quinta-feira, 25 de setembro de 2025

As pessoas deveriam parar de tentar acreditar que obras de fantasia são material histórico para justificar sua visão de que as mulheres de outras épocas eram absolutamente miseráveis

Imagine que você está lendo um manhwa que tem uma ambientação europeia e parece ser inspirado no século XIX.  As roupas femininas parecem ser algo da metade do século, Era das Crinolinas e coisa e tal.  Só que, neste mundo, a mocinha, que é irmã de um duque, usa um anel contraceptivo para não engravidar, faz um exame de DNA para descobrir seu verdadeiro pai e transa loucamente com seus dois irmãos sem sentir nenhuma culpa, porque religião nem deu as caras na história.  Neste mesmo quadrinho, o vilão é o príncipe herdeiro, homem casado, mas que quer a mocinha de qualquer jeito e propõe que ela se torne sua concubina e o imperador, pai do moço, diz para os irmãos dela que ele garante que ela será tratada como esposa e que os filhos dela e que os filhos dela, não os da esposa legítima, serão os herdeiros do trono. O príncipe herdeiro diz para nossa protagonista que irá matar a esposa assim que ela se  casar com ele e que, caso ela continue se recusando, ele irá revelar para o mundo que ela se deita com os dois irmãos e acabar com a reputação da família dela. Super historicamente correto para a Europa no século XIX e pode escolher qualquer país, qualquer um.

Mas eis que eu leio o capítulo 41 dessa bodega e a mocinha está morando com o pai, um gigolô (*acho que deve ser cafetão, mas está gigolô nas scanlations*), porque ele apareceu para reclamar a sua guarda depois que o fato dela não ser irmã do duque apareceu nos jornais.  Eu acho que quem plantou a notícia foi o próprio duque para afastar o príncipe herdeiro, porque, agora, ela não poderia ser concubina dele, afinal, veja suas origens, não é mesmo?  Só que ela está prisioneira na mansão do pai, que, aliás, foi presenteada pelo seu irmão duque, e sendo torturada por ele, que ameaça vendê-la para  quem pagar  mais, prostituí-la e outras coisas que eu não irei escrever aqui.  Eu fico furiosa com esse capítulo e posto um pequeno comentário no Bato.to: 

"Eu sei que esse tipo de história não é feita para fazer sentido, mas está me dando nos nervos. Bem, a FL já passou da idade de casamento, como dito em algum capítulo anterior; agora, foi dito que ela já passou da maioridade legal. Por esse motivo, ela não está presa a esse pai; ela pode voltar para Evan (que eu suponho estar tramando algo) ou pegar o dinheiro dela e ir morar sozinha. Essa situação com aquele homem horrível é absurda. E quem o trouxe para a história? Leon? Bem, vou dormir. Eu preferia quando tínhamos apenas um vilão, o príncipe herdeiro." (I know this kind of story is not made to make sense, but it's getting to my nerves. Well, the FL has passed the age of matrimony, it's said in some chapter back; now, she said she has passed the legal age. For that reason, she is not bound to this father; she can go back to Evan (whom I suppose is plotting something) or take her money and go live alone. This situation with that horrible man is absurd. And who has taken him into the story? Leon? Well, I'm going to sleep. I preferred it when we had just one villain, the crown prince.)

Explicando o "Quem o trouxe para a história", logo nos primeiros capítulos, Leon, o irmão mais novo, está procurando pelo pai da mocinha, Aris, porque ele e o duque sabem que ela foi adotada.  Leon quer que o pai da protagonista revele sua origem e, assim, ele poderá se casar legalmente com ela.  Leon é burrinho, além de não entender a palavra consentimento.  Não gosto nada dele.  Evan, o duque, é manipulador, mas, pelo menos, ele não forçou a mocinha a fazer nada que ela não quisesse.  Enfim, o fato é que o pai bandido foi trazido para a história.  Mas eis que uma criatura, que se revelou historiadora como eu, mas que eu imagino que não seja das melhores, porque parece acreditar que esse mundo de fantasia tem alguma verossimilhança histórica escreveu o seguinte:

"Nada do que lhe foi dado (nem mesmo se ela trabalhou para obtê-lo) é dela. Tecnicamente, tudo pertence ao chefe da família e pode ser considerado roubado. Ela não pode se casar com ninguém sem a permissão dele, ou será devolvida ao pai e seu "marido" terá sérios problemas legais.  Ela não consegue um emprego com pessoas da nobreza sem a permissão dele. Ela não conseguirá um emprego fazendo muito mais do que vender seu corpo, porque as habilidades que possui não são as necessárias para as classes média ou baixa, ou é um trabalho proibido para mulheres. Como nobre, ela não pode nem entrar em um convento sem a permissão do pai.  Se ela conseguir escapar dele (lembre-se de que ele a tranca à noite e controla quem ela vê durante o dia), então tudo o que ela tem como possibilidade é uma vida nas ruas, ou nos bordéis, ou ser arrastada de volta para ele e tratada ainda pior.  As sociedades patriarcais são projetadas para tornar as mulheres completamente dependentes dos homens. Se os homens que controlam a vida de uma mulher são horríveis, então, de alguma forma, elas devem ter merecido isso, segundo a opinião pública. (SPOILER: Ela será resgatada e tudo ficará bem. O príncipe herdeiro e seu "pai" terão o que merecem. Só vai levar mais tempo do que o planejado para colocar tudo no lugar e garantir que ela saia dessa enrascada sem nenhuma culpa.)" (Nothing that has been given to her (or even if she worked for it) is hers. It all technically belongs to the head of the family, and it can be claimed as stolen. She can’t get married without his permission to anyone else or she will be returned to her father and her “husband” will be in serious legal trouble.  She can’t get a job with the nobility without his permission. She can’t get a job doing much else except selling her body, because the skills she has are not what is needed by the middle or lower classes, or is work that is forbidden to women. As a noble, she can’t even enter a convent without her father’s permission.  If she can escape from him (remember that he locks her up at night, and controls who she sees in the daytime), then all she has is a life on the streets, or the brothels, or being drug back to him and treated even worse.  Patriarchal societies are designed to make women completely dependent on men. If the men who control a woman’s life are awful, then they must have deserved that somehow according to public opinion.  (SPOILER: She’s going to be rescued and everything will be fine. The Crown Prince and her “father” will get what’s coming to them. It’s just going to take longer than they had planned to put all of the pieces into place, and make sure she comes out of this mess without any blame.)

Olha, ler essa bobajada, porque, repito, estamos falando de um mundo de fantasia em primeiro lugar, me deixou muito, muito irritada.  Fora que, vamos combinar, mesmo em sociedades patriarcais há regras e nossa mocinha estava ligada a uma família mais poderosa do que o pai que apareceu.  Se nosso duque estalasse os dedos, o vagabundo sumia  e estou falando em ir para outro plano e ninguém iria lamentar.  Como fiquei com muita raiva, redigi uma resposta tentando fazer a criatura entender que ela estava sendo ridícula e joguei meu currículo na cara dela.  Não deu certo, mas eu não vou continuar as repostagens, porque ela acredita piamente que a autora está tentando retratar a Regência inglesa (*não está, nem roupa inspirada na Regência aparece na história, a camisola da mocinha é um babydoll e ela usa calcinhas dos nossos dias*), entre 1795 e 1837, e está fazendo uns malabarismos para tentar convencer que a mocinha não tem direito algum, porque ela teve reconhecer que, mesmo na Inglaterra, que ela estava supostamente descrevendo, uma mulher solteira e maior de idade tem alguns.  Minha resposta foi:

"Bem, eu sou historiadora, feminista, na área de estudos de gênero e com tudo o que isso implica. Esta é minha profissão há quase 30 anos. Este manhwa é uma fantasia histórica, então a autora pode usar todas as bobagens que quiser e misturar elementos ocidentais e coreanos como quiser. Então, estou dizendo que, de acordo com a maioria das leis europeias ou mesmo no Brasil (meu país) no século XIX, uma pessoa de 25 anos, homem ou mulher, é maior de idade e pode fazer o que quiser. Quantos anos tem a nossa protagonista? Não sabemos, mas foi dito que ela já passou da idade de casar. E se ela não fizer parte da família ducal e não for menor de idade, ela pode se casar com quem quiser, conseguir um emprego ou fugir. Toda essa situação é ridícula, mas eu gosto da história e estou aqui perdendo meu tempo comentando.  Se ela não tem 25 anos, tudo bem. Mas, novamente, é fantasia, e não se trata de nenhuma sociedade patriarcal que conhecemos; é uma mistura do que agrada à autora. Toda essa baboseira do príncipe herdeiro tomá-la como segunda esposa ou concubina não seria possível em nenhuma sociedade ocidental desde o século XII, pelo menos. E esse tipo de baboseira histórica acontece repetidamente na maioria dos quadrinhos japoneses e coreanos.  Dito isso, estou ciente de que tudo vai ficar bem, só estou furiosa porque os dois "irmãos" não estão fazendo nada para resgatá-la."  (Well, I'm a Historian, a feminist one with gender studies in my curriculum and all that comes with it. This is my profession for almost 30 years. This manhwa is a historical fantasy, so the author can use all the nonsense and mix Western and Korean elements as they please. So, I'm saying that according to most of the European laws or even in Brazil (my country) in XIX century, a 25-year-old person, man or woman, is of legal age and can do as he or she pleases. How old is our FL? We don't know, but it was said that she was past the age of marriage. And if she is not part of the duchal family and not a minor, she could marry who she pleases, get a job, or run away. This whole situation is ridiculous, but I like the story and I'm here wasting my time commenting it.  If she is not 25, OK. But again, it's fantasy, and it's not any patriarchal society we know; it's a mix of what pleases the author. All the bullshit wth the Crown Prince taking her as a second wife or a concubine would not be possible in any Western society since the XII century at least. And this kind of historical shit happens again and again in most Japanese and Korean comics.  All that said, I'm aware that everything is be OK, I'm just mad because the two "brothers" are doing nothing to rescue her.)

Para  quem quiser o resto da discussão, está aqui.  Vejam que meu primeiro comentário nada tinha a ver com pedir verossimilhança histórica, porque eu não sou doida e tenho uma história pessoal a honrar, mas as pessoas parecem embarcar nessas histórias com disposição para legitimar qualquer sofrimento imposto às mulheres.  A normalização e espetacularização do abuso sob a justificativa de que "no passado era assim", mesmo quando se trata de séries de fantasia, é comum.  Já escrevi muito sobre isso em vinte anos de blog.  Em Bridgerton acabamos com o racismo, mas a vida das mulheres continua cheia de restrições, o Conto da Aia, livro da maior relevância, acaba se esticando como série e meio que estimulando um filão que pode ser chamado de pornô da tortura.  Não achei um artigo que eu acredito que comentei no blog e que comenta sobre séries literárias extremamente violentas que surgiram na esteira do sucesso do seriado, mas encontrei uma resenha do Metrópoles que foca nesse ponto, como O Conto da Aia é um pornô da tortura contra mulheres.

Enfim, gêneros como dark romance vão muito nessa linha e eu não gosto desse tipo de material, já li alguns para saber que não são para mim.  Mas manhwa que é o centro dessa discussão maluca e que me estimulou a escrever esse post é somente um TL (teen love) que talvez tenha o conteúdo sexual mais pesado no qual eu já tropecei.  Dito isso, eu não iria jamais fazer resenha dele e ele é, sim, para maiores de 18 anos, sem negociação.  O nome da série é Beyond the Walls of the Duke's Mansion, os homens da série são bonitos, pelo menos Evan e o príncipe herdeiro são, mas a arte é irregular, especialmente quando se trata da mocinha que pode parecer mais jovem ou mais velha sem motivo aparente (*na verdade, ela parece mais velha no início da história*).  A mocinha, Aris, debutou faz tempo, mas o irmão duque - que tem uma moral inatacável e é solteiro apesar da idade e responsabilidades - afastou todos os seus pretendentes.  Ela tem imenso desejo sexual, seu quarto é ao lado do outro irmão, que vive trazendo prostitutas, e, um dia, ela decide contratar um gigolô.  Evan, o duque, impede o sujeito de entrar e acaba tendo intimidades com Aris, que não o rejeita, mas eis que Leon tenta seduzir a mocinha.  Ambos os sujeitos sabem que ela é adotada, já Aris não sabe, mas se pega com os dois sem nenhuma culpa.  E, só para constar, as scanlations não são censuradas, o que torna o conteúdo sexual mais ostensivo ainda. O primeiro capítulo já joga uma situação muito pesada na nossa cara para somente depois começar a contar a história.  Não acho que seja para todo mundo e nem acho que a putaria da série valha isso tudo, mas eu quero saber como as autoras, porque acredito que são duas (*é  baseado em livro*), vão levar esse troço até o fim com o mínimo de coerência.  Faltam poucos capítulos para o final.  

Espero que quem chegou até aqui na leitura tenha entendido o meu ponto, não se deve tratar material de fantasia como histórico e a gente precisa estar atento para como esses autores e autoras de fantasia tem uma ideia muito distorcida do passado, assim, de forma genérica, como uma época em que os homens (*qualquer homem, porque esse pessoal nem reflete sobre questões de ordem econômica*) podiam tudo e as mulheres (*qualquer mulher, vide parênteses acima*) não podiam nada e colocam esse tipo de ideia em seus quadrinhos e livros.  Isso é uma fantasia que não nos permite ver que havia espaço para resistências, negociações e mesmo subversão da ordem e que não existe um passado patriarcal monolítico, mas que ele tem nuances que variam no tempo e  a depender da sociedade e cultura que estamos analisando.  Às vezes, as mulheres até venciam, sabe?

Aliás, só para emendar com outro manhwa que eu estou lendo, Bound by Fate, que é um isekai no qual a mocinha, que é uma médica obstetra, volta para a Dinastia Joseon (1392-1897) e encontra no passado o homem com o qual o seu destino está entrelaçado, temos um drama que meio que joga por terra até a fantasia do príncipe oriental que pode tudo.  E vou explicar, a protagonista sempre sonha que está fazendo sexo com um homem desconhecido, seu casamento vai mal, ela não consegue engravidar mesmo fazendo vários tratamentos e descobre que o marido, também médico, só que dermatologista, a está traindo com sua melhor amiga (*que engravidou*), vem sabotando as inseminações artificias e seus remédios para matá-la, porque ele quer se livrar dela, mas que ficar com todos os bens do casal.  E foi ela quem trouxe a maioria do dinheiro para o casamento.  Enfim, nossa mocinha é cética, mas vai atrás de uma xamã que lhe explica que ela só vai conseguir engravidar desse tal homem do sonho e lhe dá um amuleto funerário.   Como ela precisa mais de um advogado do que de uma feiticeira, ela acaba descobrindo o homem com quem sonha, só que sofre um acidente, por causa dos remédios sabotados pelo marido, e entra em coma.  Acredito que ela não morreu.

No passado, século XV, ela se vê casada com o mesmo traste, a melhor amiga é a madrasta do sujeito e ela está, mais uma vez, sendo envenenada e sabotada no seu intento de engravidar.  Mas em uma tentativa de fuga, ela encontra o príncipe herdeiro, que vive tendo sonhos com uma mulher sem rosto que dança para ele, por isso o sujeito vive de bordel em bordel em busca da tal mulher dançarina, porque mulher decente não dança (*não entendo nada de história da Coreia, então, não sei*).  Nossa mocinha tinha como hobby praticar dança tradicional, mas o sujeito é capaz de transar com ela, uma mulher casada, mas, não, de peruntar se ela pode dançar para ele.  Enfim, muita água já rolou debaixo dessa ponte, mas o tal príncipe, ainda que tenha arrumado um divórcio para a protagonista, que somente  o monarca ou ele poderiam conceder, não pode nem tomá-la publicamente como concubina, porque ele foi obrigado a se casar para fortalecer sua posição.  Não consumou o casamento, a noiva tem cara de vilã e parece ter uma relação incestuosa com o irmão que parece fascinado pela mocinha, mas estamos nesse pé.

Casamentos são negócios entre famílias e mesmo um monarca não pode casar com quem bem entende, nem se livrar da consorte como lhe aprouver.  Como esse manhwa parece levar a História, essa com H maiúsculo mais à sério, tendo a acreditar nele.  Então, mesmo essa história do monarca, príncipe, nobre levando uma mulher qualquer para dentro de casa, ofendendo a esposa legítima e colocando os filhos bastardos na frente dos que nasceram dentro do casamento não deve ser coisa normal nem na Coreia ou no Japão.  E digo mais, a depender do poder do clã da esposa, ia dar ruim e esse papo de que a mulher é sempre culpada pode até aparecer em privado, mas, em público, é a honra da família que está em jogo e se ela tem força, não vai levar desaforo para casa, não.

É isso.  Eu estava precisando escrever.  Se não tivesse gravado um Shoujocast (*que acredito que será um fiasco, porque praticamente ninguém assistiu*), gravaria um vídeo.  E não saiam atrás dos dois manhwas que eu citei se não forem maiores de idade.  Beyond the Walls of the Duke's Mansion nem vale tanto o esforço, é tipo "é ruim, mas eu gosto", ainda que me agradasse mais ter a mocinha somente com o Evan (*nada contra trisais na ficção, mas não gosto do Leon*), já Bound by Fate muito mais ou menos e seria melhor se tivesse menos sexo, porque a história é instigante por si mesma e o sexo, às vezes só atrapalha.  Enfim, é isso.  Não coloquei links para scanlations, não, mas é fácil encontrar.

1 pessoas comentaram:

Não sou de ler mangás, novels ou manhwas na internet, mas pela descrição que você fez desses aí, a abordagens das autoras parecem com a galera que escreve fanfic erótica. Pode ter enredo raso, contanto que as cenas de sexo sejam bem detalhadas ou cheia de reviravoltas. E entendo sua raiva: cenas desconexas, num cenário que a própria autora criou pra envolver os leitores em um dito contexto histórico e que ela não consegue amarrar os eventos que justifiquem a violência a que personagens são submetidas e tampouco manter até o final, faz parecer que duvidam da capacidade interpretativa de quem lê.

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