpo.  Verdade, que nem todas as feministas veem com bons olhos esse tipo de performance, Madonna objetifica outras mulheres e homens em seus shows, porém, todo o escarcéu só aponta para o fato do quanto as performances da rainha do pop são transgressoras ainda hoje.  

Me espanta que gente velha, como eu, e mesmo jovem, porque a internet está aí para você se informar, tenha se chocado com Madonna.  Antes de ir a um show, vocês não pesquisam a carreira de um cantor ou cantora?  Vocês vão no embalo e às cegas?  Ou vocês esperam que o artista se molde às suas expectativas?  Que momento esquisito esse em que gente de todos os matizes políticos e ideológicos imaginem que o mundo deve se dobrar aos seus gostos!  Madonna não começou sua carreira ontem, ela está por aí faz QUARENTA ANOS.  O que vocês esperam indo ou assistindo um show dela?  Por favor!

Falando, agora, para o meu círculo, os crentes que estão reclamando do show de Madonna.  Olha, já começo lhe perguntando, meu irmão, minha irmã, por qual motivo você estava assistindo ao show.  Ou será que pegou a história pelas beiradas como eu?  Outra cosia, além de ter que fazer uma pesquisa para entender a trajetória de um astro, é de bom tom você entender que quem tem que dar testemunho é o cristão e não quem não é cristão.  Exigir que a moralidade que você julga ser de acordo com o Evangelho deve ser seguida por uma diva pop não faz sentido algum, além de me parecer cortina de fumaça.  Ore por ela, não exija dela e de outros um padrão que deve ser seguido pelos crentes.

Quem tem que dar testemunho é CRISTÃO, se pastor, sua responsabilidade é ainda maior.  Considero escandaloso ter que assistir pastor dizendo de púlpito que assediava sua filha adolescente ("Ai, se eu te pego!" "Que mulherão!") e a beijou à força.  Beijo que não era de pai, porque ele disse que iria contar vantagem para o futuro namorado da menina dizendo que ele foi o segundo.  Vocês entendem a dimensão disso aqui?  Madonna simulando sexo oral em um palco mundano nada tem a ver conosco, esse tipo de nojeira tem.  E, repito, do púlpito e com Bíblia na mão.  Eu sou muito conservadora para achar isso aceitável.  Fui ensinada que o púlpito é um lugar santo e o pastor uma figura de autoridade.  E, claro, ainda teve pastor defendendo também de púlpito que há crianças que são culpadas pelo abuso sexual que sofrem.  É esse o tipo de Evangelho que quer pautar Madonna?  Tenham vergonha pelo menos.

Agora, obviamente, duas coisas devem ter indignado muito alguns.  Madonna, que foi pioneira na difusão de informação sobre o HIV, quando se investia no estigma de que a AIDS era um câncer gay, vestiu as cores da nossa bandeira e permitiu que que todos, todas e todes pudessem sentir orgulho dela de novo.  Faz muito tempo que parece que nossa bandeira é monopólio de alguns brasileiros.  Não é, ela pertence a todos, inclusive aqueles que são alvo do discurso de ódio dos que se fantasiam de patriotas faz alguns anos.  Nenhum brasileiro ou brasileira é escória, a bandeira brasileira pode e deve ser de todos nós.

Outra coisa, e essa parece ter ofendido também alguns ditos liberais, incomoda muito ver uma mulher idosa cheia de energia e dançando, cantando cantando sobre sexo e prazer. Ela deveria fazer o show sentada e não deixar envergonhado quem tem 1/3 da idade dela e não consegue pular e dançar por meia hora. E, só para contar, eu nunca tive energia para pular e dançar, mas não fico apontando dedo para idosos que o fazem. Vi até um Youtuber que sigo (*e assisto cada vez menos*) dizendo que o show estava datado.  Certo... Datadíssimo, veja a repercussão e o quanto de gente, inclusive às escondidas, estava presente no show.  

No fim das contas sobra falso moralismo, cara de pau (*"Ai, não sabia que a Madonna fazia essas coisas!"*), etarismo e, claro, deve incomodar muito a alguns patriotas verem uma mulher loura, idosa, cheia de intervenções estéticas coberta de verde e amarelo sem estar falando alguma atrocidade como "Israel é um país cristão.", "Vacinas matam!" ou "Voto impresso e auditável.".  Resumindo, o show de Madonna não representa todos os brasileiros, mas deu uma bela sacudida na poeira nojenta que vem se acumulando faz tempo.  E, como disse lá no início, não preciso ser fã de Madonna para reconhecer isso.

P.S.: E, para não dizer que não vi nada do show, achei lindíssima a homenagem à astros que foram vítimas da AIDS.  Só quem viveu os anos 1980 e 1990 sabe o quanto era doloroso ver pessoas definhando em público sem esperança de cura e sendo, para piorar, achincalhadas pelo Estado e pelos líderes religiosos.  Aliás, essas ideias continuam por aí, mas, ponto positivo, gente que associa o HIV aos gays, como se fosse castigo divino, hoje é punida pela Justiça.  Ana Paula Valadão acabou de ser condenada por suas palavras irresponsáveis, cruéis e criminosas.

3 pessoas comentaram:

Foi excelente tudo que li aqui. Por isso gosto tanto desse esapaço.

Vi o show na Globo com a minha mãe porque tinha prometido a ela, minha mãe escutava Madonna escondida nos anos 80 porque meus avôs não gostavam, não se pode negar o impacto que Madonna tem, muita gente começou a se interessar por Cabala por causa do álbum Ray of Light, eu não sou um grande fã de pop, mas não se pode negar que existe um pop antes e depois de Madonna (veja Lady Gaga por ex que diz se inspirar nela e começou a fazer clipes com cruz e tem até uma música chamada Judas)

Madonna "exorcizou" nossa bandeira e a camisa da seleção. Agora é de todo mundo, não só de conservador hipócrita.

Related Posts with Thumbnails