terça-feira, 15 de novembro de 2016

Comentando The Crown - Episódios 1-5


Nesses últimos três dias assisti metade da primeira temporada de The Crown, a série da Netflix que cobrirá a vida da Rainha Elizabeth II.  Tinha visto o trailer e ele tinha me fisgado.  O zum-zum-zum depois da estréia reforçou a minha curiosidade e, bem, estou gostando do que vejo.  Obviamente, poderia resumir o que assisti até agora como uma espiadela cheia de simpatia no mundo das elites e o olhar dos membros dessa casta sobre o resto da humanidade.  Se isso não lhe incomoda e se você se contentar com algumas fabulosas interpretações, figurinos e locações de encher os olhos, a série é para você.

A primeira temporada de The Crown cobre os últimos meses do reinado de George VI (Jared Harris) e a ascensão ao trono britânico de sua filha, como Elizabeth II (Claire Foy).  A série enfatiza o difícil aprendizado da jovem princesa, agora, monarca, a tutela de Winston Churchill (John Lithgow) e a complicada relação com o marido, o Príncipe Philip (Matt Smith), que se sente humilhado como homem e marido devido a sua condição de subalternidade em relação à esposa.

George VI é pintado como rei consciente de seus deveres e pai amoroso.
The Crown é a série mais cara já feita pela Netflix e sua produção foi empurrada pelo sucesso entre os norte-americanos de Downton Abbey.  Sucesso nos Estados Unidos, a produção da ITV deixou uma lacuna a ser preenchida.  Resultado?  The Crown é forte candidata a ocupar seu lugar.  A fascinação pela nobreza e pela monarquia movem a série, por este motivo, o olhar lançado sobre as elites é extremamente complacente, carregada de admiração.  Por conta disso, algumas críticas feitas na Inglaterra ao silêncio sobre questões sociais e a luta diária do povo comum.  Há quem ache mesmo que a série é uma ofensa a quem viveu as agruras do pós-guerra.

Eu entendo a crítica, mas a série não é sobre os pobres, não é sobre as lutas da população inglesa na recuperação do pós-guerra.  Fala-se em racionamento, mas como algo distante, marginal.   Já Clement Attlee (Simon Chandler), o mais importante dos primeiros-ministros trabalhistas e um dos articuladores do estado de bem-estar social e do NHS (National Health Service), o serviço público de saúde do país, é tratado como um sujeito chato pelo rei, que fica feliz quando Churchill retoma seu posto.  Outra coisa que deve ter incomodado muita gente é a forma como o Quênia é mostrado.  Submissão abjeta, celebração do Império e um Matt Smith encarnando todo o privilégio branco e sua falta de respeito.

O colonialismo no seu pior.
Enfim, de novo é preciso ver que o olhar é o das elites deslumbradas com seu lugar especial neste mundo.  Não se dá voz para que os quenianos falem de suas mazelas, alegrias e desejos.  The Crown não é sobre eles, agora, se a série terá 60 episódios, terá que abordar a descolonização e os conflitos.  Aliás, várias vezes nesses cinco capítulos que vi repetiram a cantilena Lord Mountbatten (Greg Wise), tio do Príncipe Philip, perdeu a Índia.  Não sei se gente como Churchill era tão obtusa assim para não saber que a perda da Índia era inevitável.  Aliás, duvido que fosse.  

De qualquer forma, Churchill, interpretado de forma espetacular por um John Lithgow que eu demorei a reconhecer, é apresentado, ao mesmo tempo como brilhante e ultrapassado, uma raposa política que muitos querem ver pelas costas, mas que sabe virar o jogo.  Vide o capítulo da grande nevoeiro que mostrou o quão insensível e sagaz Churchill poderia ser.  Agora, ele só se compadece dos que sofrem, e talvez 12 mil pessoas tenham morrido em virtude da neblina venenosa que ficou dias sobre Londres, porque sofreu uma perda pessoal.  Individualista, elitista, mas com o olhar de um estadista, este é o Churchill da série.

O episódio da neblina foi o único que
mostrou o drama de pessoas comuns.
Continuando falando de Churchill e já passando para o Duque de Windsor (Alex Jennings), duvido que o homem que foi mostrado gritando impropérios na igreja para as irmãs do Príncipe Philip por elas serem casadas com nazistas notórios fosse ser tolerante com o ex-Eduardo VIII.  Aliás, até o momento, pelo menos, a série parece ter apagado do currículo do rei playboy o fato dele ter flertado com o nazismo, enfatizando, somente, que ele renunciou “por amor”.  Sim, eu acredito que Eduardo VIII renunciou ao trono por amar a americana, plebeia, três vezes divorciada Wallis Simpson, mas creio, também, que o Gabinete de ministros e outros políticos respiraram aliviados por terem como força-lo a sair de cena.  

Quando ainda era príncipe herdeiro, durante os anos duros da depressão, Eduardo VIII quebrou o protocolo em discursos nos quais prometia, quando rei, fazer na Inglaterra o que Hitler estava fazendo na Alemanha.  Populista, há indícios de que ele sonhou em retomar o trono com a ajuda do Füher, fora, claro, e isso é bem discutido na série, gastava horrores graças à pensão que recebia do governo da Inglaterra.  Já sua amada Wallis era admiradora de Hitler e tinha conexões nazistas, ele, após renunciar, fará uma visita ao ditador.  Documentário britânico aqui, para quem quiser.

David, antigo Eduardo VIII, e sua amada Wallis.
O Duque de Windsor da série tem língua ferina, mas é pintado como vítima da intolerância, do tradicionalismo cego, da falta de compreensão com o amor.  Um homem charmoso (*sim, ele era*), cheio de bons sentimentos e devotado à sua esposa (*certamente era*), injustiçado pela família.  Também vejo como muito difícil que ele, um tio distante e detestado pela mãe da Rainha, fosse utilizado por Churchill para dar conselhos para a jovem Elizabeth e, mais ainda, conseguisse convencê-la de alguma coisa.  Estão forçando a barra e embelezando um sujeito com uma ficha corrida das piores.  

Talvez essa ladainha de “amor, amor, amor” tenha alguma função para mostrar o drama da irmã de Elizabeth, a princesa Margaret (Vanessa Kirby), que mantém um romance com um homem casado e não conseguirá casar-se com ele depois do divórcio.  Nenhum membro da família real pode se casar sem a permissão real pelo Royal Marriages Act 1772 (*reformado em 2015*).  Quem o fizesse estaria agindo contra a lei, o casamento seria considerado nulo e privilégios seriam possivelmente perdidos.  O possível casamento da Princesa Margaret com Peter Townsend (Ben Miles) era um escândalo e contra as regras vigentes da Igreja Anglicana.  

Pobre Margaret... 
Falando da princesa Margaret, achei que a atriz parece mais velha do que deveria ser a princesa, mas, depois, percebi que, talvez, a idéia fosse destacar o quanto ela queria parecer mais madura.  Ela de fato tinha uma vida mais mundana, algo de socialite, que a irmã não queria ou podia ter.  Assim como o pai, que foi empurrado para o cigarro por recomendação médica para sanar a gagueira, ela fumava demais e morreu também em virtude dos malefícios do cigarro.  Aliás, como fumam as personagens da série?  Estranhei, no entanto, que uma mulher como a Rainha Mary, remanescente de uma época em que o fumo não era visto como “coisa de mulher” fosse retratada como uma fumante inveterada.  De qualquer forma, espero que as pessoas entendam a mensagem, fumar não é chique, um dia foi vendido como tal e vejam quanta tragédia.

Voltando ao Duque de Windsor, o que acho válido na sua representação na série é a forma como sua mãe – a rainha Mary (Eileen Atkins) – e o outros membros da família o tratam.  Alguém que traiu as suas responsabilidades, que não colocou o dever acima de seus desejos pessoais.  Aqui, neste ponto, vale o discurso do amor, sim, porque é a única justificativa do Duque para abandonar a pesada carga nas costas do irmão, George VI, e, consequentemente, de sua filha.  Destaque para a cena em que Elizabeth cobra do tio um pedido de desculpas por roubar dela a vida de mulher comum, esposa e mãe devotada, que ela desejava ter.  E, vejam bem, essa é a Elizabeth ficcional, porque sei lá se esta lamúria sairia da boca da verdadeira Rainha da Inglaterra.

Rainha mãe e Rainha Avó.
De qualquer forma, o ponto alto da série até agora, para mim, é exatamente este drama sobre papéis de gênero entre Elizabeth e Philip.  Ela, à princípio, a rainha relutante, que tateia para saber por qual caminho seguir.  Uma mulher que ama o marido, que deseja ser submissa a ele (*daí incluir em seu rito de casamento a promessa de obedecê-lo*), mas que passa a ser “A Coroa”.  E, neste ponto, sobram cenas que apresentam espetacularmente essa situação.  O secretário pessoal herdado do rei, Tommy Lascelles (Pip Torrens), barrando o Príncipe Philip quando ele quer descer as escadas do avião ao lado da esposa “A Coroa primeiro”.  O rosto de Claire Foy mostra todo o impacto dessa nova realidade.  A dor.

Mais adiante, a Rainha Mary diz para a neta que Elizabeth Mountbatten está morta, que ela é, a partir de então, a Coroa.  Para Philip trata-se de uma ofensa.  Ele que, pelo menos na série, sonhava em ter uma nova dinastia em seu nome, um sujeito ciente dos seus privilégios masculinos, sendo reduzido a um apêndice de sua esposa.  Nesses primeiros capítulos ele luta, se debate, tenta chantagear Elizabeth “a esposa”, mas fracassa.  A Elizabeth de The Crown é uma mulher aparentemente comum, isto é, assujeitada aos papéis de gênero tradicionais, mas, também, um monarca ciente de seus deveres, poderes, ainda que tateando sobre os limites entre o público e o privado.  

Linda roupa, linda mesmo.
Aliás, uma das questões dramáticas é que ela não tem mais uma vida privada, tudo é assunto de Estado.  A Elizabeth de The Crown assume suas responsabilidades e, de certa forma, se mescla com a Coroa.  Se ela perde a identidade de “esposa e mãe”, ela, ao mesmo tempo, tem a cada momento lembrada a sua condição de mulher entre homens e de jovem, porque, sim, este é outro fator importante.  Um rei jovem seria tratado de forma diferente?  Não duvido, mas o fator juventude faz com que uma certa tutela seja imposta à protagonista e Elizabeth, ora se submete, ora se revolta.  Ser a Coroa tem vantagens de desvantagens.  Há críticos que estão dizendo que a série é sobre homens mandando em uma mulher, mas eu não consigo reduzir a Elizabeth de The Crown a somente isso.

Philip é apresentado, junto com seu arrivista tio Mountbatten, como um sujeitinho detestável.  Ele ama a esposa?  Não sei, mas o casamento foi muito útil para um príncipe sem coroa e sem grandes recursos.  Ele quer ter um papel preponderante no reinado da esposa, ele acha que é seu direito ser eximido de certos protocolos como forma de afirmação de sua masculinidade.  Ele não deseja ser reduzido à função de belo garanhão reprodutor, quer ser mais importante do que de fato é dentro do teatro da monarquia.  Só que ele fracassa nesse aspecto e sei que conflitos virão.  Quanto ao casamento dos dois, eu já sabia que a maioria da família real era contra, da teimosia de Elizabeth, que, ainda bem, não é apresentada como uma louca apaixonada capaz de se anular como a Rainha Vitória aos pés do seu Albert, prevaleceu no final, mas há uns ingredientes meio esquisitos nessa trama.  Quer dizer, esquisitos, para mim.  Vamos lá!

Ajoelha, ou não ajoelha?
A Rainha Mary é em The Crown uma tentativa de emular a Condessa Viúva de Downton Abbey, interpretada pela espetacular Maggie Smith.  Daí, a língua ferina da rainha.   Só que Mary of Teck era mais conhecida pela sua pose régia e aparente frieza glacial.  Ainda que, no seriado, ela seja a pessoa mais ciente dos deveres da Coroa, como quando ela lembra das três monarquias quen viu desmoronar (Habsburgo, Romanov e Hohenzollern, provavelmente), ela me pareceu bem-humorada demais.   Fora, claro, que sua preponderância meio que anulou, até o episódio cinco, pelo menos, a importância da rainha mãe, também Elizabeth (Victoria Hamilton).

Enfim, a Rainha Mary chama Philip e sua família de “parvenu”, novos ricos, gente de nobreza pouco atestada, mas isso é bem absurdo.  Chamar os Bonaparte de “parvenu”, OK, mas Philip descende por um lado da Rainha Vitória, é tataraneto como a esposa, e pelo outro lado da casa real da Dinamarca.  Ora, o avô de Philip era irmão da avó de Elizabeth, sogra da própria Rainha Mary e de linhagem impecável, ou não teria casado com o filho mais velho da rainha Vitória.  Uma outra irmã dos dois, Dagmar, casou-se com o Czar e era mãe de Nicolau II.  Vocês acham que o Czar casava com "qualquer uma"?  Ora, o que estou querendo dizer é que falar que o trono da Grécia era novo é uma coisa, falar que Philip e sua família era de pedigree inferior é outra.

A coroação.
De qualquer forma, o argumento do “parvenu” não se sustenta.  Poderia ser dito que ele não pertencia mais a uma casa reinante, mas, ainda assim, ele era membro da família estendida da rainha Vitória.  Usar o argumento de proximidade com os alemães e, claro, os nazistas, foi outra bobagem, afinal, tanto Windsors (Saxe-Coburg and Gotha), quanto Mountbattens (Battenberg), tinham nomes alemães, porque eram famílias originárias dessa região, e mudaram seus nomes de família durante a I Guerra.   Toda a casa real britânica era de origem alemã.  

E qual era o argumento afinal?  O arrivismo dos Mountbatten?  Sim, isso é bem mostrado na série, mas não tão bem trabalhado no discurso.  A pobreza de Philip?  Muito provavelmente.  Agora, há um outro fator semi-silenciado, a mãe de Philip, que sofria de surdez congênita como a Rainha Alexandra, bisavó de Elizabeth, foi tratada como mentalmente desequilibrada, acho que o pai do Príncipe também não foi considerado muito são.  Esse temor de uma veia de loucura poderia ser razão forte para melar um casamento.

John Lithgow é um dos destaques da temporada.
De qualquer forma, é bem mostrado o desconforto do rei, um belo desempenho de Jared Harris (*embora eu ainda prefira Collin Firth no papel*), quando vai sagrar o quase genro como duque.  Ele está tão nervoso que gagueja e tem que ler.  Lendo, a gagueira que atormentava o rei se diluía.  Falando em rei e na rainha mãe, eles eram, sim, muito populares.  Eles ficaram em Londres durante os bombardeios da II Guerra, a Rainha Elizabeth (*mãe*) se recusou a ir para o Canadá com as filhas como forma de proteção.  Tudo isso ajudou no esforço de guerra.  É o efeito simbólico do monarca cidadão, algo que entra em certa contradição com a idéia de ungido por Deus, que a série também tenta trabalhar.  Agora, só não sei se o Duque de Windsor era tão popular quanto a série quer fazer crer... 

Há muito mais a comentar.  Duas cenas em particular me pareceram fora do lugar.  O Príncipe Philip comentando do nada com Townsend sobre o acidente de avião que matou sua irmã, a princesa Cecile e os filhos.  Não houve função alguma, ou houve e eu não percebi?   E a rainha Mary sendo provinciana nos seus comentários sobre a Igreja da Inglaterra em relação à outras igrejas, como a Grega.  Ora, a Igreja Ortodoxa tem muito mais história do que a Igreja Anglicana, mas é aquilo, tentaram fazer da rainha Mary uma cópia com poucas alterações da Condessa Viúva.  Ela funcionou melhor como voz da estabilidade monárquica, das tradições e no seu rancor para com o filho que abdicou do trono. 


É isso.  Tentarei terminar de assistir The Crown até o fim da semana.  Se não tivesse tanta coisa para fazer, tinha emendado cinco episódios de carreirinha e terminado em dois dias.  Terminando, faço a segunda resenha (*eu espero*).  A série é muito boa.  Grandes interpretações e, mesmo que fantasiosa, ela consegue retratar de forma muito interessante o período histórico e questões de gênero que continuam aí até hoje, independente de uma mulher ser a Coroa, ou não.

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