segunda-feira, 22 de julho de 2019

Comentando O Rei Leão (EUA/2019): Roubaram toda a Emoção do Clássico


Sexta-feira, assisti com a Júlia o live action do Rei Leão.  Ela queria assistir, eu não fazia muita questão, mas a levei.  Vi dublado, não tenho como ver legendado com a filhinha ainda e nada no filme me moveu a assistir duas vezes como fiz com Aladdin.  Eu tenho a resenha do filme de 1994 no blog, porque reassisti no cinema quando ele passou em versão 3D, peço que vocês leiam a resenha antiga, porque vou evitar me repetir e detalhar questões que estão lá.  Por isso mesmo, não pretendo fazer uma resenha longa, porque, bem, trata-se de uma tentativa de reproduzir quase que quadro à quadro o filme original em computação gráfica e com animais que parecem reais.  

A história do Rei Leão é aquela que vocês devem conhecer: Simba é um leãozinho destemido que mora na savana e admira profundamente seu pai, o rei Mufasa. Só que a vida do jovem é destroçada quando seu tio malvadão, Scar, assassina o rei e faz com que o pobre Simba acredite que ele é o responsável. Ele foge e é acolhido por outros dois párias, Timão e Pumba. Crescido, e depois de muita angústia, ele decide voltar para casa e retomar o que é seu. 

Simba tinha sua vida toda planejada, tal
e qual o príncipe de The Slipper and The Rose.
Vi muita gente comentando que não gostou do live action, normalmente, era fácil identificar que se tratavam de fãs do original.  Eu nunca fui fã do Rei Leão, assisti adulta.  A minha memória mais forte da sala de cinema à época foi de um casal ter que sair com o filho de uns 3 anos, porque o menino se assustara com a morte de Mufasa.  O pequeno só berrava "O pai do leãozinho morreu!".  E, sim, continuo considerando a cena da morte do rei uma das melhores do filme original.  No novo filme, ela foi bem impactante, mas ficou parecendo um documentário do National Geographic sobre o Serengeti.  Sim, faltou emoção, porque os animais não tem expressões faciais.

Uma das graças da animação, e de qualquer boa animação usando animais com comportamentos humanos, é dar-lhes expressões faciais.  O Rei Leão original é primoroso nesse aspecto.  Daí, a cena da morte do rei perdeu impacto considerável, porque não tínhamos o horror estampado no rosto de Simba e Mufasa, tampouco o prazer maligno nas feições distorcidas de Scar.  Virou documentário naturalista, como pontuei acima.  Hiper-realista, mas será que isso é o mais importante em um O Rei Leão?  Enfim, a ideia de fazer um live action de Rei Leão significou, na verdade, fazer uma animação tirando dos animais aquilo que os tornava tão especiais, a sua humanidade.  Mas eu nem me importei tanto, serei sincera, o difícil foi lidar com animais falantes e cantantes.  Foi estranho, demorei a digerir.

A falta de expressão facial dos animais tira parte do apelo emocional do filme.
Mas eis que houve uma mudança para melhor.  Se você pegar minha resenha da animação, verá que eu perco um bom tempo descascando a cena em que Zazu, o conselheiro do rei, é obrigado por Mufasa a servir de alvo para que Simba pudesse treinar suas habilidades de caçador.  Sim, ele é um serviçal, está ali para servir aos caprichos da nobreza.  No live action, Zazu não é humilhado, pregam-lhe uma peça, sem que ele tenha que se rebaixar.  De resto, apesar dessa cena, o filme novo tem um discurso ainda mais monárquico e de reforço das hierarquias.  Claro, fala-se de responsabilidade do monarca e temos o tal "ciclo da vida", mas como todo mundo se comporta como gente, é de monarquia como sistema ideal que O Rei Leão fala.  E podem dizer à vontade que é a tal filosofia Ubuntu, podem até ter bebido nela, mas o que fica forte para mim em O Rei Leão é uma das defesas mais aferradas das hierarquias derivadas de um direito sagrado e de nascimento.

Simba não tem escolha, não pode fugir de seu destino.  Pode cantar Hakuna Matata à vontade, mas o será perseguido pelo seu dever.  Terá que se casar com Nala, porque está determinado desde o seu nascimento esse arranjo.  E, como não temos outros machos no bando, algo comum entre os leões, ainda que um deles seja o líder, Nala só pode ser meio-irmã de Simba.  Enfim, o fato dos leões serem privilegiados, assim como os monarcas do Antigo Regime, fica escondido por trás desse discurso de honra e dever, como se, por princípio, todos os reis fossem cumprir com esse arranjo e todos os demais seres da natureza tivessem que se curvar a ele.  "É o ciclo da vida!", berra a música icônica.  


Pode cantar Hakuna Matata à vontade, porque, no final,
você não conseguirá fugir de suas responsabilidades.
Vejam que essa ordem é tão sagrada que Scar consegue se impôr como monarca simplesmente por ser quem é, irmão do rei.  Curiosamente, em um bando de leões real, e isso reforça que pouco há de realista em O Rei Leão, não seria tão fácil.  Haveria outros machos adultos, dois, ou três, que iriam lutar pelo comando do grupo.  Só que só temos fêmeas e elas, claro, são passivas. Nala quer se revoltar, mas é advertida a todo o tempo que não deve fazer isso, que deve se curvar ao tirano, porque ele é macho, porque ele é o rei por direito (*divino*).  Funcionou em Pantera Negra, mas em O Rei Leão sempre me parece capenga, uma forma de reforçar velhas hierarquias, inclusive de gênero. Assim, a função didática do filme permanece e seu discurso é de sacralização de um sistema baseado nas desigualdades naturais.

Como esses dias eu estou mais para Ça Ira (*um dos hinos da Revolução Francesa*), estaria mais para torcer para as hienas do que outra coisa.  Só que não dá para torcer para as hienas nesse filme de O Rei Leão.  Apesar de tudo parecer igual, os vilões foram bem alterados.  A ideia de que tanto hienas, quanto Scar eram marginalizados, excluídos de um sistema baseado em direito por nascimento, fica meio que de lado nessa versão.  Vamos lá, as hienas fazem parte do ciclo da vida, mas em O Rei Leão, elas são excluídas do sistema pelos leões.  Só isso já melaria essa ideia de um elemento depende do outro e os carnívoros precisam se alimentar dos herbívoros e assim por diante.  Como no original, as hienas eram dubladas por atores negros, isso criava uma metáfora de segregação racial que não era questionada, mas reforçada ao longo da película.  Não sei como ficou em português, mas, em inglês, todos os papéis relevantes nessa atualização foram dublados por atores e atrizes negros.

Scar virou um incel raivoso nesse filme.  Se Sarabi não
o quiser, ele irá matá-la e a todas as fêmeas.
Já Scar, bem, eu sempre o vi como homossexual vilificado, bem do jeitinho que o cinema gostava nos anos 1990 (*Estou devendo faz anos resenha de The Celluloid Closet*).  Seu isolamento, a fala de Zazu (*"Toda família tem um desses."*), o desprezo pelas fêmeas.  Nessa nova versão, fica subentendido que ele lutou com o irmão pelo domínio do bando perdeu.  A cicatriz teria vindo desse embate, ainda que o filme não aprofunde a discussão.  E Scar é inegavelmente hetero e com fixação em Sarabi, esposa de Mufasa e mãe de Kimba.  A moça do canal Sugar Rush, que odiou o filme, pontuou que transformaram Scar em um hetero incel.  Eu tinha percebido a mudança ao assistir o filme, mas a palavra incel não veio na minha cabeça.  Scar ficou muito mais sinistro no live action e, de certa forma, continua a melhor coisa do filme para mim.

Só que "Be Prepared", a música que Scar canta com as hienas, perdeu muito no live action, afinal, havia o desfile das hienas imitando as tropas nazistas.  Essa parte foi uma pena. Agora, no geral, Scar tornou-se um ditador sanguinário e que não tinha nenhum interesse em fazer o reino prosperar.  No original, esse aspecto da destruição dos recursos naturais devido à ganância das hienas (*"As barrigas das hienas nunca estão cheias."*) e incompetência administrativa de Scar não são tão evidenciadas.  A mensagem ecológica funcionou bem.

Como o vídeo do Sugar Rush apontou, o timing
da "Can You Feel the Love Tonight" ficou todo errado,
afinal, a sequência aconteceu durante o dia.
Que mais pontuar?  A parte do pelinho de Simba passando por vários lugares para exemplificar o ciclo da vida não precisava estar lá.  Tudo bem se você gosta de besouro rola bosta, mas para quê?  Timão e Pumba continuam divertidos e "Quem Dorme é o Leão" ficou com um arranjo muito bom.  Não vi em inglês, mas o conjunto vocal dos animais foi uma boa inovação.  O tema da gordofobia foi foçado no filme, diferente da questão ecológica que ficou bem ajustada, não precisava estar lá, foi forçado e poderiam ter mantido como na sequência original. 

Falando das fêmeas, houve um grande esforço para tornar Nala uma líder, uma fêmea empoderada nos padrões que parecem ser obrigatórios em nossos filmes atuais.  Poderia ficar bom, só que não me convenceu.  A melhor personagem feminina foi Sarabi exatamente por seus confrontos com Scar.  Ela ganhou em dignidade e presença em tela, é uma nova Penélope, ela perdeu seu Ulisses, mas não sua dignidade.  Ela é a viúva fiel, guardiã da memória do marido, o grande rei, ela é a mãe que espera o retorno do filho, o novo soberano, mas exatamente por isso, ela é a rainha trágica que se projeta na sua dor.  Sim, um papel feminino convencional, mas grandioso e foi uma das inovações do filme. Sarabi tem poucas cenas, mas todas tem uma função dramática importante, especialmente, depois da morte de Mufasa.


Rafiki, o poder religioso que legitima a ordem e as hierarquias.
Enfim, concluindo, não sei se O Rei Leão é uma decepção, porque eu, Valéria, nunca esperei grandes coisas do filme.  Comparado com Dumbo e Aladdin, o filme é muito inferior.  Fez quase tudo igual, mas ficou sem emoção, sem o charme e o drama do original. Dumbo, em especial, foi comparativamente um grande filme, porque teve coragem de criar e ousar.  E eu nem esperava nada dele, tinha até medo por causa do Tim Burton.  E colocar o besouro rola bosta para exemplificar o ciclo da vida não é ousadia alguma e as expressões dos bichos, ou sua falta de expressão, não ajudou O Rei Leão a ser um grande filme.  Enfim, se tiver que escolher, fique com o original, mesmo com todas as suas polêmicas, a animação de 1994 é um filme com personalidade, esse novo, não é.

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