terça-feira, 5 de março de 2019

O desenho Aladdin da Disney normaliza a pedofilia? Acredito que não, mas há quem veja dessa forma.


Não sei quem se interessa por olhar propagandas antigas, como aquelas que defendiam que cigarros faziam bem para a saúde, por exemplo.  Como historiadora, eu aprecio muito esse tipo de coisa.  A questão é que os tempos mudam, mas tem gente que acredita piamente que nossos valores e conhecimentos são eternos e universais.  Você não deve estar entendendo nada desse primeiro parágrafo, na verdade, nem queria ter que escrever esse texto, mas, como a discussão rendeu no Facebook, tenho que marcar minha posição de forma organizada, aqui no Shoujo Café.  Este será um texto longo, já aviso.  Vários dos links conduzirão à resenhas, ou textos do próprio blog, mas pode haver links externos, dentro do possível, me remeterei à textos em português.


Um dia, cigarro já fez bem à saúde. 
Quer dizer, a maioria das pessoas acreditava nisso.
Lá na segunda semana de fevereiro, saiu o primeiro trailer completo de Aladdin, o live action baseado na animação da Disney de 1992.  Não vi motivo para comentar o trailer, terei que fazer resenha do filme no futuro, tampouco achei relevante discutir um texto que saiu no The Mary Sue levantando uma série de questões sobre a idade da Princesa Jasmine e torcendo para que o filme consertasse as coisas.  Entendi que era um relato pessoal da autora, coisas que ela só conseguiu pensar a respeito depois de adulta, mas, ainda assim, considerei o texto alarmista e um tanto dissociado da nossa realidade brasileira.  Sabe, importar pautas?  Nem sempre isso me parece sensato, ainda que tenha se tornado coisa frequente, porém o texto sofreu uma tradução por um site brasileiro (*não vou linkar, mas vocês acham fácil*).  Esse link, por sua vez, terminou no Facebook do Shoujo Café e eu fui chamada para a discussão por algo que escrevi vários anos atrás na minha resenha de Enrolados.  


Rapunzel tem 18 anos só por desencargo de consciência.
Uma amiga supôs que eu tivesse elogiado a Disney por colocar uma princesa de 18 anos em Enrolados, mas o que eu escrevi foi o seguinte: "Só que, pela primeira vez, temos uma princesa “maior de idade”. Acho que a média de idade das princesas da Disney é 16 anos, Rapunzel tem 18. Será que essa subida na idade foi para evitar as sugestões (*exageradas*) de pedofilia? Eu suspeito que sim. "  A questão da pedofilia tem preocupado muito os produtores de entretenimento nos EUA.  Eu tenho certeza, e coloquei isso em minha resenha do filme Alita, Anjo de Combate, que  tiraram qualquer sugestão de interesse romântico/sexual do Dr. Ido por Alita para que ninguém pudesse apontar o dedo para o filme e impactar os lucros, que tem sido maiores do que o esperado.  E, bem, eu sei, também, que para muita gente, muitos progressistas, inclusive, avisar que Alita é um ciborgue de mais de 300 anos não adiantaria de muita coisa.  Correríamos o risco de acusações de normalização da pedofilia.

Parte 1: Contextualizando a discussão


Há quem veja pedofilia no amor de Mamoru e Usagi.
A ênfase na percepção da pedofilia em todos os lugares possíveis e imagináveis parece vir de longe nos EUA.  Lembro de ter discutido em um fórum quase vinte anos atrás, porque umas americanas defendiam que Sailor Moon tinha contornos pedófilos, porque Mamoru tinha 18 (*17 no mangá*) e Usagi, 14 anos.  Outro caso que me recordo bem foi de um episódio de The Fresh Prince of Bel-Air (*Acredito que é Will Goes a-Courtin' da quarta temporada*), quando Will e Carlton, recém matriculados na faculdade, dão uma festa na piscina e Ashley e uma amiga, ambas com 14 anos (*para inconsistências em relação a idade da personagem, checar*), querem participar, elas são expulsas pelos adolescentes mais velhos (*18, 19 anos*).  Poderia dar cadeia, certo?  Aqui, o grupo se misturaria sem maiores problemas.

Defendi, e continuo defendendo que, no Brasil, ou no Japão, provavelmente, isso não seria uma grande diferença de idade, mas tenho um amigo muito querido, brasileiro, mas que mora nos EUA faz muitos anos, que discordou de mim, ele efetivamente acredita que há um abismo enorme entre essas duas idades. É cultural, eu diria, e, nos EUA, as leis estaduais sobre idade de consentimento, normalmente acompanham esse entendimento, retirando dos adolescentes de 15, 16 anos a capacidade de decidir sobre seus corpos  (*a coisa é bem complexa por lá, na verdade*), mas, ao mesmo tempo, a mesma legislação pode ser negligente relação às idades de casamento. 

As idades das princesas e outras
personagens femininas de filmes da Disney.
Resumindo, transar por vontade própria pode dar cadeia para o parceiro se, por exemplo, a garota tiver 15 e o namorado 17 em certos estados, mas casar, pode.  Dezessete, isso mesmo, dezessete estados norte-americanos não tem idade limite para casamento.  Conservadores normalmente não se preocupam muito com casamentos precoces desde que feitos na igreja e de papel passado, desde que o noivo tenha a cor certa de pele, também, claro.  Não raro, esses casamentos de meninas (*porque não se enganem, é delas que estamos falando*) são com sujeitos bem mais velhos, às vezes, homens que as estupraram.  Trata-se de uma forma de salvar a honra e as aparências, com a possibilidade dos pais e/ou responsáveis, lavarem suas mãos.  A lei brasileira admitia esse tipo de arranjo, mas, felizmente, as coisas estão mudando.

Outro ponto importante, pelo menos para mim, é que confundir adolescentes e crianças sob o manto de pedofilia é um grande equívoco.  A ONU faz isso quando considera casamento infantil qualquer que se realize com menor de 18 anos.  Se eu pudesse opinar, separaria em casamento infantil e casamento precoce, colocando uma baliza de idade em algum lugar. Desejar sexualmente uma criança de cinco anos, idade atual da minha filha, só para citar um exemplo, não é a mesma coisa que desejar um dos meus alunos, ou alunas, que tem 14, 15, 16 anos (*estou no 1º ano agora*).  Quem deseja a criança, quer o corpo assexuado, sem as marcas trazidas pela adolescência.  Já quem deseja o adolescente, normalmente, está fascinado pelo corpo jovem, não raro inexperiente, alguém que possa controlar.  Há os que estão desejando, também, a suposta pureza da virgindade.  


Em She-Ra, as características
sexuais secundárias desapareceram.
Tudo isso é uma m****, não pensem que eu não vejo por esse prisma, mas é preciso separar para categorizar, compreender e  evitar novas vítimas.  Demoramos muito tempo no Ocidente - historiadores, médicos, psicólogos, pedagogos etc. - para categorizar tanto a infância como a adolescência, com seus marcos, direitos, deveres, necessidades e, hoje, muita gente parece querer colocar tudo no mesmo saco de novo.  Aqui no blog, tenho voltado a esses temas mais do que gostaria, mas vamos lá, parece que nos últimos tempos a obsessão cultural norte-americana com a questão de pedofilia, da objetificação e da sexualização das mulheres e meninas tem se tornado nosso problema, também e se desdobrado em outras questões, como a vigilância em relação aos quadrinhos, cinema e animação.  

Quando comentei as primeiras imagens do novo She-Ra, pontuei exatamente isso.  Apagam-se as características sexuais secundárias dos corpos das adolescentes com o intuito de criar um entretenimento seguro e de qualidade, com meninas que não tem nenhum atributo que possa despertar o desejo sexual de alguém.  Séries como She-Ra tem muitos méritos, mas junto com as críticas ao desenho de Aladdin, ou as preocupações exageradas com a pedofilia e a autonomia sexual dos adolescentes, só demonstram como o sexo continua sendo central na vida das pessoas.  Falando dele, ou calando, escondendo, ou mostrando, sexo é o eixo central da vida das pessoas.  É o tal dispositivo (*um sem número de discursos que se entrelaçam*) da sexualidade tão bem explicitado e discutido por Michel Foucault, estamos imersos nele.

Parte 2: Mas ela só tem 15 anos!


Houve quem acusasse Naomi Scott, filha de mãe indiana,
de não ter a cor de pele certa para o papel de Jasmine.
O filme Aladdin vem aí.  Houve várias discussões absurdas anteriores sobre a escalação dos atores e da atriz principal, inclusive quem falasse de branqueamento.  Essas acusações são fruto da falta de cultura geral, seja pelo desconhecimento do fato do mundo árabe-muçulmano medieval (*suposta época de Aladdin*) poder englobar toda sorte de pessoas, de árabes, passando por povos da Ásia Central, chineses, indianos, malaios, indonésios, eslavos, negros de vários pontos do continente africano, enfim, seja pelo fato de não checarem que nas suas primeiras versões, que Aladdin era chinês.  Olhando as versões do conto que eu conhecia, a da Disney incluída, sempre imaginei que a história se passava em algum reino islamizado da Índia.  Foi a representação de Aladdin que se cristalizou na minha cabeça.

Outra coisa importante, é que os contos das mil e uma noites, assim como os contos de fada, passaram por diversas depurações, suas características mais violentas e perturbadoras foram sendo amenizadas, ou desapareceram.  Não eram material infantil por princípio, ou, é preciso lembrar, as crianças não são iguais em qualquer cultura, tampouco em todos os momentos da História.  Lembrem que As Mil e Uma Noites são um conjunto de contos que Sherazade inventa para aplacar a ira de um sultão e atrasar sua própria execução, pois o sujeito passava a noite com uma noiva e mandava matar no dia seguinte como vingança por uma traição.  O que Sherazade  consegue ao final das Mil e Uma Noites é que o sultão se apaixone por ela e não a mate.  O mundo dos contos de fada é violento, não importa o quanto de açúcar a Disney, ou outros joguem em cima.


Jasmine quer conhecer o mundo e 
esse desejo é realmente subversivo.
Falemos de Aladdin, a animação de 1992 não é um desenho da série princesas, como muita gente parece pensar, trata-se de uma produção da série dos heróis (Tarzan, Hércules e outros), voltado prioritariamente para os garotos, a começar pelo nome no título.  Só que, desde o início, caiu no gosto das meninas e a Disney decidiu explorar isso fazendo muito dinheiro, afinal, Jasmine foi a primeira princesa não-branca do estúdio.  Ela era, também, cheia de determinação e se recusava a aceitar convenções, especialmente, o casamento imposto pelo pai que lhe dá um ultimatum: ela deve casar até os 16 anos.  A obrigatoriedade do casamento se faz presente a maioria dos materiais infantis da Disney, eles estão permeados pelo imperativo romântico, claro, além da heteronormativa, naturalizada que não escapa mesmo às crianças pequenas e ajudam a formar seu caráter e visão de mundo.  

Agora, fosse um material realista, Jasmine já estaria casada nessa idade, com uns dois filhos ou, provavelmente, teria pouco a dizer sobre com quem se casaria.  Usei "provavelmente", porque posso citar vários exemplos, inclusive para o oriente, de pais complacentes que permitiram que as suas filhas escolhessem com quem casar, mas dentro, vejam bem, de uma pré-seleção.  Tipo "tenho Huguinho, Zezinho e Luizinho", você é livre para escolher, vamos lá!  Justiça seja feita, não era muito diferente para os príncipes, apesar deles mandarem um pouco mais nas suas vidas.  No desenho da Disney, Jafar, o vizir, um homem visivelmente mais velho, com seus 40 e tantos, suponho, quer casar com ela, quer o poder e a riqueza que ser herdeiro do sultão pode lhe conceder, mas quer,  também, o corpo de Jasmine.  Eu assisti ao desenho com quase 20 anos de idade, nada disso me escapou.  


Aladdin e Jasmine se conhecem nas ruas da cidade.
Só que Jafar não tem os atributos necessários para convencer o sultão, ele não é rico, não é príncipe, nem rei. Trata-se de um subalterno, por mais importante para o bem estar do reino que ele seja. Daí, temos a escapada de Jasmine para ver a cidade.  Ela, e nisso o desenho é realista, levava uma vida reclusa.  Disfarçada, a moça esbarra com o ladrãozinho Aladdin.  Como em A Bela Adormecida, a Disney satisfaz as sensibilidades modernas e permite que ambos meio que se apaixonem antes de saber quem são de verdade.  O resto, sabemos, Aladdin encontra a lâmpada e se finge de príncipe.  Só que Jasmine o rejeita, porque, bem, assim como toda mocinha ocidental do romantismo para adiante, ela sonha em se casar por amor.  Mas veja que ninguém se importa muito com esses detalhes, ou não teríamos história.  Só que Aladdin a leva para passear de tapete mágico ao som de A Whole New World e ela entrega seu coração.

Mais tarde, e estamos chegando na cena considerada complicada pelo The Mary Sue, Jafar consegue se apossar da lâmpada e do gênio, afastando Aladdin, que tem sua identidade exposta.  Ele escraviza e humilha o sultão (*vingança de classe*), além de tomar Jasmine para si.  A roupa da princesa, que era azul piscina, ou um verde próximo, torna-se vermelha (*desejo, luxúria, pecado*) e ela é colocada em uma situação que sugere, como no caso da Princesa Léia em O Retorno de Jedi, para um adulto, que ela está prestes a se tornar uma escrava sexual.  "Ah, ela só tem 15 anos!  Estão normalizando a pedofilia aos olhos das crianças.".  Volte lá atrás e repense.  Será que alguém com 15 anos é criança?  Será que a media das adolescentes desejaria estar nessa condição?  Siga a leitura, por favor!



A cena da discórdia.

Mas, vamos lá, o que os pequenos veem nessa sequência de acontecimentos?  Um sujeito malvado, desagradável, mais velho, o vilão, enfim, prendeu a princesa.  Ele não tem nada de sedutor, ele é abjeto desde sua primeira cena.  Como é um filme de herói, Aladdin precisa resgatá-la e todos torcem para que ele seja bem sucedido.  Mas Jasmine é inteligente e não é passiva, o que ela faz?  Para salvar seu amado, em uma cena chave, ela tenta seduzir o vilão e distraí-lo.  Gritam de novo "Normalização da pedofilia."  Mas gente, e o contexto, será que ele não existe? 

Aos olhos de algumas pessoas com quem discuti, ou observei discutindo, parecia que estavam oferecendo pornografia para as crianças. Lembrei-me daquelas palestras sobre Nova Era que viraram moda nas igrejas evangélicas dos anos 1990, assisti várias, recebi folhetos, e que juntavam denúncias de satanismo com as de depravação sexual embutidas nos desenhos da Disney, fora outras aloprações, depois, o foco virou para Cavaleiros do Zodíaco, afinal, é preciso aproveitar a tendência do momento.  O terrível é que, agora, quem faz muito barulho às vezes não são mais os picaretas "de Cristo" que vendiam VHS e palestras, mas gente supostamente progressista.



Esse tipo de coisa era moda quando eu estava entre meus 16 e 20 anos. 
 Esse sujeito, aí em cima, era um dos principais porta-vozes da histeria.

Parte 3: Princesas "de cor" são mais sexualizadas

Em nosso país, desde clássicos como Casagrande & Senzala, a violência das relações entre senhores e escravas era anulada ou diminuída, as mulheres negras, ou mestiças, são apresentadas como mais sensuais e lascivas do que as brancas.  Umas seriam para os prazeres, as outras, para o casamento e a geração da descendência legítima.  Isso impacta a forma como as mulheres negras são representadas na ficção até hoje.  Já as mulheres orientais - daí estou incluindo por extensão as muçulmanas - acabam sendo vistas de forma semelhante com o acréscimo do exotismo e da submissão que o olhar dos homens ocidentais lhes atribuiu.  Nesse sentido, a inocência das meninas não-brancas é sempre vista como menor, menos importante, ou até tentadora para os homens brancos.  Violá-las durante muito tempo não daria em nada, ou resultaria em muito pouco.  Elas sempre foram menos crianças.


Esmeralda não é uma princesa.  Esse dado é importante.
O texto do The Mary Sue parece se chocar com outra coisa, princesas não-brancas costumam ser mais sexualizadas.  Elas citam três exemplos  Kida (Atlantis), Jasmine, e Esmeralda (Corcunda de Notre-Dame).  A sexualização de mulheres não-brancas é algo pesquisado e discutido faz tempo nos meios acadêmicos, vide o parágrafo anterior.  O texto só fala dessas três, mas vi gente no Brasil se empolgando e incluindo Tiana (*que passa boa parte do tempo como um sapo*) e Moana no bolo, também.  Motivos, ainda estou por descobrir.  Atlantis, eu não assisti, nem fui atrás de nada sobre ele, mas sei que não é um desenho de princesa.  O Corcunda também não é desenho da série princesas, mas é um caso que conheço bem.  Aliás, nunca esquecerei a sessão de cinema na qual só havia um bêbado e eu, mas já revi o filme outras vezes, inclusive partes dele para escrever este texto.  E li o livro original, o que teve impacto na forma como encarei o desenho desde o início.

O Corcunda, a meu ver, foi um equívoco da Disney e terminou ficando no meio do caminho, poderia ter sido épico, até hoje o visual da Notre Dame é lindo de se ver, mas faltou coragem de levar a história até o ponto necessário e, ao mesmo tempo, se ousou demais para o público alvo que se destinava.  Conheço mais de uma pessoa que assistiu ao Corcunda quando criança e não gostou, mas consegue reavaliar a obra depois de adulta e reconhecer méritos e defeitos. 


Frollo tem delírios eróticos com a cigana.  Sim,
O Corcunda não se decide quanto ao que se pretende ser.
A Disney pegou um material potencialmente explosivo, dramático, trágico, cheio de sentimentos fortes (*desejo sexual, luxúria, frustração, ódio*), além de preconceitos datados contra os ciganos e tentou arrumar isso em um desenho para toda família.  Não deu conta, claro.  Curiosamente, três das minhas músicas favoritas da Disney, que eu colocaria em um top 20, são desse filme Out There, God Help the Outcasts e Hellfire, a mais interessante de todas.  


O vilão se desnuda e pede a ajuda da Virgem Maria.

Vou listar alguns problemas, mas prometo que não será resenha do Corcunda.  Em primeiro lugar, pegaram o vilão, Frollo, um arcediago, o segundo na hierarquia depois do bispo, e o partiram em dois.  Ele deixou de ser um clérigo, provavelmente com voto de castidade e celibato, e o transformaram em um juiz.  Outra alteração, Phoebus, o amado de Esmeralda, um ser desprezível que só quer transar com a mocinha virgem e abandoná-la, virou um cavaleiro modelo.  A mãe de Esmeralda, a reclusa que odeia ciganos sem saber que sua filha roubada por eles é a protagonista, foi cortada.  Outro ausente é  Pierre Gringoire, o jovem pego por um grupo de malfeitores e que Esmeralda salva ao se casar com ele, era isso, ou ele seria morto.  Importante dizer que ela casa, mas se recusa a ter qualquer intimidade com ele.  É ele que tenta resgatar Esmeralda no livro e impedir sua morte, ou seja, cortaram o mocinho e transformaram um traste em herói.


Esmeralda tem nojo do vilão.
A Esmeralda do filme realmente me parece mais velha e é muito mais segura de si que a original, uma mocinha de 16 anos, que não tinha noção do desejo que despertava nos homens com suas danças.  Nas gravuras de época, Esmeralda era normalmente desenhada mais como uma menina, ou uma moça mignon, no livro, se bem me lembro, ela era descrita assim, com pés pequenos e delicados.  Mas veio o cinema, esqueceu que se tratava de uma adolescente, e transformou a cigana de Victor Hugo em mulheres como  Maureen O'Hara e Gina Lollobrigida.  Seguindo na mesma linha, a Esmeralda do desenho da Disney parece mais uma mulher adulta do que uma adolescente e até a escolha da dubladora original, Demi Moore, ajudou a reforçar essa sensação.  Na época, 1996, a atriz era considerada uma das mulheres mais sensuais do cinema.  O Corcunda saiu no mesmo ano de Striptease, só para se ter uma ideia.  

Ainda assim, Esmeralda, que não é uma princesa, está mais para uma mocinha de ação do que um símbolo sexual no filme, mesmo que tenha, sim, mais apelo sexual que a médiamas, duvido que para as crianças pequenas algo assim tenha ficado evidente.  Só que ela era uma dançarina e ganhava sua vida se exibindo em praça pública. No Concunda, quem lança o olhar lascivo sobre ela, que atribui à Esmeralda comportamentos que visam insuflar o desejo masculino é Frollo, o vilão que, assim como Jafar, é pintado como irremediavelmente perverso desde sua primeira aparição.  A personagem original, que é complexa, tem contradições, praticamente desaparece.  Através de Frollo, mesmo com suas limitações, a Disney fez uma excelente crítica à hipocrisia e à falsa virtude.


Jafar deseja Jasmine, mas ela não
nutre sentimentos ternos por ele.
É verdade que Jasmine e Esmeralda foram sensualizadas por serem mulheres "de cor"?  Eu não me convenci muito.  Se pegarmos as outras princesas da Disney, especialmente as da Renascença em diante, isto é, a partir de A Pequena Sereia (1989), todas são apresentadas mais ou menos da mesma maneira.  Ariel, por exemplo, aparece de biquíni em sua forma de sereia, algo que nem é citado no texto que detonou essa discussão, mas sua nudez é relevada, afinal, a sereiazinha é absolutamente inocente.  E Jasmine?  Ah, ela está vestida de odalisca para sensualizar, como uma objetificação do corpo feminino, trata-se de uma espécie de pedofilia velada.  Será mesmo?

Parte 4: O Problema de Aladdin é estar na "Arabland"


O filme de Aladdin continuará na Arabland.
Algo que precipitou esse texto foi a acusação que me fizeram de negligenciar o fato das roupas de Jasmine serem absolutamente incoerentes com o suposto período histórico do filme, que eu tinha sugerido ser entre o século IX e XII.  Logo, o argumento de que reclamar da idade de Jasmine não faria sentido, porque meninas de 15 anos não eram meninas nesse contexto, não se sustentaria.  Se ela está de odalisca, é porque querem transformá-la em objeto sexual para a audiência masculina.  Analisar um filme, apontar questões relevantes, é fundamental, mas realmente acredito que há quem queira esticar demais essa corda.

De qualquer forma, não vou insistir nesse ponto, o da fidelidade em relação à roupa.  Cobrar coerência de vestuário em desenhos da Disney é risível, mesmo que tenha se tornado um esporte para alguns artistas desenhar as princesas com suas roupas historicamente "corretas" e produzido algumas algumas ilustrações bem competentes.  Basta procurar na internet.  Enfim, das animações da Disney, a única que me lembro de ser precisamente datada dentro do próprio filme é A Bela Adormecida, seja pela pesquisa visual feita, seja porque em uma determinada cena o príncipe Filipe fala para o pai deixar de ser antiquado, porque eles já estavam no século XIV.  É uma cena que se remete de forma engraçada às mudanças no comportamento juvenil do final dos anos 1950 e que resultariam na revolução (*sexual, musical, de costumes etc.*) da década seguinte, porém, não vamos acrescentar mais questões à discussão.
Século XIV total, não é mesmo?
Voltemos para a roupa de Aurora e o seu vestido mais importante, agora, façam um exercício e tentem ver o século XIV nele, começando pelo cabelo de adolescente bem comportada dos anos 1950,  sua cintura bem marcada, seus ombros nus e cabeça descoberta.  Alguém já disse que ela é sexualizada?  Na verdade, o filme retrata uma Idade Média idealizada comum aos filmes hollywoodianos de seu tempo e que dialoga em conceitos de beleza da época da produção que completa 60 anos em 2019.  Preciso escrever sobre ela, aliás.  Em Aladdin, o maior problema, que vai além de Jasmine, é que o filme tem os dois pés bem plantados na Arabland.


Típica pintura orientalista.  Giulio Rosati - Dança no Harém.
Mas o que é Arabland?  É "(...) um lugar que bebe nas narrativas orientalistas dos viajantes europeus entre os séculos XVIII-XX que sempre começa a e mostrar com o deserto e vai introduzindo outros signos que se tornaram familiares a todos nós pela repetição: camelos, oásis, harém, sheiks, às vezes, tapetes mágicos etc. Características de vários espaços islamizados (...) são oferecidas em um mesmo pacote para as audiências ocidentais.  Não importa muito se é Norte da África, Oriente Médio, Turquia ou Paquistão, trata-se da Arabland."  Entrei em contato com o termo assistindo ao documentário Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People (Filmes Ruins, Árabes Malvados: Como Hollywood Vilificou um Povo), dirigido por Sut Jhally, em 2007.

Na Arabland, só haveria duas possibilidades para as mulheres na época em que se passa Aladdin, ou ela estaria vestida como odalisca, como a Jeannie do seriado Jeannie é um Gênio (*que não mostrava o umbigo, porque era considerado imoral na TV americana da época*), por exemplo, ou seria uma sombra velada, sem rosto.  Ambas as representações estão em Aladdin, mas Jasmine, a princesa, adolescente teria que ser a jovem com roupas de odalisca, ou a história não iria andar.  Eu poderia dizer, vejam que Belle não usa roupas do século XVIII, também, mas no caso de Aladdin, existe essa representação do mundo árabe-muçulmana que vem dos primórdios do cinema norte-americano e que se faz muito presente no filme.  Logo, não é a mesma coisa mesmo.


Jeannie ajudou a disseminar a Arabland na TV,
mas sem mostrar o umbigo.
Desde a época do seu lançamento, antes mesmo da internet, alguns artigos de jornal apontavam esse problema, começando pela música de abertura.  “where they cut off your ear/ If they don’t like your face/ It’s barbaric, but hey, it’s home.” (*onde eles cortam fora a sua orelha/Se eles não gostam da sua cara/É bárbaro, mas hey, é o meu lar*).  O que eu quero dizer aqui é que Aladdin tem esse grande defeito, ele reforça estereótipos, ele não consegue romper com a Arabland, na verdade, se agarra a ela desesperadamente, porque essa construção permite dialogar com o público norte-americano e de outros países que estão absolutamente acostumadas com essas representações do mundo árabe-muçulmano e de seus homens e mulheres.  

Por isso mesmo, não vejo nada de ofensivo em particular, ou sexualizado em Jasmine, nada de calculado para seduzir na representação da mulher muçulmana, simplesmente, é a repetição do mesmo, o reforço de uma imagem que pode ser vista desde os quadros dos orientalistas do século XVIII e XIX.  É simplesmente preguiça, acomodação, e falta de senso crítico.  Ela é adolescente, porque uma princesa da Disney normalmente é adolescente.  E, sim, 15 anos não é criança e ela ama e deseja somente Aladdin.  Quantos anos ele tem?  Segundo a Wikipedia, que cita um livro de referência da Disney, ele tem 18 anos.  Para certas pessoas, talvez o amor dele e de Jasmine seja igualmente pedófilo e proibido.


As japonesas vão além das odaliscas. 
(Heir to a Desert Legacy.  Maisey Yates e Yoko Iwasaki)
Agora, uma coisa engraçada que percebi é que as japonesas que desenham mangás baseados em livros Harlequin de sheiks já conseguiram sair da Arabland em muitos aspectos.  Sua representação das mulheres muçulmanas nesses reinos fictícios é muito mais plural, rica, e pesquisada do que nas produções americanas como Aladdin.  Verdade, só li dois desses mangás, além de um de Chiho Saito que tive que comprar, porque era dela, mas a figura da odalisca de top e umbigo de fora, a dançarina do ventre, é absolutamente marginal, ou não aparece mesmo.  

Considerações Finais

Não sei se esse live action vai se preocupar em dar a idade de Jasmine, que é uma das grandes preocupações do texto com o qual estou dialogando.  A atriz, Naomi Scott, não parece adolescente nas poucas imagens que eu pude ver, mas isso, Hollywood já mostrou, é irrelevante.  Agora, é certo que continuaremos na Arabland e nem poderíamos sair de lá, porque seria uma ruptura absoluta com o desenho original.  Só que a minha maior curiosidade é saber se o vilão, interpretado por Marwan Kenzari, vai chamar mais atenção que o herói (Mena Massoud).  Olhe só o título dessa matéria, "O Jafar do live-action é tão gato que a internet até esqueceu do ‘Aladdin’" e olhem as fotos dos dois atores.  Eu já tenho um favorito.  Enfim, Jafar tinha que ser um homem de meia idade, alguém que seria caracterizado como perverso e indigno do amor de Jasmine desde o início, não poderia haver nada de possivelmente sedutor nele.  


Alguém me explique essa escalação desse moço, por favor!
O que periga ocorrer é o mesmo que aconteceu com a última adaptação do Fantasma da Ópera, ou com Tristão e Isolda, o suposto vilão, ou antagonista, suplantando, pelo menos no coração da audiência, o mocinho por parecer mais sexy, mais viril e mais inteligente, ou sei lá o quê,  que o herói.  Obviamente, isso em nada impacta no desenho original, que, nesse aspecto, fez o trabalho direitinho e demarcou bem quem era quem.  Caracterizou tanto o malvado, quanto a inteligência de Jasmine para encontrar uma forma de enganá-lo, apesar do nojo que sentia de Jafar.  Por isso, reforço que é preciso um grande exercício de imaginação para ver normalização da pedofilia em um desenho como Aladdin.

Mas é aquilo, se há o contexto do filme, há, também, o momento em que vivemos que é de importação quase automática daquilo que os norte-americanos pensam e sentem.  Eu gosto do The Mary Sue,  já recomendei e citei criticamente o site várias vezes, mas exatamente por ser velha, ter assistido Aladdin adulta, ser historiadora e brasileira, não consigo ver nada de muito sensível na representação de Jasmine.  Não por não perceber que filmes, quadrinhos, novelas ajudam a construir nosso imaginário e representações sociais, do que é permitido, ou não, do que é belo, ou repulsivo, mas por considerar que estão apagando o contexto para dar relevância a um temor cada vez mais frequente, o da pedofilia.  Nossas sensibilidades atuais não são a régua para medir tempos passados, ou outras culturas, ou não deveriam ser.


Há quem veja normalização da pedofilia,
eu só vejo uma adolescente com nojo.
Pedofilia é um tema importante, mas a histeria tem causado confusão entre infância e adolescência e produzido nos meios progressistas um conservadorismo que pode, em um futuro próximo, cercear o processo criativo e, claro, nos levar para mais perto de Gilead.  No mais, é sempre assustador ver progressistas e conservadores concordando quanto à negação da sexualidade dos adolescentes, ou a necessidade de cobrir o corpo das meninas e mulheres, mesmo quando são personagens de animações tão inócuas quanto Aladdin.´


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