sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Revolta dos Malês vira minissérie e já está disponível


A Revolta dos Malês (1835), ocorrida em Salvador, foi a maior revolta de escravos ocorrida no Brasil e a maior revolta de escravos urbanos das Américas.  A palavra “malês” é oriunda de “imalê”, expressão que no idioma Iorubá significa muçulmano.  Ela foi organizada por escravos muçulmanos, inclusive por escrito, pois tudo foi combinado secretamente em árabe, os participantes juntaram inclusive dinheiro para comprar armas.  Escravo tem dinheiro?  Bem, não eram somente negros e negras escravizados os envolvidos, mas se você já estudou sobre os chamados escravos de ganho, que tinham uma profissão, andavam soltos pelas ruas das cidades, como a Salvador dos malês, sabe que eles e elas poderiam ficar com parte dos seus proventos.  

Na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, em Salvador, enquanto os católicos comemoravam, na igreja do Bonfim, a festa de Nossa Senhora da Guia, negros africanos celebravam o Ramadã em suas senzalas. Esta era a data para o início da revolta que, de forma mais estendida, dela participaram aproximadamente 1500 homens e mulheres escravizados, além de negros e negras livres, se envolveram no movimento.  A maioria eram nagôs e mesmo outros grupos islamizados não parecem ter tomado parte no movimento.  O historiador João José Reis defende que se as lideranças do movimento foram muçulmanas, o levante em si era um movimento dos negros e negras nagôs.  Ele questiona mesmo a ideia de que se tratava de uma jihad (*guerra santa*), ou algo do gênero.  REIS, João José. Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, Edição do Kindle.)



Se houvesse a vitória, todos os brancos seriam mortos (*há quem sustente que mesmo mulatos, ou membros de outros grupos inimigos seriam mortos*) e se instalaria um governo islâmico em Salvador.  Houve a denúncia, a Guarda Nacional avisada se preparou e a revolta foi massacrada.  O levante envolveu cerca de seiscentas pessoas, o equivalente a 20 mil pessoas na Salvador de hoje.  Foram nove soldados mortos para setenta revoltosos.  Seguiram-se julgamentos, Duzentos escravos foram levados aos tribunais, uns foram condenados à morte, outros a penas que variavam de trabalhos forçados, degredo e açoitamentos públicos.  Uns nem chegaram ao julgamento, morreram sendo torturados para que entregassem os companheiros.  Mais de 500 escravos foram remetidos de novo para a África e os escravizados baianos passaram a ter “má fama”, pois eram vistos como rebeldes e perigosos.

Pois bem, foi lançada no dia 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra, a minissérie sobre a Revolta dos Malês.  Com cinco capítulos de 25 minutos, ela pode ser assistida na página da TV Sesc.  Não se trata de um documentário, mas de uma série com personagens históricos e fictícios.  No centro da trama está a ex-escrava Guilhermina  (Shirley Cruz), enganada por seu senhor, porque ao comprar sua liberdade, ele não aceita libertar, também, sua filha Teresa (Jamily Mariano).  Gulhermina teme pela filha, ambas estão escondendo que a menina teve sua menarca e, portanto, está pronta para procriar.  Do outro lado está o líder religioso Licutan (André Ramiro), cuja prisão foi o estopim da revolta.  Estou assistindo ao primeiro episódio e a série não se omite em mostrar as rivalidades entre os vários grupos de escravizados, não somente entre os muçulmanos e não muçulmanos.  O patrocínio foi da Ancine, da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador, no valor de R$ 400 mil, iniciativa que prevê também ações voltadas para a educação na cidade.  O capítulo 1 está aí embaixo:


E para quem se pergunta se seria interessante se a Revolta dos Malês tivesse vingado, bem, como historiadora eu diria que a ideia não é essa, mas é conhecer este capítulo da História de nosso país que nem sempre é abordado em sala de aula.  Eu mesma já tive alunos que perguntavam “Mas por qual motivo os escravos nãos e revoltavam?”  Vendeu-se por muito tempo, e vende-se ainda, a narrativa de que os negros foram escravos, porque eram passivos e intelectualmente incapazes, devendo ser tutelados.  Bem, havia revoltas, mas a historiografia oficial, escrita por brancos, não raro baseada em fontes de brancos senhores de escravos, queria reforçar a ideia de docilidade e incapacidade, de uma certa forma naturalizando a subordinação e subalternização dos negros e negras até os nossos dias.  

Eles e elas lutaram e se você é liberal deve lembrar que, para Jonh Locke, os três direitos naturais são “a vida, a liberdade e a propriedade”.  Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos EUA, retirou o peso da propriedade e incluiu “a busca pela felicidade”.  Os revolucionários franceses, na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, acrescentaram a “igualdade”.  Claro, que eles não estavam pensando nos negros e negras escravizados, nos nativos das várias etnias, ou nas mulheres.  Alguns sequer incluiriam na equação homens jovens e os subalternos.  Mas uma vez que as ideias são criadas e a imprensa passou a existir, é melhor aceitar que as mensagens serão apropriadas e interpretadas por diferentes grupos.



Todas essas ideias estavam circulando na época da Revolta dos Malês, eram lidas, estavam nas conversas de rua e não somente nos círculos dos senhores brancos.  Vida é algo bem concreto.  Propriedade era a condição dos homens e mulheres escravizados e que contrastava diretamente com os da liberdade.  A gente pode até discutir o que é liberdade, porque há várias formas de ver a coisa, assim como felicidade, mas ser propriedade de alguém vai de encontro ao princípio de igualdade e, provavelmente, de busca pela felicidade.  

Os Malês tinham o direito de lutar, assim como os brancos e seus aliados, o direito de se defender.  Os dois lados, porém tem o direito de serem lembrados, guardados como exemplo, especialmente, quando as meninas e os meninos negros carecem de personagens da sua cor para se inspirar.  Não são somente as revoltas feitas por homens brancos e ricos que fizeram a história de nosso país, tampouco, são somente eles que devem ser lembrados por sua coragem e ideais, mesmo que tenham sido derrotados.

1 pessoas comentaram:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Praia_de_Jardim_de_Alah
Esta praia de Salvador foi batizada de Jardim de Alah pelos malês, pois eles se reuniam aí.

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