sábado, 2 de agosto de 2025

"Professor japonês perde emprego por má conduta após ser pego em loja de conveniência... trabalhando" Vamos comentar essa notícia

Uma história sem fundamento, repetida à exaustão no Brasil, é a de que professores são tão venerados no Japão que são os únicos que não se curvam diante do imperador.  Na verdade, conforme fui mergulhando nas leituras sobre a sociedade japonesa, me espantei em descobrir que a vida dos professores no Japão é dura e mal paga, especialmente, se o país é comparado com outros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).  Se pegarmos os 38 países do grupo, o Japão não vem na rabeira, mas está longe do topo.  Só que há um detalhe a ser observado, dentro da OCDE, os professores japoneses são os que trabalham mais horas semanais com os piores salários proporcionalmente.  Vou postar a matéria do Sora News, depois, volto para comentar mais:

"Conselho de educação emite pedido de desculpas a crianças por danos emocionais causados pelo fato de seu professor ter um emprego de meio período.

É difícil não se sentir desanimado ao ouvir sobre um professor do ensino fundamental sendo repreendido por comportamento inadequado. O educador estaria envolvido em algum tipo de ato sexual impróprio envolvendo um aluno? Ou talvez seja um caso de abuso físico, com um professor descontando suas frustrações nos alunos, dando-lhes tapas após ser percebido um ato desrespeitoso.

Descobrir que o incidente que causou problemas ao professor ocorreu em uma loja de conveniência é um pouco reconfortante, mas só um pouco. Possibilidades como ser pego furtando ou assediando funcionários também não são boas para um educador, assim como as inúmeras formas de caos alimentadas pelo álcool que podem acontecer em lugares que vendem bebidas e ficam abertos a noite toda.

No entanto, nenhum desses cenários foi o que aconteceu no início deste mês, quando um professor do ensino fundamental da Prefeitura de Okayama foi flagrado em uma loja de conveniência fazendo algo indesculpável aos olhos da administração escolar: trabalhando.

Em 4 de julho, alguém contatou o Conselho de Educação da Cidade de Okayama para relatar que tinha visto um homem de 60 anos, professor de uma das escolas públicas de ensino fundamental da cidade, trabalhando em uma loja de conveniência em Kurashiki, a cidade vizinha. No dia seguinte, o diretor da escola onde o homem leciona foi até a loja de conveniência e confirmou pessoalmente que o professor estava trabalhando lá, confrontando-o sobre o assunto.

Para esclarecer, o homem não estava matando aula para ir trabalhar na loja. A pessoa que o denunciou ao conselho de educação o viu na loja fora do horário escolar, e o dia em que o diretor o flagrou trabalhando na loja de conveniência foi um sábado, o dia de folga do professor. O tipo de trabalho que ele realizava também não era um problema. Ser balconista de loja de conveniência é amplamente visto como um trabalho respeitável e honesto no Japão, um país onde a imagem básica dos trabalhadores do setor de serviços é a de indivíduos honestos e corteses.

Não, o problema era que o homem estava realizando qualquer tipo de trabalho além de seu trabalho regular como professor na escola.

Não é incomum que contratos de trabalho no Japão incluam regras que proíbem trabalhos paralelos. Essas cláusulas também não são necessariamente cláusulas de não concorrência, como o compromisso de não trabalhar simultaneamente para outra organização cuja promoção e sucesso sejam prejudiciais ao empregador principal. Em vez disso, são promessas genéricas e generalizadas de não ganhar dinheiro fazendo outra coisa.

Presumivelmente, a lógica é que o empregador quer que o trabalhador concentre toda a sua energia em seu trabalho principal, encarando um trabalho paralelo como algo que reduzirá o foco e o tempo de recuperação necessários para mantê-lo trabalhando em ótimas condições, ou teme que seus clientes/usuários vejam as coisas dessa forma e percebam que permitir que os trabalhadores tenham um segundo emprego é uma falta de comprometimento em fornecer a melhor qualidade.

Aplicado a este caso, a escola aparentemente pensa que um professor que trabalha em um segundo emprego fará um trabalho ruim ao dar aulas, ou pelo menos quer evitar que os pais tenham esse medo.

Depois que o professor foi flagrado pelo diretor, veio à tona que ele trabalhava meio período em uma loja de conveniência, fora do horário escolar, desde novembro de 2023. No total, ele ganhou cerca de 1,7 milhão de ienes (pouco menos de US$ 12.000) [1], com seus meses mais lucrativos em torno de 130.000 ienes. Não é exatamente um salário para viver no luxo, e quando questionado sobre o motivo de ter aceitado um segundo emprego, o professor disse que o fazia para "complementar seus rendimentos, em resposta às suas condições de vida" após sua "recontratação". Isso pode soar como se ele já tivesse sido flagrado em algum tipo de violação trabalhista antes, mas, na verdade, o termo se refere a uma prática trabalhista comum no Japão, em que os trabalhadores são demitidos por seus empregadores ao atingirem a idade de aposentadoria e, em seguida, são recontratados para fazer essencialmente o mesmo trabalho, mas com um salário reduzido.

“Independentemente da minha situação pessoal, minha conduta prejudicou a confiança dos educadores públicos e a ética profissional”, disse o professor em um comunicado de desculpas, “e lamento profundamente minhas ações”. Enquanto isso, o chefe do Conselho de Educação da Cidade de Okayama declarou: “Pedimos profundas desculpas pela grande angústia e preocupação causadas às crianças, seus responsáveis e a todos os moradores da cidade”, prometendo tomar medidas para garantir que tal incidente não se repita e “fazer esforços para restaurar a confiança no sistema educacional”.

Agora, admito prontamente que fui um adolescente muito cínico, e provavelmente seria um exagero dizer que me livrei de todos os vestígios dessa atitude depois de me tornar adulto. Ainda assim, tenho dificuldade em imaginar alunos do ensino fundamental acordados à noite, sem conseguir dormir, não porque estejam preocupados com provas, valentões ou se a paixonite gosta deles, mas agarrados aos travesseiros enquanto sussurram ao luar, com as vozes sufocando as lágrimas: "Eu simplesmente NÃO acredito que meu professor também trabalha em uma loja de conveniência... Como ele pôde?". Então, pedir desculpas às crianças parece uma demonstração desnecessária de arrogância, no que na verdade é mais uma tentativa de apaziguar pais possivelmente chateados, especialmente quando nenhuma crítica foi feita, pelo menos publicamente, quanto à qualidade real das aulas que o professor estava dando.

No entanto, o homem indicou que planeja se demitir do cargo de professor por causa do incidente. Ele também parou de trabalhar na loja de conveniência como parte da consequência, então ele está prestes a passar de duas fontes de renda para nenhuma, e como ele aparentemente não tem uma reserva grande o suficiente para se aposentar, parece que ele precisará procurar um novo emprego, mas pelo menos ele estabeleceu suas credenciais como alguém que trabalha duro."

Há muita informação na matéria.  Existe o falso moralismo em relação ao fato do professor trabalhar em um segundo emprego causar alguma forma de angústia nos alunos e alunas.  A matéria, aliás, comenta que nenhuma queixa  foi feita sobre a qualidade das aulas do professor.  Outro ponto, é que o salário de professor somente não é capaz de suprir as necessidades do homem, que já tem sessenta anos, é aposentado, mas foi recontratado para continuar trabalhando com um salário menor.

Não consegui descobrir se ao aceitar a recontratação, a pensão referente à aposentadoria fica suspensa, mas eu sei, porque tive que pesquisar  sobre isso, que aposentados não recebem pensões confortáveis no Japão.  Se você trabalha durante 40 anos no Japão, recebe pensão integral.  Se você se aposenta aos 60 anos, recebe 76% do valor, se se aposenta com mais de 75 anos é bonificado e recebe uma  pensão que equivale a 184% do valor médio que e de 816 mil ienes anuais [2], que já podem estar desatualizados, ou variar de acordo com a função, ou seja, há quem ganhe mais e quem ganhe menos.  De qualquer forma, temos um idoso sendo obrigado a trabalhar em um segundo emprego por não conseguir  se sustentar.  Com o escândalo gerado, ele terminou perdendo os dois empregos, o que piorou ainda mais a sua situação.  A matéria não comenta o motivo pelo qual ele se aposentou aos 60 anos, mas algum deve haver.

Em 2021, a remuneração média anual de um professor do Ensino Médio no Japão era de U$62.670,37 e o país estava atrás de Luxemburgo, Alemanha, Coreia do Sul, Estados Unidos, Portugal, Canadá, México e Dinamarca.  Só que, conforme encontrei, os salários variam a depender do lugar onde você trabalha.  Quem leciona em Tokyo recebe mais do que quem trabalha em uma cidade menor, ou no interior.  Fora isso, como acontece no Brasil, quem trabalha no ensino médio recebe mais do que quem está no Fundamental II, que recebe mais do que quem está no Fundamental I, que ganha mais do que quem trabalha com a Educação Infantil.  É injusto, pelo menos na minha percepção, porque professores que trabalham com crianças menores se desdobram muito mais do que eu, que trabalho com adolescentes mais velhos.  De qualquer forma, quando pegamos a média de todos os segmentos, a colocação do Japão na OCDE piora bastante.

Pegando a média de remuneração todos os segmentos, o Japão fica atrás de  Luxemburgo, Alemanha, Dinamarca, Áustria, Holanda, Austrália, Turquia, Estados Unidos, Espanha, Noruega, Canadá, Finlândia, Irlanda, Nova Zelândia, França, Portugal, Coreia do Sul, Lituânia, Itália e Eslovênia.  E, só para recordar, o salário no Japão ainda varia  depender de onde você está e os professores do país são os que mais trabalham proporcionalmente dentro da OCDE.  Em 2018, professores chegavam a trabalhar 11 horas por dia.  E deve variar aa depender do que você leciona também, eu imagino.  E é fácil encontrar informação sobre salários de professores de inglês e que a remuneração seria melhor nos Estados Unidos (*1 - 2*).

Enfim, ser professor é um trabalho complicado em todo lugar do mundo, eu imagino, mas sempre acho engraçado quando as pessoas romantizam a educação no Japão e ficam imaginando que o magistério lá é viver em um mundo perfeito.  Até bico professor faz por lá, assim como faz por aqui.  E ninguém faz bico, tem mais de um emprego, se não estiver apertado.  Espero que esse colega japonês não venha a passar mais necessidades por causa dessa canalhice que fizeram com ele.

 [1] Em uma cotação de U$1,00 = R$5,60, o valor seria R$67.200.
[2] Algo como R$30.461,07.

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