segunda-feira, 9 de junho de 2025

Sobre a "Febre" dos Bebê Reborn e a estigmatização dos hobbies femininos

Umas duas semanas atrás, fiz uma postagem no Instaram sobre essa onda de matérias sensacionalistas sobre bebês reborn e as mulheres que fazem parte da comunidade que mantém o hobby, sim, porque é coisa de mulher mesmo.  Fiquei adiando um post no Shoujo Café até que, nesta semana, duas coisas aconteceram, a primeira, descobri que várias mulheres que fazem parte do grupo do blog no Facebook acreditam nessas matérias sensacionalistas caça cliques a ponto de acharem que TODAS as pessoas que têm bebê reborn como hobby são mentalmente desequilibradas; a segunda, foi a agressão sofrida por uma bebê real por parte de um homem que acreditava que se tratava de uma boneca.  Sim, para além da maldade, talvez tenhamos a crença para alguns de que bebês reborn são androides, porque o celerado brincara com a bebezinha e sabia que ela se mexia e tudo mais.  Muito bem, trouxe o post do Instagram para cá e vou atualizá-lo e expandi-lo. 

Há mulheres que colecionam e/ou fazem as bonecas hiper-realistas chamadas de bebê reborn.  Essa coisa é antiga nos Estados Unidos, e chegou no Brasil faz muito tempo, também, lá no final dos anos 1990.  Bebês Reborn não são as bonecas caríssimas vendidas em lojas de brinquedo e que ficam sempre em estantes envidraçadas junto com as Barbies de colecionador, trata-se de outra  coisa. Essas mulheres formam uma comunidade que, assim como em qualquer outro hobby caro, se comunicam entre si e marcam eventos. O documentário excelente do Chico Barney chamado Bebês Reborn não Choram mostra bem o funcionamento do grupo, o encontro que se repete por mais de um década no Parque do Ibirapuera e entrevista uma das principais cegonhas (*nome das artesãs de bebê reborn*) brasileiras, que explicou que há o uso terapêutico das bonecas, também, com pessoas em depressão e até Alzheimer.

Dentro dessa comunidade, há todo tipo de mulher. As que só colecionam, as que buscam o hobby como uma forma de apoio emocional e as que monetizam com a brincadeira, inclusive fazendo roleplay.  Roleplay são encenações nas quais os participantes encarnam personagens, tipo RPG, sabe, mas como são somente mulheres brincando, algumas são meninas ainda, adolescentes, as pessoas acham que é coisa de gente doida. Um dos canais mais importantes desse nicho é o da Nane Reborns, que sempre aparece sendo entrevistada. Só no Tik Tok ela acumula 286.4 seguidores e tem 3 milhões e 400 mil likes, não fui checar o tamanho das suas redes no Instagram, nem no Youtube, porque ela está em todos esses lugares. Deve ser sua principal fonte de renda, eu imagino. Minha filha Júlia, quando pequena, via canais de novelinhas feitas por adultos (*homens e mulheres*) só que com bonecos para criança mesmo e tudo bem. Meu marido achava esses canais ridículos, até eram, mas não estão fazendo mal para ninguém e nem viraram alvo dessa sanha difamadora da mídia e de vários youtubers.

Com a exposição na mídia, e tudo veio depois do documentário do Chico Barney, descobriu-se uma mina de ouro. Emissoras lucram com matérias sobre o tema, podcasts chamam pseudo-especialistas para falarem mal das mulheres que fazem parte da comunidade (*o Três Irmãos trouxe uma dessas criaturas.*), multiplicam-se os projetos sem sentido de políticos de extrema-direita e há o pessoal que entrou na brincadeira para viralizar e se projetar nas redes. Neste último ponto, eu brinquei dizendo que melhor eles se concentrarem em problemas inexistentes inofensivos (*levar bebê reborn para posto de saúde, por exemplo*) do que ficar perseguindo menina grávida que foi estuprada, professor e pessoas trans.  Resumindo, falar de bebê reborn tornou-se um negócio, que já se arrasta por várias semanas.

Entre uma e outra matéria séria, a maioria é sensacionalismo puro.  Os títulos clickbait parecem fazer crer que existe uma febre e que legiões de mulheres estão embarcando em um hobby que é muito caro e deixando de ter filhos e mesmo animais de estimação.  Durante toda a minha vida, só conheci uma pessoa que colecionava bebês reborn, uma tia que faleceu durante a pandemia (*mas não foi de COVID-19*).  Ela tinha filhos e netos, mas comprou dois bebês reborn e, às vezes, saia de casa com eles.  Como ela começou com isso mais de dez anos atrás e morava na periferia do Rio de Janeiro, todo mundo achava estranho, mas como ela era uma pessoa muito brava e não levava desaforo para casa, NINGUÉM tinha coragem de falar qualquer coisa na frente dela.  Se tenho nos meus contatos mulheres que tem bebês reborn, nenhuma delas nunca falou nada, nem apareceu em público com qualquer um deles.

A partir dessa minha tia e do que tem aparecido sobre os bebês reborn, fiquei pensando sobre uma coisa, se algumas dessas mulheres, especialmente as mais velhas, não se tornam colecionistas para compensar o fato de não terem tido as bonecas bonitas e caras que desejavam quando crianças.  Agora, com renda própria, ou a do marido, elas podem satisfazer o sonho.  Tenho 49 anos e lembro de ter ganho bonecas que não queria, simplesmente, porque minha mãe não as tivera quando criança, como a Amiguinha.  Mamãe era muito pobre, minha avó viúva e com cinco crianças para criar não tinha condições de comprar brinquedos que não fossem muito baratos, a maioria, eram feitos em casa mesmo.  Por isso, mesmo pagando em 5 vezes, mamãe me dava umas bonecas indesejadas de Natal e somente nesse data eu ganhava brinquedos mais caros, porque eles continuavam tendo preços altos e minha família era pobre, mas não tanto.

Na minha infância, lembro que na casa das tias-avós sergipanas mais abastadas, mas tinham sido muito pobres na infância,  era comum que elas e minhas primas mais velhas (*que já não brincavam com bonecas*) tivessem camas com colchas bonitas e bonecas muito elaboradas sentadas sobre elas, ou sobre algum móvel muito bem arrumadinho.  Essas bonecas não eram de brincar, eram de enfeitar e eu, criança, não podia tocar nelas.  Herdei uma boneca dessas da minha avó paterna, era uma boneca negra que eu adorava.  Enfim, acredito que colecionar bebês reborn possa ter esse significado para várias colecionadoras.  Agora, elas podem ter as bonecas bonitas que queriam e exibi-las é mostrar ao mundo a sua felicidade e que venceram, ou sobreviveram, a dias  difíceis.  Elas não substituem filhos, netos, maridos, mas fazem parte de suas interações sociais com outras mulheres.

E acabei encontrando  uma matéria com uma mulher que acabou dizendo o que eu tinha inferido como realidade para algumas colecionadoras.  Thaís tem 35 bebês reborn e é colecionadora desde 2019.  Ela diz o seguinte da sua experiência: “Sou apaixonada (por bonecas) desde criança. Minha mãe teve dez filhos e não tinha condições de comprar bonecas (...) Cuido deles como artigos de coleção  (...) Tenho amigas que eram depressivas e, desde que começaram a colecionar (bebês reborn), viram sentido na vida. A gente se apoia. Não somos loucas como todo mundo fala. É apenas um hobby, e somos felizes".


E  as pessoas chegam ao hobby de várias formas.  Em uma das poucas matérias sérias sobre bebê reborn, falaram da experiência de Ana Luiza Dixon.  Ela se tornou cegonha, porque queria presentear a filha com uma boneca hiper-realista e descobriu que elas eram muito caras.   Segundo  a matéria, "Sem recursos, Ana Luiza comprou uma boneca simples e adaptou como conseguiu ao formato reborn, assistindo tutoriais na internet. Ela decidiu publicar uma foto da boneca nas redes sociais e passou a receber encomendas. Assim, o que era um lazer virou fonte de renda e o negócio acabou expandindo."  Ela se tornou uma pequena empresária, emprega 35 pessoas e produz cerca de 300 bonecas por mês.  Aqui, temos duas questões, mulheres que se interessam por bebês reborn não raro tem famílias e filhos, especialmente, as mais velhas, e trata-se de um negócio para muitas delas, unem o útil ao agradável.

Mas com as matérias e a atenção, há muita gente nova chegando.  Essa galera que virou mamãe e/ou papai reborn para ganhar dinheiro e/ou atenção vai fazer qualquer coisa para aparecer, afinal, é um fenômeno do nosso tempo. Esse tipo de gente PRECISA ser reprimida, sim.  Houve um caso recente de uma mulher que entrou com pedido de licença maternidade, negado, ela entrou na Justiça, mas a repercussão ruim, segundo as matérias, a fez recuar.  Tenho cá minhas dúvidas sobre essa história, porque houve inclusive falsificação de assinatura de advogado.  

Deixe eu explicar, só vejo duas possibilidades nesse caso.  A mulher pode ter um transtorno, mesmo que não seja laudada, e não consegue separar realidade de fantasia, ou poderia ser alguém em busca de atenção e fama.  Com a história da falsificação, a segunda possibilidade é a mais plausível.  Mesmo perdendo a ação, ou retirando, como ocorreu, ela pode terminar sendo entrevistada por programas sensacionalistas e, com sorte e talento, acabar sendo convidada para aparecer em algum reality show de segunda linha.  Para quem não tinha nada, isso pode render algum dinheiro e ser o início da carreira como subcelebridade.  Agora, com a história da falsificação, ela pode tomar processo do advogado e da empresa na qual trabalha, ou trabalhava, porque acredito que não vá durar por lá.  Dito isso, um caso isolado não quer dizer que milhares de mulheres estejam indo à Justiça em busca de licença maternidade para bebê reborn, ou levando suas bonecas ao posto de saúde, ou tentando matriculá-las em creche.  Se alguém lhe contar algo assim, desconfie que se trata de sensacionalismo de quem quer caçar likes e/ou atenção.  

Um caso que viralizou foi o da moça que levou um bebê reborn para uma UPA 24h na Bahia.  A jovem tem problemas sérios de saúde mental.  Saiu de casa sem que seus pais e irmão soubessem.  Não foi alguém em busca da fama, mas uma pessoa em acompanhamento psiquiátrico.  A partir desse caso, desse único caso, porque nenhum mais foi noticiado, criou-se uma fantasia monetizável de que mulheres estariam fazendo isso por todo o Brasil e que seria necessário leis para contê-las.  Uma loucura planejada para criar escárnio e chamar atenção e cliques.  Projetos pipocando pelo país em nível municipal e federal, todos de políticos de extrema-direita para proibir o atendimento de bonecas no SUS. 

há profissionais que estão querendo aparecer, também. Em meados do mês passado, houve o padre influencer com milhões de seguidores que postou que não faz batizado, nem primeira comunhão, de reborn. Alguém perguntou? Alguém pediu? A resposta deve ser NÃO, mas ele quer entrar no hype e já tinha feito um texto atacando a comunidade antes, como se mulheres que mantém o hobby não quisessem procriar, assim como os padres não procriam. Quem viu o documentário do Chico Barney deve ter notado que havia avós, mães e netas (crianças) compartilhando o hobby. A Nane Reborns é casada e tem uma filha de 7 anos. Ela não expõe a criança, como uns e outros por aí, ela mostra as bonecas. E já disse que a filha também brinca com as bonecas que são guardadas em um armário (*ela tem vídeos mostrando o móvel, como acomoda as bonecas e tudo mais*).  Mas a questão é marcar que o hobby é contra a natureza, porque mulher precisa ter filhos e procriar, se não quer, se não consegue, está indo contra a natureza.  Quem sustenta as crianças, como sustenta, não importa, só pare de colecionar bonecas e parecer feliz com seu hobby.

Houve, também,  o caso da advogada que apareceu na mídia não conta como exposição por cliques, ainda que os títulos das matérias tenham (*Exemplo*). Como ela bem explica no vídeo, a briga é por DINHEIRO. O Instagran da tal bebê reborn é monetizado. O marido quer o controle da boneca, do Instagram e do dinheiro e a mulher diz que quem investiu comprando a boneca e criando o canal foi ela. O caso nada tem de absurdo, concordam comigo? Trata-se de mais uma briga por propriedade de um casal que se divorcia. Como a advogada bem explica, redes sociais são ativos financeiros.  Agora, é possível que o termo "guarda" tenha sido usado de forma equivocada pela mulher?  Sim, afinal, ela parece ter um envolvimento emocional com a boneca que comprou.  Quem tem itens de coleção deve ser capaz de entender esse tipo de sentimento.  E isso muda alguma coisa?  Não!  É uma briga por bens.

No fim das contas, é hobby de mulher para mulher, logo, pode ser atacado, pode ser depreciado, pode ser difamado. Nada incomoda mais o patriarcado do que mulheres se divertindo entre elas e sem se preocuparem com o olhar masculino. Lembro de um historiador, que foi meu contemporâneo no IFCS-UFRJ expressando opinião, porque era OPINIÃO, de que as atenienses (*mesmo inferiorizadas, desprezadas, obrigadas a uma vida limitada ao lar, quando esposas de cidadãos ricos ou remediados, claro*) eram mais felizes que as espartanas que herdavam propriedade, que mantinham uma vida social entre elas mesmas, porque os homens passavam boa parte do tempo fora da cidade. Motivo? É muito triste para uma mulher não estar perto dos machos e vivendo em função deles. Deve ser doença até. 

Agora, o mais triste é quando mulheres não percebem isso e se tornam detratoras de outras mulheres.  E foi isso que eu vi no Facebook, no tal post que fiz.  Eu comparei o gosto por K-Pop (*e poderia ser K-drama, também*) com o das bebês reborn, porque é feminino e transgeracional, isto é, une mulheres de todas as idades das pré-adolescentes às avós.  Só que acrescentei que o das bebês reborn não gera lucro para grandes corporações, por isso, precisa ser detratado e os membros da comunidade ridicularizadas.  E vários comentários pareceram se ofender com o que eu escrevi, porque interpretaram que eu estava dizendo que gostar de K-Pop e colecionar bebê reborn seria a mesma coisa e não pode ser, porque mulheres que colecionam bonecar hiper-realistas seriam LOUCAS.  

A graça é que todas as descrições sobre o fanatismo e adoecimento da comunidade reborn dos comentários (*coisa derivada das tais matérias sensacionalistas*) poderiam ser aplicadas a qualquer comunidade de fãs.  E a ideia de que deveriam gastar seu dinheiro (*sim, o dinheiro*) com coisas úteis, como crianças de verdade, poderia se aplicar a qualquer hobby.  Se eu perguntar para a minha mãe sobre o meu hábito de comprar quadrinhos, ela vai dizer que é dinheiro gasto com bobagem.  Quando era adolescente, comprei um álbum de figurinhas de Zillion com o dinheiro da merenda, quando ela descobriu, além de uma brinca colossal, fiquei sem dinheiro para o lanche e, consequentemente, para as figurinhas.  😉 Mas sou adulta e desde que comecei a trabalhar, e isso foi lá no meu primeiro ano da faculdade, a coisa passou a ser problema meu.

Ora, gostar de anime, mangá, manhwa, dorama whatever, especialmente, também são hobbies estranhos para a maioria das pessoas.  A normalização veio, principalmente, com a possibilidade real de lucro por parte de uma série de empresas, desde as dos países de origem até os serviços de streaming como Netflix e Crunchyroll.  Elas lucram com as mulheres que consomem seus produtos, de doramas até shows concorridíssimos.   Agora, quem lucra com bebê reborn?  As próprias mulheres.  A dona da fábrica em Guaratinguetá não é uma mega milionária, menos ainda a cegonha solitária que usa a intenet para anunciar sua arte e os  encontros de colecionadoras para mostrar seus produtos.

Dito isso, é realmente o sucesso do patriarcado, quando as próprias vítimas da descriminação não percebem que sempre estarão na fila da chacota, é só uma questão de tempo.  Hoje, são as mães de reborn, amanhã, poderá ser você.  E eu estou nessa seara faz muito tempo para já ter visto a discriminação, para ter sido imbecil e preconceituosa em algum momento de minha vida, e para já ter sofrido rechaço de gente que acredita que uma velha como eu não deveria falar de cultura pop, porque é coisa de jovem.  Me importo?  Não.  Mas estou aqui tentando alertar do que está acontecendo.  A palavra sororidade é muito mal utilizada, às vezes, mas cabe aqui, quando vir mulheres sendo perseguidas e ridicularizadas, tente refletir sobre os motivos.  Misoginia vende.  Aliás, eis uma discussão que é extremamente atual.

1 pessoas comentaram:

Isso é muito real e triste, uma vez uma amiga me deu dinheiro para comprar um Sylvanian Families em um loja e colocar em papel de presente e levar até a casa dela para o pai dela achar que era presente e que ela não estava gastando dinheiro com "bobagem"

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