domingo, 10 de dezembro de 2017

Um dos posts mais visitados do Shoujo Café é um retrato do Brasil atual


O Shoujo Café, quem vem aqui com frequência sabe, tem como seu assunto principal discutir mangás e animes para o público feminino, josei e shoujo, especialmente, sob uma ótica feminista (*este ponto último é fundamental*).  Eventualmente, ou nem tanto, falo de cinema, novelas, livros, seriados, outras animações, questões que de alguma forma atinjam as mulheres, algo que tenha achado curioso e, depois que me descobri grávida, até alguma coisa sobre maternidade-maternagem e Júlia Alita (*sim, vai ter um guest-post sobre o trailer, aguardem*), minha filha.  Pois bem, algo que eu acredito ser curioso é como certos posts atraem a atenção.  Raramente são textos elaborados, mas os corridos, pouco pretensiosos (*eu sei que posso ser pretensiosa*), que atraem atenção, gente e comentários.  Como comentar, aqui, é difícil, afinal, não permito anonimato e tudo passa pela minha aprovação, a pessoa tem que se esforçar para deixar sua "opinião".  Eu sempre fiquei fascinada com o tipo de post que é mais visitado no Shoujo Café, deem uma olhadinha só:

Os posts mais visitados do Shoujo Café em todos os tempos.
Durante muito tempo, os dois posts mais visitados eram o da resenha do primeiro filme dos Vingadores e o Mangá para Macho que gosta de Macho, esse título sem vergonha que dei, fazia com que um post sem nenhuma relevância aparecesse no topo das buscas do Google.  Daí, veio o post sobre Oya - Rise of The Orisha, o filme nigeriano sobre os orixás.  Houve um dia que esse humilde site que tem uma média de 3 mil visitas dia, se muito, chegou às 100 mil e eu fiquei assustada.  Meu marido até brincou dizendo que eu deveria mudar o foco do blog e escrever sobre Candomblé, que iria ser um sucesso, enfim... Quando veio Sol Nascente, novela da Globo que escalou o excelente Luís Mello como japonês, comentei o caso e atrai uma quantidade enorme de visitas, tornou-se o segundo post mais visitado do blog, mas, pelo menos, está relacionado ao tema do site de alguma forma... Agora, o post mais surpreendente desse top 5 de todos os tempos é Júlia, a Patrulha Canina e a subversão dos gêneros.

Qualquer um que resida nesse país está a par de como certos temas tem mobilizado a audiência, um deles é uma ficção que foi forjada por intelectuais católicos reacionários, caiu no gosto dos evangélicos, e virou bandeira de muita gente, a tal ideologia de gênero.  Existem estudos de gênero, aliás, minha linha de pesquisa no meu doutorado em História era na linha de Estudos Feministas e de Gênero, mas ideologia de gênero não existe para a academia, até, claro, que se tornou o que se tornou, um fenômeno de massa (*ou de manada*).  Uma cortina de fumaça que subiu dos arraiais conservadores, hoje mobiliza gente na internet e nas ruas contra propagandas da Avon e do Omo, para impedir que uma intelectual do porte de Judith Butler possa falar, e mesmo para tentar agredi-la em um aeroporto brasileiro.  Bem, qual o motivo do preâmbulo enorme?

Deixar crianças brincarem livremente
é ideologia de gênero, sabia?
 Ano passado, escrevi o tal post sobre Patrulha Canina.  Para quem não sabe, Paw Patrol, seu nome original, é um dos tantos desenhos animados americanos atuais feitos para vender brinquedos.  Este tipo de material existe, acredito, pelo menos desde nos anos 1970, a diferença é que, nos últimos anos, os brinquedos chegam nas lojas brasileiras e acabam impactando o orçamento familiar de gente de classe média, como eu aqui.  Enfim, no segundo semestre do ano passado, Júlia estava apaixonadíssima pela Patrulha Canina.  Fiz o tal post dizendo que não gosto de materiais infantis gendrados (*marcados para meninos ou para meninas*), que a maioria dos desenhos de aventura são pensados para meninos, e deixam isso muito claro nas cores que usam e, claro, na quantidade de meninas/fêmeas que tem.  

No caso de Patrulha Canina, são seis cachorros base: Marshall, Chase, Rubble, Zuma, Rocky e Skie.  Se fosse seguida a desproporção padrão da maioria dos desenhos que tem mais meninos que meninas, teríamos, pelo menos, duas meninas nesse grupo de seis.  Fora o núcleo principal, há mais três cachorros que aparecem de forma recorrente: Apollo (*o super-cachorro*); Everest, outra fêmea (*cujos brinquedos apareceram uma vez para nunca mais, salvo a pelúcia*) e Tracker, o mais recente, outro macho.  Ano passado, hoje seria diferente, porque Júlia já está sendo socializada nesse mundo cheio de papéis de gênero e desigualdades, isso incomodava minha menina.  Logo, ela dizia que Marshall e Zuma eram meninas por causa da voz e por compensação, também.  Eu, ao escrever o tal post "de sucesso", acreditava que era uma ação dela, uma espécie de subversão dos gêneros, mas, não, era problema de dublagem.  Eu deveria ter pensado na explicação mais simples primeiro.

As cores e as duas personagens femininas
determinam o público do brinquedo.
Vamos lá, muitos anos atrás, eu nem era casada ainda, fui a um evento no Rio de Janeiro, Anime Rio, eu acho, e havia uma mesa com três dubladoras.  Uma delas ressaltou a falta de cuidado com a dublagem no Brasil (*que passa por condições de trabalho, remuneração*) e que, normalmente, não se dá a devida atenção às animações para a TV.  O caso que ela citou como emblemático foi o Milhouse de Os Simpsons.  Trata-se de uma personagem secundária importante, o melhor amigo de um dos protagonistas, e muito recorrente, mas que, ao longo dos anos, tem tido vários dubladores diferentes (*segundo a Wikipedia, dez*), inclusive com tons de voz muito distintos.  A gente sabe que a voz, a interpretação, pode, inclusive, impactar a forma como percebemos uma personagem.  Vou citar um exemplo, Hikaru Sulu, o navegador da série clássica de Jornada nas Estrelas, tinha, nas primeiras dublagens brasileiras, uma voz fina.  Japonês não pode ser viril, é pequeninho (*e há todas as piadas sexuais chulas relacionado a isso*), franzino, né? O ator, George Takei,  tem um vozeirão.  Quando, já adulta, ouvi sua voz pela primeira vez, foi um susto.  Minha percepção da personagem mudou, também.

Acredito que a primeira temporada de Patrulha Canina tenha sido tratada a la Milhouse, não se preocuparam muito em saber quem era macho, quem era fêmea, e as personagens dúbias, pela cor (*vermelho e laranja*) foram transformadas em meninas.  Gente mais velha, como eu, ainda é do tempo que as meninas não tinham sido confinadas a pantone dos rosas e lilases.  As crianças percebem, claro, mas quem disse que esse pessoal acredita que elas notam essas coisas?

Pantone do Rosa.
Enfim, atualmente, há mais comentários no tal post da Patrulha Canina do que no dos Orixás.  A maioria tem sido publicada, porque são divertidos.  Vejam só:
1. Há quem acha que eu quero obrigar minha filha a assistir somente desenhos para meninas, já que eu acredito que Patrulha Canina foi pensado para garotos (*é meio óbvio, mas...*); 
2. Tem o pessoal que vem avisar que foi somente um erro de dublagem.  Sim, a gente descobriu isso rápido.  No começo, a Júlia dizia coisas como "nesse episódio, Marshall é menina, nesse outro, é menino".  Virou gender fluid. ^_^
3. Quem fala que agora entendeu por qual motivo o filho ou a filha quer fazer coco em qualquer lugar.  Os cachorros de Patrulha Canina nunca fazem suas necessidades, aliás, como na maioria absoluta dos desenhos americanos.  Até vieram outros comentaristas pontuar isso.
4. Os que acham que essa confusão com vozes é uma estratégia  dos que querem impor (*a Globo, muito provavelmente, os gays, as feministas e os esquerdistas em geral*) a terrível ideologia de gênero às nossas criancinhas, que devemos proteger nossos meninos e meninas dessa influência nefasta.  Amém!
5. Tem os que repetem jargões como "Esse mundo está chato!" ou "Vocês querem impôr o politicamente correto até nos desenhos animados".  Eu somente comentei o comportamento da Júlia, eu não tenho poder para mudar nada na Patrulha Canina e tenho muito mais o que fazer no momento, afinal, ela nem está tão interessada nessa série como antes.
6. Se incomoda você, não deixe sua filha assistir, coloque a menina para ver somente desenhos de menina.  Será que a pessoa entendeu o que eu escrevi?
Livro obrigatório, eu diria.
De saldo, eu diria que as pessoas tem muita dificuldade em leitura e interpretação de texto (*algo que eu, professora de História, já sabia*) e escrevem muito mal.  Falta coerência e coesão, fora, claro, concordância e problemas diversos de grafia que são consistentes demais para que tenham sido fruto da simples falta de uma releitura.  Em linhas gerais, a gente entende.  Não sou nenhum primor de escritora, não estou exigindo a norma culta, sou adepta da linha do Marcos Bagno, mas vários comentários são expressão da confusão mental das pessoas, do terror que está instalado na internet, e difíceis de compreender na sua totalidade. É triste, mas o conjunto dos pequenos textos que deixaram nesse post popular somente por causa da histeria das pessoas daria um artigo.

O fato é que vivemos um momento muito complicado.  A internet deu voz aos que não tem voz e isso é muito bom por um lado, democracia não deve ser deplorada, mas, ao mesmo tempo, permite que as pessoas despejem uma quantidade de preconceitos, ódios, falta de educação (*aquela que a gente recebe em casa*) e neuroses em proporções cavalares.  É o que eu vejo nesse post de menor importância, ele é retrato da atenção desmedida que as pessoas estão dando para as cortinas de fumaça que os setores que ajudaram a derrubar o governo Dilma estão criando, enquanto os que os remuneram, e mandam de verdade no Brasil, vendem as riquezas do país e retiram nossos direitos.  Daí, trocarem a voz dos cachorrinhos - como já trocaram de outros desenhos tantas vezes - vira um atentado deliberado á inocência da infância, á família tradicional brasileira, com o intuito de corroer os pilares da nossa sociedade.  

Repensar é importante sempre.
Terminando, houve uma propaganda política esta semana, não sei de qual partido de aluguel de direita, que começou alertando para a violência de gênero e os feminicídios, continuou convidando as mulheres a participarem da política (*há cotas obrigatórias a cumprir*) e terminou dizendo se opor a vil ideologia de gênero e que vamos continuar, sim, chamando nossas meninas de princesas e nossos meninos de príncipes.  É um nonsense total, já que junta demandas e vitórias feministas, linguajar feminista, para terminar em uma apologia confusa aos papéis tradicionais de gênero.  De qualquer forma, se nada faz sentido, ou precisa fazer, já aviso uma coisa, na minha casa não chamamos ninguém de príncipe, ou princesa, porque somos REPUBLICANOS, OK?

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