terça-feira, 26 de novembro de 2019

Comentando A Vida Invisível (Brasil/2019): Um filme sobre duas irmãs separadas pelo patriarcado


Essa ideia de dua irmãs separadas pelo patriarcado veio de outra resenha que eu li em algum lugar antes de assistir ao filme de Karim Aïnouz baseado no livro de Martha Batalha.  No original, a vida invisível era a de Eurídice Gusmão, uma mulher que poderia ter sido muitas coisas (*essa ideia é mais forte no livro, não no filme*), mas que foi condenada, sim, o melhor termo é esse, a ser esposa, dona de casa e mãe em um momento no qual poucas escolhas estavam abertas às mulheres.   Sua maior condenação, porém, foi ser separada da irmã que tanto amava, Guida, pelo pai e, depois, pelo marido.

Duas irmãs separadas, mas unidas pela distância. Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler). Criadas com mão de ferro por um casal português no Rio de Janeiro, seus caminhos se dividem no fatídico ano de 1951. Eurídice, a mais velha, sonha em ser pianista. Guida, dois anos mais nova, quer conhecer o mundo, viver grandes paixões. Ela tenta. Foge com um grego. As duas irmãs nunca mais se viram.  Aproximadamente 60 anos depois, Eurídice (Fernanda Montenegro), recém-viúva, absolutamente domesticada por mais de cinquenta anos de vida conjugal, descobre as cartas da irmã.  Guida nunca estivera longe, ela estava sempre perto, as irmãos, também, nunca tinham se esquecido uma da outra, apesar de todo o esforço feito para que elas seguissem com o curso de sua vida invisível.

Guida precisa morar em um cortiço.
A Vida Invisível é um título melhor para o filme, do que o original, que foi usado inclusive no Festival de Cannes, porque ele trata não só de Eurídice, mas de sua irmã Guida.  As duas personagens são defendidas com garra por Carol Duarte e Julia Stockler, jovens atrizes extremamente talentosas que eu espero que brilhem muito no cinema e na TV.  O filme inteiro é uma exposição de como o patriarcado invisibiliza e tira das mulheres as possibilidades de escolha, porque, afinal, e isso era norma nos anos 1950, a única escolha possível era o casamento e a maternidade como desdobramento natural do primeiro.

Logo no início, temos uma cena de Guida e Eurídice sendo convocadas pela mãe (Flávia Gusmão) a largarem o que estavam fazendo para lustrar a prataria, porque teriam uma visita.  Guida tinha marcado de visitar uma amiga (*na verdade, era mentira*), mas a mãe é inflexível.  Eurídice ainda tem um desconto, porque lhe deixam tocar seu piano, enquanto a mãe e a irmã trabalham.  Lembrei de Chiquinha Gonzaga, tocar piano é algo aceitável como prenda de salão, como um adereço a mais a ser exibido por um pai, ou marido orgulhoso em uma reunião íntima.  Como carreira, jamais!

Por qual motivo Eurídice casou com Antenor? 
Ninguém sabe.  Era o caminho a seguir.
Eurídice quer ser pianista, quer prestar um exame para ir para o conservatório em Viena.  Os pais fazem pouco caso do seus sonho, Guida a apoia.  Ao se casar, Eurídice se vê enterrada viva sob os trabalhos domésticos, os cuidados com os filhos e os deveres para com o marido, Antenor (Gregório Duvivier).  Mas nem o sexo é bom, aliás, como poderia ser se o objetivo é a satisfação de somente um lado do casal?  O corpo de Eurídice tem que estar à disposição tanto do marido, quanto dos filhos.  Seguir carreira como pianista?  Quanto egoísmo dessa mulher!  Ah, mas há algo que ela pode fazer: cozinhar. 

No filme, apesar dos diálogos, isso fica em segundo plano, no livro, ao que parece, isso é importantíssimo e há uma frase "Eurídice jamais seria uma engenheira, nuca poria os pés em um laboratório e não ousaria escrever versos, mas essa mulher se dedicou a única atividade permitida que tinha um certo quê de engenharia, ciência e poesia."

Guida repreende Filomena por preparar
o bacalhau de forma errada.
Os diálogos que tocam no assunto estão aqui e ali pelo filme como lembrando que, nessa área, as mulheres ainda poderiam brilhar desde que o objetivo fosse encantar a família.  "Ah, mas ela demorou muito para fazer as coisas do jeito certo.  Tive que ser paciente."  Algo assim é dito pelo pai de Eurídice sobre a esposa em um certo momento.  No final, o mesmo prato é servido pela filha de Eurídice (Cristina Pereira) para a família.  Conhecimento passado de mãe para filha, trabalho apropriado pela família, tudo dentro do aceitável.

Tanto no filme, quanto no livro, a gente não sabe o motivo de Eurídice ter se casado com Antenor.  Pressão familiar depois da fuga de Guida? Desejo de se livrar da tutela do pai (*pobre inocente!*)?  Antenor, e Duvivier me surpreendeu no papel, ainda que a atuação não seja diferente das que ele faz no Porta dos Fundos, é um bom homem, um homem decente para os padrões da época, machista, como não poderia deixar de ser. Pai e marido dedicado, genro que ampara os sogros, trabalhador.  Agora, toda a sua solidariedade e empatia é para com os seus semelhantes, o sogro, o filho.  

Anos e anos de cartas que nunca foram lidas.
Quando chegamos no final do filme, momento em que Fernanda Montenegro, com gestos pausados e ar cansado, assume o papel de Eurídice, ela se espanta do filho saber a senha do cofre do marido e ela não.  Eurídice sabia tudo sobre Antenor, mas, somente, aquilo que ele queria revelar.  E o que ele escondia?  As cartas de Guida.

Assim como em Entre Irmãs, que eu gostei muito, o elo entre as irmãs de A Vida Invisível é imenso.  Uma não vive sem a outra, mesmo distantes, elas mantém o seu elo, sua ligação.  Guida, assim como a irmã, é tolhida de expressar seus desejos, reprimida sexualmente, porque certas coisas só se deveria fazer depois do casamento, só que, diferente de Eurídice, ela tem uma imensa sede de viver.  Nesse ponto, Guida lembra a protagonista do filme argelino Papicha, que competiu com a Vida Invisível em Cannes e pode encontrar de novo com ele no Oscar.  Mulheres em um ambiente repressor, no qual os homens querem impôr as regras e os prêmios (*a maternidade sendo um deles*), tentando viver intensamente.

Filomena salva Guida da ruína.
Guida foge da tutela do pai e quebra a cara.  Sim, é o que acontece, ela cruza com outro homem que segue as regras do jogo.  Se ela se interessou por ele, expôs seu interesse, não lhe negou seu corpo, ela não vale nada. Guida termina com um filho no ventre.  Avoada e inocente, ela volta para a casa paterna e é expulsa.  O pacto de silêncio é imposto pelo patriarca à esposa.  Guida não sabe onde está Eurídice.  A irmã casada contrata detetives, mas nunca descobre se Guida vive, ou morreu.  O filme não faz concessões.

Se Eurídice está "protegida" em um matrimônio legítimo com um homem de bem, Guida está por conta própria.  Ela precisa descobrir como mulheres sozinhas sobrevivem.  Ela quer se livrar do filho que está no seu entre.  Ela termina nos limites da prostituição.  Mas mesmo sujo, realista, A Vida Invisível não nega um pouco de esperança.  Quem pode ajudar uma mulher perdida, outra mulher.  Nesse caso, Filomena (Bárbara Santos), uma ex-prostituta que cuida das crianças de mulheres que precisam trabalhar.

Antenor não consegue entender o que falta para Eurídice.
Filomena é dura com Guida e, aqui, o discurso da maternidade como destino triunfa.  O filme A Vida Invisível pode ser considerado feminista na sua crítica, mas não rompe com as "verdades universais".  Toda mulher quer ser mãe, pode ser uma boa mãe, menos Eurídice, claro, que é prisioneira de um casamento.  Se lhe permitissem ser pianista, ela conseguiria ser uma boa mãe?  Talvez...

E Guida trabalha muito contra tudo e contra todos.  Ela é confrontada por colegas de trabalho que perguntam por qual motivo ela estava lá.  Afinal, se fosse uma boa mulher, ela teria um homem para cuidar dela.  Guida cuida de si, do filho e, quando chegar a hora, cuidará de Filomena.  A velha prostituta lhe dá ótimos conselhos, aliás, a maioria deles no sentido de reforçar que uma mulher não precisa de homem para ser feliz, precisa de força, coragem e caráter.  Alguns diálogos das duas são engraçados e, bem, A Vida Invisível não é um filme com grandes momentos de humor.

Guida reinventa a sua vida.
No geral, A Vida Invisível me agradou.  O filme é bem sujo e pesado em alguns momentos.  Olhando o que está disponível do livro na rede, sei que a Eurídice do livro era inocente demais para falar e fazer certas coisas.  Ela foi criada em um ambiente protegido e pudico. Até uma parte importante do início do livro, uma exposição pesada do patriarcado e como ele oprime as mulheres foi tirada para transformar Eurídice em mais experiente que era e Antenor em mais liberal do que deveria ser.  Homens de bem normalmente não permitiam que suas esposas bebessem, usassem drogas, ou coisas assim.

E quero reforçar o seguinte, ele, assim como Bacurau, força a mão em certas coisas (*nudez, sexo desnecessário, palavrões etc.*) que sobem sua censura do filme.  Não falo somente de colocar palavras de baixo calão na boca de Eurídice, mas de nudez desnecessária.  Eu não precisava ver o pênis de Duvivier para entender o choque de Eurídice em sua noite de núpcias.  Da mesma maneira que não descobriria um furo do filme se não tivessem exposto a genitália de Carol Duarte.  Suas axilas não estavam depiladas, nos anos 1950, isso não era regra, mas suas genitais tinham uma aparência bem moderna nesse aspecto.  
Guida poderia desaparecer, mas se recusa a ser invisível.
Enfim, a pergunta que não quer calar: A Vida Invisível é melhor que Bacurau?  Não sei.  Bacurau prende a gente desde o início, nem que seja pela curiosidade.  Bacurau é pop.  Assistindo A Vida Invisível, demorei uns trinta minutos para realmente estar envolvida com o filme a ponto de, no final, meus olhos ficarem marejados.  A Vida Invisível é um filme introspectivo, para dentro, triste em muitos momentos, porque sabemos que aquela situação é possível, ainda acontece e destrói a vida de muitas mulheres, ou as condena ao vazio.

A Vida Invisível é feita de vazios.  O da ausência de uma irmã na vida da outra.  O da falta de perspectivas para as mulheres naquele dado momento da nossa história, décadas de 1950-60.  A possibilidade de nos roubarem direitos adquiridos com tanto esforço, de nos privarem das nossas escolhas, de tornarem a vida das mulheres, especialmente as mais pobres, Guida e Filomena, ainda mais triste.  
Tão longe, tão perto.
E se A Vida Invisível resvala na ideia de que ser mãe é uma dádiva, ainda que Eurídice fizesse tudo para recusá-la, o filme também defende (*e, aqui, concordo com ele*) que a prostituição é uma forma de degradação as mulheres.  No filme, a maioria das que se prostituem o fazem por pobreza e desespero e que, assim como no casamento, quem mais lucra com esse arranjo são os homens.

Não sei se a resenha ficou realmente boa, queria evitar spoilers e sei que dei um monte.  O fato é que A Vida invisível é um excelente filme e me fez querer ler o livro.  Ele é curto, aliás.  Assim como Entre Irmãs, o livro foi descoberto primeiro no exterior para conseguir visibilidade no Brasil. Ele tem várias edições estrangeiras, aliás.  Quando estava preparando a resenha, achei um vídeo do (*excelente*) canal Ler Antes de Morrer com uma resenha de novembro de 2016 sobre o livro.  Ele está em promoção no Amazon (*clique AQUI*) e acho que vou comprá-lo.  

A capa brasileira do livro.
A Vida Invisível vai ser um dos finalistas no Oscar de melhor filme estrangeiro?  Espero que seja.  É melhor que Bacurau?  Não sei, repito.  Acho que Bacurau vai virar um clássico, um filme cultuado, citado e lembrado.  Já A Vida Invisível, um filme sobre mulheres, é um pequeno tesouro.  Foi premiado em Cannes, na mostra Un Certain Regard, talvez, chegue ao Oscar, mas vai ser um daqueles pequenos tesouros do cinema nacional que muita gente ignora, até assisti-lo e se apaixonar.

1 pessoas comentaram:

Pretendo assistir semana que vem. Karim Aïnouz fez um excelente filme chamado Praia do Futuro, que tem uma das minhas cenas favoritas do cinema nacional, quando o personagem do Wagner Moura decide ficar e viver a própria homossexualidade na Europa e abandonar a família que ele ama. É uma cena sem diálogo algum, apenas ele e o namorado dançando enquanto toca uma trilha melancólica não diegética ao fundo. É como se fosse uma libertação para ele. Não há nenhum prazer na dança em si, porque todo o peso da decisão está sendo liberado dele naquele momento. Até que no final ele sorri, como se tivesse conseguido encontrar uma possibilidade de felicidade. Vou deixar aqui o link para a cena no youtube:

https://www.youtube.com/watch?v=c_osVxRCDgg

Quanto à comparação com Bacurau, pelo que vi a escolha por A Vida Invisível para tentar o Oscar se deu porque a Amazon já tinha comprado os direitos de Vida para distribuição e como eles têm um bom histórico de propaganda na corrida pelo Oscar, talvez os votantes tenham pesado isso.

De qualquer forma, duvido muito que qualquer filme estrangeiro tenha chance contra o sul-coreano Parasita. Acompanho vários críticos americanos e nunca vi eles falarem tanto de um filme estrangeiro quanto estão falando desse. Acho muito difícil não levar melhor filme estrangeiro e talvez concorra até a melhor diretor, roteiro original, e quem sabe até a melhor filme mesmo. Eu vi o filme há umas duas, três semanas e realmente merece toda a atenção que está recebendo. Fazia muito tempo que não me empolgava tanto assim com um longa. Se você não viu ainda, recomendo ver no cinema e sabendo o mínimo, porque as revelações que o diretor colocou são ótimas. recomendei para meus amigos e todos que viram amaram e disseram ser o melhor filme a que assistiram esse ano.

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