sábado, 20 de janeiro de 2018

Comentando A Batalha dos Sexos (Battle of the Sexes, 2017)


Quinta, terminei de assistir um dos grandes filmes de 2017, mas que rendeu menos do que deveria: Batalha dos Sexos (Battle of the Sexes).  Baseado em um evento real, a partida de tênis entre uma das maiores tenistas da época, Billie Jean King, e o campeão aposentado Bobby Riggs, em 1973.  No auge do movimento feminista, a partida terminou atrelada às discussões sobre a superioridade natural dos homens sobre as mulheres e disputas sobre melhores prêmios para as tenistas.  Para além dos holofotes, A Batalha dos Sexos mostra o drama enfrentado pelos homossexuais obrigados a ficarem no armário. No geral, é um filme extremamente engajado politicamente, atual, porque discute uma série de pautas que ainda hoje são importantes, fora isso, o elenco é muito bom com destaque para Steve Carell e Emma Stone, que interpretam os dois tenistas que se enfrentam na quadra.

Billie Jean King era uma das tenistas mais bem-sucedidas do mundo e militante feminista, junto com Gladys Heldman (Sarah Silverman), ela confronta o Jack Kramer (Bill Pullman), ex-tenista e presidente da principal associação de tênis dos EUA, a Lawn Tennis Association, a respeito da gritante diferença dos prêmios oferecidos às mulheres e aos homens. King e Heldman terminam por liderar um grupo de oito tenistas (Rosie Casals, Nancy Richey, Judy Dalton, Kerry Melville Reid, Julie Heldman, Peaches Bartkowicz, Kristy Pigeon e Valerie Ziegenfuss) que rompem com a associação e partem em uma turnê que dará origem à Women's Tennis Association (WTA).  Durante a turnê, patrocinada por uma companhia de cigarros (a Virginia Slims), King conhece a cabelereira Marilyn Barnett (Andrea Riseborough) e precisa confrontar tanto a sua homossexualidade, quanto a culpa em relação ao adultério.  


The Original 9.  A foto é reproduzida no filme.
Do outro lado, temos o velho tenista Bob Riggs, um viciado em jogo e infeliz no casamento, que decide desafiar King para uma partida definitiva que provaria quem era superior, os homens, ou as mulheres.  King não se mostra interessada e Riggs faz a mesma proposta para a então primeira colocada no ranking mundial, a australiana Margaret Court (Jessica McNamee).  Ela aceita e o enfrenta em 13 de maio de 1973 no que ficou conhecido como “Massacre do Dia das Mães”.  King então aceita enfrentar Riggs, porque compreende a importância desse evento para a causa dos direitos das tenistas e das mulheres.  Um grande evento midiático, que rendeu muito dinheiro, ou perda de dinheiro, para os envolvidos, o show foi mais do que uma partida, era a evidência de que uma guerra estava em andamento e que, pelo menos naquele dia, as mulheres venceram.

Antes de A Batalha dos Sexos estrear, eu estava acompanhando de longe a produção, no entanto, como tantos outros filmes que eu esperava ansiosamente, o filme entrou no circuito sem alarde, o que é estranho, vejam que Emma Stone ganhou o Oscar de Melhor Atriz ano passado, em poucas salas e todas à noite.  Péssima estratégia, ou nenhuma, aliás, para vender um produto.  Eu não gosto de ir ao cinema à noite, porque sei que se estiver cansada, algo recorrente, eu durmo.  Seja o filme bom, ou não, a possibilidade de cochilar é grande.  Depois do nascimento de Júlia, aí é que eu não vou mesmo.  É hora de estar com ela, mas meu colega de equipe de História voltou empolgadíssimo da sessão e disse “O filme é muito bom e você com certeza vai gostar dele”.  Sim, ele estava certo nos dois pontos.  Steve Carell, que é um ator que eu gosto muito, virou Bob Riggs, já o filme, ele é tão bem executado que eu sei que estará na minha lista de melhores coisas que eu assistirei este ano.  


Sair do armário seria o fim da carreira da tenista.
O filme já começa com uma questão que é relevante até hoje. Mulheres normalmente ganham menos que os homens, 70% do que os homens recebem, na média, mas se forem mulheres negras, por exemplo, a coisa pode piorar ainda mais.  No caso dos prêmios do tênis, na época do filme, a coisa era gritante. As mulheres lotavam as partidas, os ingressos tinham o mesmo valor, mas as premiações eram até sete vezes menores para elas.  Confrontado, Jack Kramer, o verdadeiro vilão do filme, se existe algum, claro, considera perfeitamente normal: homens são superiores fisicamente, são mais competitivos, a audiência prefere suas partidas.  Evidências?  Nenhuma.  

O sujeito levantou, também, o velho argumento: mulheres não sustentam famílias, elas podem ganhar menos.  Percebam que este argumento é usado desde antes do capitalismo, mas se tornou central depois da Revolução Industrial.  Crianças, jovens mulheres, esposas, trabalhavam o mesmo que os homens, mas produziam mais lucro, porque, bem, recebiam menos, metade, até mais do que os homens recebiam.  As tenistas não eram tratadas de forma diferente.  Obviamente, tenistas homens controlavam a associação e trabalhavam em prol da manutenção desse domínio.  O prestígio de sua classe, seu poder simbólico e econômico deveria ser reforçado.  Assim, era bom ter mulheres jogando, porque elas ficam bem com suas pernas de fora, mas tênis de verdade, era o que os homens jogavam.  


A união faz a força.
Gladys Heldman – a feminista mais engajada da película – lutava contra essa desigualdade desde a época em que ela própria era atleta.  Como jornalista esportiva, grande promotora do esporte, mãe de uma das grandes tenistas da época, ela lutava por condições mais justas para as mulheres fazia tempo.  O rompimento das nove tenistas, lideradas por Heldman e King, com a federação as coloca na estrada.  A situação era precária, mas elas persistiram e, de certa forma, conseguiram alcançar alguns dos seus objetivos.  O que o filme evidencia era a empáfia dos homens, os que comandavam o tênis no país, tratando as mulheres com extrema condescendência, tipo “fiquem satisfeitas de deixarmos vocês jogarem”, ao mesmo tempo em que criam que qualquer tenista homem – mesmo um aposentado fazia tempo – poderia vencer uma mulher, mesmo sendo ela a primeira do mundo.   

Bob Riggs, que foi um grande tenista em sua época, era um campeão, mas tinha se tornado viciado em apostas. No filme, ele acaba se empolgando com a possibilidade de lucrar em cima da atmosfera geral de luta feminista.  A Batalha dos Sexos não o pinta como um vilão, um sujeito mau, mas um cara assujeitado ao vício, machista, sim, mas não um misógino, e preso em um casamento infeliz.  Casado com uma mulher de uma família muito rica, trabalhando em uma ocupação medíocre nas empresas do sogro, e querendo atenção.  No verbete da Wikipedia, há muita informação sobre as atividades de Riggs como promotor do esporte em eventos de grande atenção midiática, ou seja, a tal “Batalha dos Sexos” não foi caso isolado, nem ele era um inimigo das mulheres ou tinha poder para determinar os prêmios que receberiam, só quis se aproveitar do momento e foi utilizado por aqueles que realmente tinham poder de decisão.


O "Massacre do Dia das Mães".
Quando vi o filme, fiquei um tanto encucada com a imagem que construíram de Margaret Court, a australiana que tira de King o primeiro lugar no ranking, e Ted Tinling (Alan Cumming), o estilista das tenistas.  Margaret Court é apresentada no filme como uma grande atleta, mas a antítese de Billie Jean.  Ela não era feminista, tinha marido, que a acompanhava nas turnês e um filho pequeno.   Court é mostrada, também, como homofóbica e moralista.  Indo atrás de informações sobre ela, Court realmente milita contra os direitos dos LGBT e se tornou ministra evangélica (*ela nasceu em uma família católica*).  No filme, ela tem um gaydar afinadíssimo e diz ao marido, perplexo, que King tinha uma amante.  O pobre homem se espanta, porque, bem, King era muito bem casada.  

Court aceita jogar com Riggs no filme, porque o prêmio era vantajoso.  Ela e o marido viviam com poucos recursos e não tinham como contratar uma babá.  A personagem, no entanto, não consegue transpor – como muitos fazem – sua experiência pessoal para um quadro mais amplo.  Ela não mostra empatia.  Se ela fosse um homem, certamente teria recursos para manter uma estrutura melhor para sua família, mas sendo mulher, seus proventos eram muito baixos, mesmo como primeira do ranking.  Ela também não consegue identificar como estranho, apesar de suas posturas conservadoras, o arranjo que é seu casamento, com um marido vivendo em função da carreira da esposa e cuidando de um bebê para que ela pudesse se exercitar.  Só lembrando, a imagem que o filme pinta de Court, uma das melhores tenistas de sua geração, é negativo e não pode ser tomado como expressão da verdade.  


Perplexidade diante da derrota de Court.
Em A Batalha dos Sexos, ela é escolhida por Riggs e os que o estão orientando, porque, bem, ela não se vê como potencialmente igual aos homens, mas como inferior.  Para eles, ela já entrou derrotada e foi, sim, um massacre.  Midiaticamente, isso foi muito importante.  Se a primeira do ranking,  “The Arm”, não podia vencer um aposentado de 55 anos, isso era evidência mais que suficiente da inferioridade das mulheres.  Exatamente por causa disso, Billie Jean King precisa jogar a partida.  Riggs, no entanto, interpreta de forma ainda mais radical o resultado.  Para o jogo com Court, ele treinou muito, para jogar com Billie Jean, ele relaxou e tomou suplementos alimentares.  Na verdade, foi contratado por uma empresa e virou seu garoto propaganda.  Aparece uma foto no final do filme.

Ted Tinling, a outra personagem a se comentar, me deixou em dúvida.  Ele seria uma invenção do filme?  Na película ele é o estilista da WTA, uma figura que vai revolucionar os uniformes femininos, rompendo com a obrigatoriedade do branco.  Futilidade, alguns diriam.  Ele trabalha junto com o companheiro, ambos homossexuais assumidos, e tem o gaydar afiado (*isso parece ser questão de sobrevivência*), também.  Ele percebe que King está no armário e tem uma amante ao mesmo tempo que Margaret Court.  Ele ajuda a despistar os fofoqueiros e tenta evitar que o marido de King, Larry (Austin Stowell), a pegue junto com a amante.  No final, em uma cena tocante, ele consola king e lhe garante que um dia, ela poderia ser como eles (*Os homens gays? Não creio. Os estilistas?  Talvez.*) e viver fora do armário. Limpa as lágrimas dela e recomenda que seja forte.  Até comentei que ele parecia a “fada madrinha” de Billie Jean, enfim...


Tinling e seu companheiro.
O verdadeiro Tinling realmente revolucionou o figurino das tenistas e desenhou os uniformes de praticamente todos os grandes nomes do esporte até os anos 1980, pelo menos.  Era homossexual assumido e militante das causas LGBT em um momento em que ser gay ainda era algo visto como crime, ou doença.  O cara, no entanto, tinha muito mais currículo, porque tinha sido espião na II Guerra Mundial, entre outras coisinhas.  De resto, ele foi um dos melhores amigos de Billie Jean King.  O filme não mostrou de forma muito clara essa relação de amizade.  Ficou parecendo que eles estavam se tornando amigos, ou que Tinling era só isso mesmo, um cara legal e cheio de empatia que apareceu na vida da tenista.  

Indo, agora, para Billie Jean e seus dramas. Em primeiro ligar, o filme pinta muito bem a atleta feminista, absolutamente em consonância com as bandeiras da época e consciente de seu papel.  Ela era – ou se via – como a melhor tenista do mundo, tinha que ser líder em um momento tão difícil.  Ela tenta, no entanto, evitar o confronto com Riggs por conhecer a fama do sujeito, não por temer jogar com um homem. Riggs era um fanfarrão, um palhaço e um viciado em jogos.  O inimigo das mulheres não era ele, mas se envolver na “Batalha dos Sexos”, a obriga a fazer parte do circo que Riggs e seus patrocinadores montaram.  Não darei detalhes.


Foi um circo.
Agora, o drama pessoal da tenista era muito grande.  King era lésbica, mas vinha de uma família conservadora e temia perder o amor dos seus (*ela diz isso em entrevistas*).  Casou-se com um homem, era o que se esperava que ela fizesse, que, por tudo que li, era um sujeito “do bem”.  Ele lhe apresentou às ideias feministas.  Os dois pareciam um casal perfeito, moderno e bem afinado.  Ele tinha seu emprego e não a acompanhava nas turnês para não atrapalhar seu desempenho (*Concentração ou a velha ideia de que sexo atrapalha a performance de um atleta ou guerreiro?*).  

King reprime seus desejos, aqueles que as duas personagens que citei já perceberam, mas termina aceitando o assédio da cabelereira (*no filme, Marilyn Barnett insiste muito*).  Larry descore e se cala.  Só que um divórcio seria um escândalo.  A revelação da homossexualidade, também. Sua carreira como atleta estaria destruída.  Ainda hoje, atletas – homens e mulheres – perdem contratos e são hostilizados por simplesmente saírem do armário.  Para os homens gays é como se sua orientação sexual lhes roubasse, de repente, todos os atributos de virilidade que os tornariam competitivos.  Alguns atletas homofóbicos passam a declarar seu medo: e se o fulano me assediar.  Se a coisa ocorre em esportes coletivos com torcida envolvida, então... As mulheres é falta de homem.  Safadeza.  Se quer “ser homem”, que vá competir com eles... 


The Original 9 em 2012.
Percebem os riscos que Billie Jean corria?  As acusações que sofreu quando somente desconfiavam e depois?  Uma mulher “de verdade”, perderia o jogo.  Ela não era uma mulher de verdade... O filme não foge dessas discussões.  E, hoje, há outra coisa que se relaciona a isso e que me incomoda muito: ainda há quem acredite que um homem, qualquer homem, sempre irá vencer uma mulher, independente da sua qualidade como atleta.  É ridículo e bastaria observar a sociedade e os índices do atletas homens e mulheres, sua evolução ao longo das décadas.  No entanto, até certos segmentos do feminismo abraçam essas ideias essencialistas para obstruir as mulheres trans, há quem acuse atletas de transiocionarem somente para poder ganhar medalhas (*cara, alguém passaria por terapia hormonal e todo esse inferno que é ser mulher em uma sociedade machista, porque é MAIS FÁCIL vencer uma mulher quando você nasce homem?  Difícil...*).  Não é meu objetivo discutir isso, mas A Batalha dos Sexos ajuda, ou deveria ajudar, a refletir sobre essas questões, também.  

O que muita gente não sabe, ou lembra, é de como o movimento feminista era refratário em relação às lésbicas. Seria como assinar a declaração de que ser feminista era querer ser um macho.  Mesmo hoje, depois de tantas discussões e muita tinta gasta, ainda há feministas que se preocupam com “o que os homens vão pensar de nós”?   Se Billie Jean saísse do armário em 1973, ela poderia erodir toda aluta das mulheres tenistas.  No filme e imagino que na vida real, também, ela sabia disso.  E entendia o seu papel e o sacrifício que somente ele poderia fazer por uma causa maior.  Ficou tenso, não é?  Mas é, por isso, que a cena com Ted Tinling é tão importante para o desfecho da película.

Larry continuou amigo de Billie Jean,
já o caso com Marilyn terminou mal.
E Larry King?  E Austin Stowell poderia ser o Capitão América se o filme fosse filmado nos anos 1970.  Ele é uma vítima?  Vamos imaginar se ele fosse um homem traindo a esposa com outra mulher, ou outro homem?  A gente ficaria com raiva.  Tomaria partido.  O filme o apresenta como um homem que ama a esposa, que se preocupa com sua carreira, um companheiro que não merecia ser traído.  Daí a culpa de King e sua queda de desempenho.  Ela não foi sincera com ele.  No entanto, ele é apresentado como alguém que sabe.  Ele se “esforçou” por acreditar que poderia mudar as inclinações da esposa? Ele tentou protegê-la?  No filme, há subsídios para pensar as duas coisas, aliás, elas não são excludentes. Ele, inclusive, confronta Marilyn e fala do dano que poderia causar à carreira de sua esposa.  

Trazendo para o mundo real.  Casamentos de fachada eram comuns.  Um homossexual, homem, ou mulher, poderia ter a consciência de sua condição e lutar contra sua orientação sexual.  Esse tipo de casamento envolvia sexo, filhos e, não raro, sofrimento (*vide Entre Irmãs*).  Em alguns casos, a pessoa só se descobria gay, ou lésbica, muito depois Não estou falando de bissexualidade, mas de imposição social.  Casamento, especialmente para as mulheres, era dever e como em vários contextos era repetido que não esperassem prazer, que sexo era coisa suja, porém necessária, algumas sequer tomavam consciência do motivo do seu desgosto, ou insatisfação.  Um gay, ou lésbica, poderia, também, buscar um casamento de fachada, um acordo que envolveria um parceiro consciente da situação.  A fidelidade poderia fazer parte do arranjo, ou não, assim como o contato sexual entre os parceiros.  “Casamento Lavanda” era como os vitorianos chamavam esse tipo de enlace que, muitas vezes, envolvia um homem e uma mulher homossexuais.  

Eles terminaram se tornando amigos.
Na vida real, Larry parecia saber. Talvez, não desde o início, mas sabia.  Quando Billie Jean assume sua homossexualidade, ela foi a primeira atleta a fazê-lo, o casamento deles tinha acabado, mas a amizade persistiu.  Billie Jean é madrinha dos filhos de Larry, ou seja, o arranjo dos dois, deveria ser mais simples, ou mais complexo, do que um ela era uma adúltera e ele era vítima.  Mas, sim, Billie Jean King cometeu adultério no filme e isso faz Larry sofrer, os dois, na verdade, sofrem.

É isso.  O filme é ótimo e, ao que parece, bem fiel aos eventos que busca retratar.  Muito melhor do que eu esperava.  É uma dramédia em alguns momentos, porque, bem, Riggs era um palhaço, como o filme bem coloca.  Mas as discussões que a película coloca são importantes demais para o filme ter sido esquecido (*ou quase, houve indicações no Globo de Ouro e, talvez, venham no Oscar*) e rendido tão pouco nas bilheterias.  De resto, a trilha sonora é muito boa.  E, bem, a primeira vez que ouvi falar de Billie Jean King foi em Ace Wo Nerae  (エースをねらえ!), não o anime, mas o mangá.  Ela era a tenista modelo aos olhos de Hiromi, a protagonista da série.  Se estivesse em casa, colocaria a imagem de Billie Jean que aparece no mangá.

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