segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Comentando Abominável (EUA/China/2019): Um Filme sobre Amizade e Restauração de Vidas


Não ia resenhar Abominável, aliás, não tenho resenhado boa parte dos desenhos animados que assisti com Júlia no cinema este ano, mas como parece que o filme está fazendo boa bilheteria, acho que vale a pena comentar um tiquinho, mas é pouco mesmo.   Quando assisti com Júlia na semana de estreia, uma frase girava na minha mente "Isso é filme feito para o Oscar". E deve ser mesmo, parece feito para isso.  De resto, ficou piegas o título, mas espero explicá-lo ao longo do texto.

Uma criação da DreamWorks Animation e chinês Pearl Studio, Abominável conta a história de Yi (Chloe Bennet), uma adolescente que descobre um yeti morando no telhado do prédio de sua família em Xangai. A garota dá o nome ao yeti de "Everest", ao descobrir que ele tinha vindo de lá.  A trama mostra as tentativas de Yi de levar o yeti para sua casa, com a ajuda de seus amigos Jin (Tenzing Trainor) e Peng (Albert Tsai). Tentando impedir que o yeti volte para casa, estão o magnata colecionador de criaturas exóticas, Burnish (Eddie Izzard), e a zoóloga Dr.ª Zara (Sarah Paulson).

A menina desenvolve um elo muito forte com Everest.
Diferente de Ugly Dolls e Os Brinquedos Mágicos (Toys & Pets), as duas outras animações chinesas que assisti com Júlia, Abominável mostra desde os primeiros segundos que há muito dinheiro envolvido na produção.  O visual é realmente impactante, um desenho de primeira linha e feito para conquistar quem está acostumado com as produções da Disney e outros grandes estúdios.  Apesar do diretor e roteirista norte americanos, o DNA de Abominável é chinês, desde o trailer, isso fica bem marcado.

Como tem acontecido com mais frequência, a protagonista é uma garota.  Isso é bom, claro, mas se olharmos o elenco, temos a heroína e a Dr.ª Zara com peso na história e o resto do elenco importante são homens, começando por Everest.  O que quero dizer é que o protagonismo é feminino está garantido e isso é bom, mas não há equidade na distribuição dos papéis ainda.  Outras personagens femininas com falas são a avó, chamada de Nai Nai (Tsai Chin),  e a mãe de Yi (Michelle Wong).  Cumprida com folga a Bechdel Rule, mas eu preciso pontuar algumas questões.  

Após a morte do pai, Yi evita conviver com a mãe e a
avó e não divide seus sonhos, ansiedades e tristezas com elas.
Como em outras animações recentes, como O Parque dos Sonhos (*que não resenhei*) e Next Gen (*que Júlia estava revendo na Netflix*), temos uma menina deprimida pela perda do pai, ou da mãe.  Em O Parque dos Sonhos, a mãe está ausente para um tratamento de saúde, mas em Next Gen e Abominável, a morte do pai deixa um grande vazio na vida da filha.  

Em Abominável é evidente que o vínculo maior era com o pai e ele, mesmo morto, motiva as ações da filha, isto é, economizar dinheiro para fazer a viagem que os dois (*não a família*), tinha sonhado.  Yi sequer conta para a avó e a mãe, ela faz tudo em segredo, alienando as duas de sua vida.  Claro, o filme trata de restaurar os laços familiares e da comunidade, porque a aventura reaproxima Yi dos vizinhos (Jin e Peng), mas é interessante como essas animações com influência chinesa parecem diminuir o papel da mãe na vida de uma filha, enfim... 

O grupo é perseguido pelos interiores da China pelos vilões.
Em Next Gen, até é compreensível, pois a mãe se afasta da filha e é viciada em tecnologia.  Em Abominável, Nai Nai, a avó, e a mãe, que sequer tem nome, são amorosas e preocupadas com a menina.  Vejam, o comportamento de Yi, sua dor e a dificuldade de lidar com ela, não são incoerentes, o que me saltou aos olhos é essa aparente regularidade.  Perde-se o pai, fica a mãe, é uma menina, há um vazio enorme como se a mãe não fosse realmente importante.  De resto, o fato de Yi ser menina tem pouco peso na história, poderia ser um garoto e a história se manteria praticamente a mesma.  

O filme, aliás, reforça poucos estereótipos de gênero, e o único de impacto sobre as crianças é reforçar a ideia de que meninos - Peng e Abominável - são cabeças ocas, um tanto sujos e imprevidentes.  Everest e Peng são pré-adolescentes, talvez o yeti seja ainda mais jovem, e Yi os trata com complacência por serem meninos e crianças, enquanto Jin, que com 18 anos se considera adulto, os vê como moleques.

A mágica do yeti proporciona imagens lindas.
Há a crítica à artificialidade das relações virtuais utilizando Jin, o vizinho que acabou de ser aprovado na universidade e só pensa em likes e parecer interessante em suas redes sociais.  Jin precisa se desconstruir, abrir mão de suas vaidades e egoísmo, para acompanhar Everest, Peng e Yi na viagem.  Como tem se tornado comum, o possível romance entre Jin e Yi é absolutamente anulado.  Fosse um anime, eles formariam um casal, com certeza.

Abominável, como pontuei lá em cima, é um desenho visualmente bonito.  Algumas imagens são poéticas até, como quando Yi volta a tocar seu violino.  Mais adiante, ele passa a ter parte da mágica  do yeti e quando a menina toca, coisas muito bonitas acontecem.  Nota dez para abominável nesse quesito.

Longe da cidade, eles apreciam as
estrelas depois de muito tempo.
Agora, houve duas coisas que realmente me irritaram em Abominável.  A primeira é que os moleques e o yeti passam dias sem comer nada, subindo montanha, fugindo dos vilões e por aí vai, sem perder a energia.   Se você viu o trailer deve lembrar da cena com mirtilos, é a única vez em que eles comem.  Depois, há uma única cena de Peng reclamando de fome e nada mais que isso.

Já o yeti, ainda que alguém queira argumentar que a magia lhe tirava a fome, estava faminto enquanto escondido no terraço do prédio de Yi.  A menina, que recusava comer, passa a encher a bolsa com os bao (pãozinho recheado) que sua avó preparava, para alimentar Everest.  Agora, depois, quando começa a se agastar da cidade grande e do laboratório de onde fugiu, o yeti parece não precisar mais comer, mas e as crianças?

Os valores familiares são restaurados.
O outro problema são as roupinhas leves subindo a montanha. Só bem lá no final, eles recebem roupas mais quentes, mas, ainda assim, é coisa muito leve para subir o Everest, fora que tudo acontece bem rápido.  Não estou pedindo realismo, mas os japoneses ou mesmo a Disney não fariam melhor. Por exemplo, Ana troca de roupa para ir atrás da irmã na montanha e essa necessidade de se proteger do frio recebe a atenção devida em Frozen.  Em Abominável, isso passa meio batido.

Acredito que Abominável entre na seleção final do Oscar, é um desenho bonito visualmente, aquece nosso coração com suas sequências poéticas e a ênfase na restauração da família e da amizade e outros valores perdidos, nesse caso, usando o vilão.  A jornada do filme não é somente do yeti, mas é uma jornada de restauração interior de Yi, além de um passeio por belas paisagens da China.  Agora, o filme poderia ter um roteiro mais robusto.  

Yi volta a ser capaz de ver a beleza no mundo
e em si mesma e de criar beleza, também.
Não acredito que vai ganhar o Oscar, vai pegar coisas como Frozen 2 pela frente, mas tirou de Downton Abbey, que tinha derrotado Rambo na semana de estreia dos dois, o primeiro lugar nas bilheterias dos EUA.  Enfim, o filme estreou primeiro aqui e, duas semanas mais tarde nos Estados Unidos.

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