sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Comentando o livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão: Um mergulho no vazio da vida de uma dona de casa suburbana na década de 1950


Ontem, terminei de ler A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, o livro de Martha Batalha, obra que inspirou o filme de de Karim Aïnouz, premiado em Cannes e escolhido como pré-candidato ao Oscar (*mas não chegou lá*).  Lendo o livro, compreendi perfeitamente a mudança no título.  Também fui levada a refletir em como uma adaptação pode se afastar tanto do original e, ainda assim, ser uma boa adaptação.  Mas, enfim, vamos organizar esse texto (*ou tentar*), primeira parte é o livro, segunda parte, tentarei fazer algumas pontes com o filme.  Será sinalizado, então, não se aflijam.

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão acompanha a vida de uma mulher nascida entre o final dos anos 1920 e início dos anos 1930, filha de imigrantes portugueses.  Seu casamento, o nascimento do casal de filhos, sua relação com o marido provedor e conservador, suas frustrações, seus sonhos sufocados, seu reencontro com a irmã que fugira de casa (*SIM!*) e, por fim, sua ascensão social, de moça de classe média baixa até chegar à estilosa Ipanema da década de 1960.


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Ao longo do livro, conhecemos outras personagens, porque a autora se desvia de Eurídice para que possamos conhecer melhor Guida, a irmã mais velha, a vizinha fofoqueira Zélia e seu pai, Antenor (*o marido*), Filomena (*a ex-prostituta que acolho Guida*), Marcos (*o marido de Guida*), etc. São muitas personagens e um dos talentos da autora é saber parar a narrativa principal, a tal vida invisível de Eurídice, e retomar o fio principal sem que a qualidade se perca.  Agora, as subalternas,  mulheres pobres e cuja pele não é branca, nem quase  branca (*explico daqui a pouco*), não importam.  É como uma novela de Manoel Carlos na Tijuca.

Para quem não é do Rio de Janeiro, uma explicação.  O bairro da Tijuca, onde a autora cresceu, talvez, fosse filha de militar, seria interessante comprovar isso, é o bairro da Zona Norte do Rio mais tradicional, elitista e conservador, um dos mais antigos de toda a cidade, também.  Ficam na Tijuca o Instituto de Educação, o primeiro Colégio Militar do Exército, e um dos mais importantes Pedro II.  Durante muito tempo, morar na Tijuca era o degrau imediatamente inferior ao morar na Zona Sul do Rio e, mesmo assim, a depender de onde você morasse, talvez a Tijuca lhe desse mais status.



A narrativa do livro é a partir desse olhar tijucano, em algum momento é dito que poderia ser a história de uma de nossas tias.  Bem, Eurídice realmente parece com uma das minhas tias avós, que nunca morou na Tijuca, mas que casou bem, em termos econômicos, mas tinha um grande vazio que  preenchia cozinhando maravilhosamente bem, fazendo os mais belos crochês, mantendo sua casa sempre muito linda e acolhedora, enfim.  Só que meu tio não se parecia em nada com o Antenor de hábitos regrados, quase um britânico, apaixonado pela tecnologia.  Esse meu tio era apaixonado pelas outras mulheres... 

Eurídice no livro é a dona de casa exemplar que poderia ser qualquer coisa, que poderia ser cientista, que poderia ser escritora, que poderia alçar mil voos, mas que, desde a infância foi ensinada que não deveria brilhar, não deveria sonhar, deveria se conformar.  É interessante o papel da escola nesse processo.  A primeira professora, que estimulava o voos de Eurídice e de todos os seus alunos, morre e é substituída por outra que se comprazia em humilhar.  Primeiro, ao negar-lhe o direito de ir ao banheiro, fez a menina se mijar.  Eu passei por algo assim aos cinco anos de idade com uma das minhas primeiras professoras.  Lembro que pedi para "fazer xixi" e a professora me repreendeu duramente na frente da turma dizendo que não deveríamos dizer o que faríamos no banheiro e disse que eu não podia ir.  Acabei mudando de professora, talvez o estrago fosse grande se ficasse tendo aulas com ela.



Mas tive uma professora que realmente se parecia com a D. Joseja, desse mesmo jeitinho, mas era professora de Técnicas Comerciais, não me arranhou em nada, só tornava 50 minutos da minha vida aos 13 anos bem desagradáveis.  No caso de Eurídice, a aluna das notas perfeitas, a professora descobriu que a menina tinha dificuldade em pronunciar os "erres" e passou a humilhá-la diante da turma.  Ela tirava um dez e, para não ficar metida, era ridicularizada pela professora.  Aprendeu a errar para não ser humilhada diante da turma.

Enfim, Eurídice primeiro é desestimulada a brilhar na escola, depois, descobre a música, no caso do livro, a flauta doce, só que os pais lhe cortam as asas, afinal, ela deveria tocar par aos seus, para a família, era uma prenda a mais para arrumar um marido (*me pareceu mais coerente no filme trocarem por piano, sabe?*).  Ela chega a chamar a atenção de Villa-Lobos, que a ouviu tocar na escola, mas os pais lhe negam o direito de estudar mais.  E veio a fuga de Guida, o que tornou sua vida mais reclusa.



Assim como no filme, não fica claro por qual motivo Eurídice se casa com Antenor, talvez, porque toda mulher tivesse que casar e ele fosse um bom partido.  Moço de boa família, funcionário do Banco do Brasil, capaz de sustentar uma família.  Mas, eis que na noite de núpcias, Eurídice não sangra e Antenor levará para toda a vida essa mágoa, a crença de ter sido enganado.  Esse detalhe tem importância grande no livro, porque apequena Eurídice, mulher decente que tinha chegado virgem ao casamento, e torna a relação dos dois ainda mais desigual.  Só para esclarecer, essa ideia de que virgens devem sangrar, que é um atestado de sua pureza, atravessa várias culturas e pode definir, em algumas delas, a vida, ou a morte, de uma mulher, porém há vários tipos de himens e essa história de sangramento obrigatório não existe.

Enfim, o assunto retorna várias vezes ao longo do livro e ficamos sabendo que nem a mãe de Eurídice, nem Guida sangraram.  A mãe da protagonista também será humilhada pelo marido, só que Guida nasceu tal e qual o pai.  Aliás, há caso semelhante na minha família, sujeito nega a paternidade só para que a criança nasça perfeita xerox do cretino.  Enfim, mas Guida mesmo só é introduzida de fato na história bem mais tarde.  Ela era mais velha que Eurídice, ela era uma moça sem grande interesse pelos estudos, mas muito antenada com a moda e leitora voraz do Jornal das Moças.  



Guida acaba conhecendo um jovem de boa família, estudante de medicina e membro de um clã tradicional da política fluminense, morador de Botafogo.  Ela age segundo o protocolo, demora a aceitar a corte do rapaz, nega-lhe qualquer favor que ultrapassasse o que o decoro da época impunha a uma boa moça, ele vai até a casa de Guida, mas ela é rejeitada pela família do rapaz.  Guida assume então que cabe a ela salvar o jovem de sua família terrível e da condenação de casar com uma prima para fortalecer ainda mais o clã.  Guida termina dando com os burros n’água e, mesmo casada, é rejeitada pelo pai quando vai lhe pedir ajuda.

Marcos, o marido, a abandonara.  Guida não tem coragem de abortar a criança que carrega no ventre, mais tarde, não consegue entregar o menino, que chama de Francisco, em adoção.   O menino vira a razão da vida de Guida, mas ela terá que trabalhar duro para criá-lo e receberá a ajuda de uma ex-prostituta, Filomena, nessa tarefa.  A mulher, depois de idosa e sifilítica, passou a cuidar de crianças filhas de mulheres que precisavam trabalhar.  Guida é acolhida por ela como uma filha, ou irmã, e Francisco cresce com duas mães e muitas interrogações sobre afrontas que elas e ele ouviam de terceiros.   Mas a tragédia não deixa Guida, assim como sua coragem, não vou dar spoilers nessa parte, comento alguma coisa mais abaixo.  Mas digo que a autora foi muito boazinha ao mostrar como Guida consegue se aproximar da irmã, ser acolhida pelo cunhado e encontra um bom caminho na vida, ainda que tenha que sair da Tijuca para um bairro mais arejado.


Não há piano no livro.
Francisco, o filho de Guida, excelente aluno, concursado do Pedro II, acaba se tornando uma espécie de companheiro da tia Eurídice, o único que conseguia compreender seus sonhos e desejos.  Ainda que Eurídice não consiga romper com sua vida invisível, Chico lhe apoia e ajuda a conseguir dar alguns voos.  No final do livro, já em Ipanema, Eurídice volta a estudar, vai fazer faculdade, e passa mesmo a acompanhar o sobrinho em manifestações estudantis contra a ditadura civil-militar.

Mas atropelei a coisa.  Enfim, Eurídice, antes de se encontrar como leitora voraz e estudante de História na PUC, passou por várias situações horríveis.  Casada, é humilhada pelo marido que acredita que ela não era virgem ao casar.  Decide engordar para expulsá-lo da sua cama.  Como libido não era algo urgente na vida de Antenor, ele se afasta.  Dois filhos eram suficientes.  A menina, Cecília, foi saudada como “bonita”, enquanto o filho foi alardeado como “homem”.  Estava estabelecido que um valia em si mesmo, pelo que tinha entre as pernas, a outra, por sua aparência.  Acho que os dois filhos de Eurídice, que foi mãe exemplar na medida que seguiu as convenções, saíram ao pai.


Eu considero a sequência do casamento um dos pontos baixos do filme. 
No livro, Eurídice só começa a fumar muito mais tarde e escondido do marido.
Depois, Eurídice se lança à culinária, exercício criativo inofensivo e adequado para uma mãe de família.  Nem os filhos, nem o marido, davam valor aos pratos sofisticados que Eurídice criava, porque ela começa replicando receitas, depois, inventando as suas próprias.  Quando anuncia ao marido que quer lançar um livro e lhe mostra suas receitas, é humilhada por ele.  “Quem vai querer lançar o livro de uma dona de casa?”.  Mais tarde, vem o corte e costura.  Ela aprende a costurar muito bem, faz roupas para si (*emagrece até para usar modelos acinturados*) e para a família, depois, deixa de ser suficiente e passa a costurar para as vizinhas.  Quando o marido descobre, uma tempestade.  Eurídice era uma péssima mãe e esposa, porque decidira ter uma “profissão”, humilhava o marido diante da vizinhança, afinal, todos deveriam pensar que ele não tinha como sustentar a casa.  Proibida foi novamente de exercer qualquer atividade criativa.

Qual o problema de Antenor?  A autora explica, até porque ele não é somente o machista médio de sua época.  Sua mãe fora uma poetisa, uma mulher de veia muito artística, o marido era complacente, os filhos viviam largados.  Um dia, sua mãe se matou.  Antenor, o mais velho, era suficientemente crescido para lembrar.  O que ele decide?  Que será o pai mais presente possível e que deseja uma esposa bem-comportada, que só pense nos filhos, na casa e no marido, que não seja egoísta como sua mãe, mas organizada e dedicada como a tia solteirona que terminou de criá-lo e aos irmãos.  


Guida sabia se vestir, era vaidosa, acreditava ter
os atributos para conseguir um bom marido.
Ele acreditou que Eurídice era essa mulher, mas ela não era.  A jovem Eurídice era capaz de fazer qualquer coisa que se dispusesse a tentar, porém ela aprendeu a se curvar aos pais e ao marido, se apequenar nesses momentos de confronto, a se sentir culpada, como uma boa mulher deveria.  E, bem, ela sempre cedia, se desculpava, recuava.  Depois do incidente do ateliê de costura, ela mergulhou em uma depressão profunda.  É nesse momento, quando até Antenor começa a crer que exagerou e quer Eurídice de volta com todos os seus defeitos, que Guida aparece na vida dos dois.  Isso é para lá da metade do livro.

Mesmo tendo crescido muito longe da Tijuca, meus parentes mais abastados da época moravam em Irajá, ou na Penha, é possível reconhecer pontos em comum entre a vivência das mulheres descritas no livro e a de tantas outras conhecidas.  Há uma espécie de experiência coletiva feminina que se faz presente no filme e que dialoga com as leitoras no Brasil e no exterior.  Mas eis que levanto uma questão, se a autora narrou seu livro de forma acrítica a partir da vivência das senhorinhas tijucanas que conheceu, sem refletir sobre seus preconceitos, OK, eu entendo.  Agora, se não foi desse jeito, o que temos é um material extremamente racista e classistas.  


No livro, as misérias de Guida são maiores, mas ela não vira operária.
Prefiro acreditar na primeira hipótese, porque há um determinado momento em que se fala de um médico que era meio mulato, mas, ao ascender na vida, passou a ser visto como quase branco.  Essa ironia sobre as relações raciais ditas cordiais brasileiras não é central no livro, mas é importante para sugerir que a autora, ao dar voz ao preconceito, expõe as limitações de suas próprias personagens, gente parecida com as que ela viu de carne e osso no bairro da Tijuca.  Há alguma solidariedade entre as mulheres em A Vida Invisível?  Sim, mas, via de regra, ela é horizontal.  

Guida vivendo na miséria no bairro do Estácio recebe a solidariedade de outras mulheres, de anônimas e de Filomena.  Ela mesma retribui o carinho de Filomena com grande sacrifício para ela mesma.  Eurídice é solidária com a irmã.  Agora, Eurídice não mostra nenhuma bondade ou solidariedade com a empregada doméstica, Das Dores.  Eurídice age para com a criada da mesma forma que Antenor, desconta na mulher, que se sacrifica para garantir o sustento de três filhos, suas frustrações, ignora, assim como o marido, que o filho assedia e abusa sexualmente de Das Dores.  A demite, por fim, quando ela está velha demais.  E isso, depois de ler Simone de Beauvoir, de se politizar e de estudar História.  


Eurídice delira no casamento.  No livro, isso não acontece.
Ora, o livro de Martha Batalha conta as histórias de suas tias e avós (*as da autora, vejam bem, não necessariamente das suas, ou das minhas*), não das suas empregadas, das costureiras e de outros.  Só que, ao falar de Guida, sabemos um pouco dessas misérias.  Mas sempre é muito pouco.  Então, fica aberto para você ler como quiser.  A autora está sendo irônica?  Mostrando que mesmo para a invisível Eurídice há quem seja mais invisível ainda.

A solidariedade entre mulheres em A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é absolutamente horizontal, nunca vertical.  Ainda assim, ela parece rara, no livro, a vida das mulheres é tão pequena, por culpa do patriarcado, sim, essa é a mensagem, que algumas delas se entregam às piores mesquinharias.  Caso de Zélia, uma personagem muito rica no livro, mas absolutamente outra no filme, ainda assim, ela é a única que tenta sabotar outras mulheres por motivos próprios e, não, por disputar a atenção, ou os favores, de algum homem.


Guida recebe mais solidariedade no livro, do que no filme.
Enfim, o livro é muito interessante, a prosa é agradável e é meio que inexplicável para mim, que nenhuma editora brasileira tenha se interessado por ele e o dito cujo tenha sido publicado primeiro no exterior, Alemanha e Noruega.  Mas foi o que aconteceu.  De qualquer forma, acredito que seja uma boa leitura mesmo para quem não teve tias, ou avós, ou conhecidas com histórias semelhantes.  No entanto, insisto que a experiência feminina retratada no livro transcende, em vários momentos, o espaço geográfico, a classe e a cor de pele das personagens, porque, bem, são experiências vividas pelas mulheres dentro de uma estrutura patriarcal violenta para com as mulheres e perpetuadora de exclusões e desigualdades.   Depois do vídeo, para quem ainda tiver fôlego, seguem comentários falando do livro e filme.



Tendo lido o livro, acredito que A Vida Invisível, o livro, ficaria melhor como minissérie, mantendo a riqueza das personagens.  Queria ver a Zélia do livro na tela, não a mulher "vivida" que dá conselhos sujos para a noiva Eurídice.  Queria que a Guida começasse como a do livro, romântica, ciente de seu valor e capaz de se fazer "respeitar" aos moldes da década de 1940, não como a doidivanas que se metia com marinheiros e se entregava à carícias íntimas em banheiros.

Quando escrevi minha resenha, eu pontuei algumas coisas sobre isso.  Pegaram um livro que fala sobre mocinhas recatadas, criadas quase sem nenhuma informação sobre sexo e as modificaram para o filme.  Guida, que achava saber tudo, se informava pelas revistas para moças e pelo cinema, Eurídice, tímida, retraída, era informada pela irmã.  O livro está cheio daquelas formas de ver o mundo que eu li nas revistas na casa da tia que citei.  Mulheres que comentavam o choque da primeira menstruação e o desamparo da vergonha e falta de informação.  Ainda bem que Eurídice tinha Guida.  Minha mãe, quando perguntou o que era o paninho (*menstrual*) que minha avó estava lavando, tomou um safanão.  Minha mãe foi criança nos anos 1950 como os filhos da Eurídice.


No livro, as irmãs são unidas, mas não tanto quanto no filme.
A Guida do livro não era uma moça capaz de chutar tudo para cima, a mãe não lhe virou as costas por causa do pai, mas o patriarca, sim, ele negou apoio para a filha.  Antenor nunca ofereceria drogas para Eurídice, ou falaria obscenidades.  Como pontuei na resenha, as moças suburbanas, filhas de família super conservadora, poderiam até transgredir (*fala-se rapidamente das mocinhas tijucanas que engravidavam e abortavam no livro*), mas isso era feito em segredo, a maioria, vivia em uma ignorância em relação a quase tudo.  As mulheres do filme, talvez, talvez mesmo, pudessem ser vistas em Ipanema, mas dificilmente na Santa Teresa ou Tijuca do livro.  E não entendo mesmo o motivo por cortarem a dúvida de Antenor sobre a virgindade da esposa.

Não estou me desfazendo do filme, mas pontuando que muitas vezes a liberdade artística tomada faz com que as personagens se tornem pouco críveis em alguns aspectos.  Fora que as cenas de sexo, nudez, palavrões ausentes do livro, mas muito presentes no filme, fizeram subir a classificação indicativa.  Talvez, seguindo mais de perto o texto de Martha Batalha, o filme, que foi premiado, vejam bem, teria uma classificação indicativa menor, teria um público mais amplo e poderia ser igualmente uma crítica contundente ao patriarcado.


Se seguíssemos o  livro, não teríamos
Fernanda Montenegro no filme.
Escrevo isso, porque a opção por deixar as irmãs separadas no filme, deu-lhe uma força que o livro não tem.  Ao domar Eurídice, que no filme é monotemática, seu negócio é música mesmo e somente ela, foi muito mais próximo da realidade de uma maioria de mulheres, do que a autora do livro transformar a protagonista em escritora, estudante universitária e militante política.  Agora, o corte feito pelo filme, o salto no tempo, mudou muito Guida, tirou-lhe vários sofrimentos que ela encarou depois da morte de Filomena e criou um problema que me incomodou: como ela assumiu a identidade de Filomena e ficou com a casa?  No livro, esse problema não existe.

De qualquer forma, o filme foi muito inteligente ao igualar as duas irmãs, duas vidas invisíveis, delimitando a narrativa aos eventos mais importantes da vida de ambas, arriscando, com grande sucesso, mudanças consideráveis em relação o original.  O livro funciona, o filme, também.  Enfim, fiquei o dia martelando esse texto, parei muitas e muitas vezes, internet ruim, duas menininhas de seis anos para lidar.  Bem, minha vida não é invisível, ou talvez seja, de uma certa forma, mas eu entendo bem as agruras das mulheres do livro.  Incomoda-me a abordagem ao estilo Manoel Carlos, mas, enfim, gostei da leitura e terminei o livro muito rapidamente.

3 pessoas comentaram:

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"Eu senti que a autora é ácida e irônica no livro todo e que as pinceladas de história da Das Dores serviam justamente para mostrar que ela era muito mais invisível que a protagonista, e sua vida muito pior do que aquela que ja estávamos sofrendo junto ao ler.
Eu que li o livro antes do filme, agora estou com medo de assistir e sentir que a adaptação mudou demais a história..."

Apaguei sem querer o comentário da Natasha.

Assim como a Natasha, achei o estilo da autora irônico, replicando o modo de pensar das personagens retratadas e usando conscientemente expressões preconceituosas do cotidiano. O livro ironiza que o próprio nome já sugeria como foi a vida da Das Dores e que a Eurídice descontava nela as próprias frustrações (* e tédio*). Já conheci muitas "patroas" desse jeito. Ainda assim, me agradou mais a diversidade étnica do filme e concordo que esse é um ponto falho do livro. Só que como eu li o livro primeiro, acabei detestando a adaptação. Senti que a essência do livro foi perdida - uma história de um bairro e ao mesmo tempo da vida riquíssima dessas duas mulheres, Eurídice e Guida. Enquanto o filme é mais sobre como elas tiveram a vida destruída pelo patriarcado (são vítimas), o livro optou por mostrar como elas buscavam ter agência sobre a própria vida em um sistema que fazia de tudo para podá-las (são admiráveis).
Ah, também concordo que os excessos nas caracterizações do filme prejudicaram a sua verossimilhança. Principalmente toda a sequência do casamento, que para mim transformou a Eurídice em outra personagem.

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