domingo, 29 de novembro de 2020

Comentando Gambito da Rainha (Queen's Gambit/Netflix/2020): Nunca o Xadrez foi tão bonito e a Relação entre Homens e Mulheres tão mentirosa

Na sexta-feira me envolvi em uma série de discussões sobre The Queen's Gambit sem ter assistido a série, somente tendo como referência aquilo que tinha lido de bom e de crítico em relação ao seriado que já criou um fandom apaixonado todo seu.  Tão apaixonado e agressivo que convenceu até autodeclaradas feministas de que é correto falar de um ambiente hostil às mulheres sem tocar nessa questão e que isso seria OK.  Na série, a jovem prodígio do xadrez Beth Harmon é somente mais um dos caras, ser mulher não teve impacto significativo na sua trajetória.

Ainda assim, eu preciso dizer que The Queen's Gambit é muito bom, mas muito perigoso por ter ido além de obras anteriores de menor repercussão ou alcance, como o novo Emma, baseado em um livro de Jane Austen, e estrelado pela mesma e excelente Anya Taylor-Joy.  E aviso de pronto que esta resenha terá spoilers, ainda que eles sejam atinentes somente ao ponto principal daquilo que quero pontuar, isto é, como o seriado cria uma ideia totalmente fantasiosa a respeito das relações entre homens e mulheres, negando-se, inclusive, a abrir uma janelinha para o que estava acontecendo no mundo durante a década de 1960.  Aviso logo que se você acredita que Queen's Gambit é perfeito, ou que é só sobre xadrez, o texto não irá lhe agradar e nem é a minha intenção agradar ninguém, aliás.

Nossa história começa em  Lexington, Kentucky, estado rural dos Estados Unidos, nos anos 1950.  Beth Harmon (Isla Johnston) tem oito anos, sua mãe acabou de morrer em um acidente de carro.  Ninguém sabe quem é seu pai.  Ela é enviada para um orfanato cuja proposta é criar menininhas dóceis e que possam ser adotadas.  Dentro dessa proposta, as meninas recebem diariamente uma dose de vitaminas e tranquilizantes, algo comum nos EUA da época, o que dará início ao ciclo de dependência química da protagonista.

Beth se sente isolada, salvo pela amizade com uma garota mais velha e negra que também mora no orfanato, Jolene (Moses Ingram).  Para mim foi uma surpresa o orfanato não ser segregado, mas a série segue o livro.  As coisas mudam, quando Beth descobre que Mr. Shaibel (Bill Camp), o zelador, joga xadrez.  Ela fica fascinada pelo jogo e, apesar de ouvir dele que "Meninas não jogam xadrez", ela insiste e o velho decide lhe ensinar.  A garota, que herdou o talento matemático da mãe e tem seus sentidos aguçados pelos tranquilizantes, vê as peças se movendo no teto do quarto.  

Beth se mostra um prodígio, isto é, uma criança capaz de enfrentar e vencer oponentes que deveriam lhe ser muito superiores, e Shaibel decide fazer o possível, dentro das suas poucas possibilidades, para que a menina possa se desenvolver no xadrez.  Lhe ensina tudo o que sabe, lhe dá livros e ela absorve tudo o que pode, até ser obstruída pela diretora do orfanato, a Sr.ª Fergusson (Akemnji Ndifornyen).

Quando já não tinha esperanças de adoção, Beth acaba sendo escolhida por um casal, Allston e Alma Wheatley (Patrick Kennedy e Marielle Heller).  Só que a jovem, agora com 15 anos, se não me perdi nas idades, cai em um lar disfuncional e, logo, terá que conviver somente com Alma, uma dona de casa frustrada e dependente dos mesmos remédios que Beth tomava no orfanato.  Sorte, não?  A menina parece meio perdida, sem conseguir se relacionar com os adolescentes de seu novo colégio até que redescobre o xadrez.  Primeiro, nos livros da biblioteca, depois, quando consegue, graças à ajuda financeira do Sr. Shaibel, se inscrever em um torneio local de xadrez.

Beth, aos quinze anos, vence o campeão estadual, Harry Beltik (Harry Melling), e conhece um rapaz por quem alimentará uma paixão não correspondida ao longo de toda a série, Townes (Jacob Fortune-Lloyd), além dos gêmeos Matt e Mike (Matthew e Russell Dennis Lewis), que trabalham registrando os participantes.  O prêmio de 100 dólares chama a atenção de sua mãe, que estava reduzida a uma situação econômica muito difícil depois de abandonada pelo marido.  Assim, ela decide investir na carreira de Beth.  A partir desse momento, vemos Beth galgar os degraus do mundo do xadrez profissional e competitivo, enfrentando e destruindo seguidamente seus oponentes, todos homens, e suportando mal seus poucos reveses, como quando não consegue vencer outro prodígio do xadrez, Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster), ou nos seus frustrados enfrentamentos com o soviético Vasily Borgov (Marcin Dorociński).  Mas, sim, no final, depois de muitos altos e baixos, nossa Beth triunfará.

Não descobri o xadrez com o Gambito da Rainha.  Jogo xadrez de forma muito amadora desde o final da adolescência.  Conheci o relógio, ao qual Beth foi apresentada no seu primeiro torneio, na época da faculdade.  Como medievalista, já li bastante sobre as origens do jogo e seus possíveis antecessores, como o Senet egípcio.  Por ter assistido a um documentário sobre as irmãs Polgar, Susan, Sofia e Judit, todas três grandes mestres do xadrez, Judit a pessoa mais jovem a receber o título até então (*e já foi superada*), ensinei o que sabia do jogo par a minha filha quando ela completou 4 anos.  Ela gosta de xadrez, espero que consiga jogar de verdade e, não, ficar somente no estágio ridículo no qual parei.

Curiosamente, só me prontifiquei a assistir o seriado, porque tive discussões no Facebook com gente que dizia que as críticas de uma das irmãs Polgar ao apagamento do machismo da série seriam absurdas.  Afinal, é uma série sobre xadrez, não sobre machismo, e Susan Polgar nada entendia sobre roteiro e construção de personagens. Quer dizer, o fato dela, uma grande mestre do xadrez, apontar que, apesar de ter amado o seriado, Beth não seria recebida com afagos e gentilezas por todos os seus oponentes masculinos, que sofreria assédio de várias formas, não conta por você ter achado a série muito legal?  Não.  E concordo com este artigo que diz que Queen's Gambit é ideal para quem procura escapismo e glamour.  

Sim, glamour, afinal, o figurino da série, que comentarei mais lá no final, é espetacular, as locações, também.  Fica parecendo, e é assim que a mãe adotiva da personagem pensa, que o mundo do xadrez é ideal para quem gosta de viajar e ficar em hotéis luxuosos. quando uma dona de casa americana média poderia sonhar em conhecer Vegas, Cidade do México, Paris, Moscou?  E justiça seja feita, os primeiros capítulos de Queen's Gambit são melhores na discussão do machismo do que os demais, mas, obviamente, não há menção ao que acontecia nos EUA naquele momento nesse campo, por exemplo, A Mística Feminina de  Betty Friedan, uma crítica a essa vida pouco compensatória que Alma tem, foi lançado em 1963, por acaso, o ano do primeiro torneio de Beth, ou o que vem logo em seguida.

Alma é prisioneira de um casamento infeliz, de um papel que não deseja, o de dona de casa convencional.  A personagem não tem compensação alguma, nem sexual, nem social e se refugia no álcool e nas drogas lícitas, assim como uma colega de colégio que Beth reencontra anos depois já mostrando os mesmos sintomas de frustração.  Casara-se logo depois de sair do colégio, tinha roupas e casa suburbana, um marido provedor, uma filha, o que poderia querer além disso?  Enfim, para Alma, o universo do xadrez é uma chance de conhecer o mundo e se divertir.  Para Beth é sua vida, o que dá razão para a sua existência, e ela precisa estudar e muito.  

Nesse aspecto, Queen's Gambit é perfeito ao mostrar que um enxadrista profissional precisa se dedicar a horas e horas de estudo.  Ainda na fase do orfanato, a menina Beth diz que somente sobre a Defesa Siciliana há 57 páginas no livro que o Sr. Shaibel lhe deu.  Mesmo talentosa, e a série enfatiza isso o tempo inteiro, Beth precisa estudar e treinar e, claro, aprender a lidar com a derrota.

Retornando, se não queriam falar que o mundo do xadrez é machista, bastava colocar um homem no papel de Beth e o protagonista só teria que enfrentar a questão geracional.  Um garotinho enfrentando homens mais velhos e os vencendo um a um, apesar de suas inseguranças.  E é interessante, porque a própria Beth no seriado, que eu vi sendo descrita como "alguém muito foda que não está nem aí para o fato de ser mulher", o que poderia até ser, mas não teria impacto algum sobre os homens ao seu redor, foi bem desdenhosa com um oponente soviético de 13 anos.  

A atitude dela foi tão ruim, ou até pior, do que a imposta a ela quando novata (*não por ser mulher*) com sujeitos bocejando, ou se atrasando para as partidas. Claro, no final, ela dá um afago no garoto, que comportara-se como um cavalheiro, mas eu fiquei torcendo para que o menino a derrotasse.  Essas sequências de Queen's Gambit só se prestam a reforçar que Beth, salvo pela sua juventude é somente um dos caras, o que ela nunca seria se a série tivesse uma abordagem minimamente realista sobre a situação das mulheres no xadrez, ainda mais na década de 1960.

Queen's Gambit teve como fonte um livro de 1983 e o autor, Walter Tevis, baseou-se para criar a personagem de Beth em Bobby Fischer (1943-2008), o mais jovem grande mestre do xadrez antes de Judit Polgar e um símbolo dos EUA durante a Guerra Fria.  Afinal, ele foi usado na propaganda contra a União Soviética nos seus vários confrontos com os soviéticos (*russos, georgianos, ucranianos etc.*), que dominavam as competições internacionais.  Talvez, Tevis tenha sido irônico ao criar Beth, porque Fischer era conhecido por sua misoginia (*além de racismo, antissemitismo e a lista continua*).  

Vejam só esse trecho de entrevista de Fischer em 1963, contemporâneo ao seriado, portanto, mas deixo destacada esta frase "Elas são péssimas jogadoras de xadrez... Acho que não são tão inteligentes... Não acho que elas devam mexer com assuntos intelectuais, elas devem se manter estritamente em casa".  Por aí vocês já podem imaginar o quanto o seriado da Netflix foi omisso.  E a culpa não foi do livro, porque encontrei artigos comparando as versões e todos eles pontuaram que o seriado de TV retirou situações que sugeriam lesbianismo, racismo e, claro, limpou as personagens masculinas do seu machismo, algo que seria comum na época, tornando a situação de Beth nessa área bem tranquila.  Fica até parecendo que ser mulher a ajudou no mundo do xadrez, afinal, ela estava cercada de homens querendo ajudá-la, lhe abrindo a porta, oferecendo flores, orientando e estimulando.  

Curiosamente, há um artigo do The Guardian que elogia esse aspecto de Queen's Gambit, ele tem o título de "Sem abuso, sem assédio, sem sexismo - os homens decentes que fazem de The Queen's Gambit uma verdadeira raridade na TV".  A autora, uma mulher, sim, dá mais legitimidade quando é uma de nós a escrever essas coisas, ressalta como está cansada de ver seriados mostrando as agruras impostas às mulheres pelos homens, e cita Mad Men, que é realista em relação ao sexismo e o racismo e se passa exatamente na mesma época de Queen's Gambit.  Para pessoas como a autora do texto do The Guardian, é melhor reinventar o passado e apresentá-lo como menos agressivo com as minorias.  Aliás, as meninas do colégio são bem mais agressivas com Beth, fisicamente, inclusive, do que os homens da série.  Curiosa essa escolha.

Se você não entendeu ainda o problema disso tudo, deixa a tia professora de História tentar explicar.  A imagem que muita gente tem do passado é moldada pelo que ela consome, filmes, seriados, animações tem grande importância na forma como nós montamos um retrato das décadas passadas, dos séculos e milênios distantes.  Por exemplo, o público internacional que consome novelas brasileiras, tende a acreditar que somos mais brancos do que realmente somos, graças às produções da Globo, principalmente.  

Você viu o seriado, depois assistiu um youtuber com sabe-se lá quantos mil ou milhões de seguidores elogiando a série, ou um especialista em xadrez mostrando como a série é precisa, que teve como consultor o grande mestre Garry Kasparov, você gostou de Queen's Gambit, logo, aquilo é verdade.  Você é homem e se sente incomodado com a forma como alguns produtos culturais apresentam o grupo ao qual pertence. Assiste Queen's Gambit e se sente feliz, porque os homens da série são todos legais com Beth.  Você já acreditava que as feministas mentiam, agora, você tem certeza.  Você vê um negro em posição de poder no orfanato e zero comentário sobre a luta de direitos civis ou sobre segregação. Está vendo que essa história de racismo é uma bobagem inventada pelos ativistas de nossos dias?  

Curiosamente, tenho percebido que esse tipo de reinvenção do passado pode ser uma tendência nas produções norte americanas atuais.  O novo Emma (*resenha*) mostra uma relação horizontal entre homens e mulheres da mesma classe social no início do século XIX, em Enola Holmes (*resenha*), mesmo pesando a mão de forma caricatural ao falar das questões das mulheres, temos montes de homens bonzinhos e uma Inglaterra vitoriana que parece não ser racista.  E os elogios aos silêncios de Queen's Gambit são ainda mais perigosos dada a repercussão e qualidade do seriado, porque podem ajudar nesse terraplanismo histórico. A série é muito, muito boa, esse mundo que ela apresenta é muito legal para não ser verdadeiro.  Que tal produzirmos montes de séries e filmes assim?

Resumindo, Queen's Gambit poderia continuar sendo sobre xadrez e evidenciar as dificuldades de Beth por ser mulher sem atrapalhar o desenvolvimento do roteiro.  Foi uma opção silenciar sobre isso, ou enfatizar uma atitude positiva dos homens em relação à protagonista o TEMPO TODO.  Aliás, eu acredito que só se comenta superficialmente de Guerra Fria no seriado, porque é preciso falar dos soviéticos, pois não temos nada de citação de contexto histórico, nem assassinato de Kennedy, nem Guerra do Vietnã, nem da morte de Martin Luther King, nem movimento Flower Power, nem nada.  ZERO.  

Eu sei que alguém vai repetir que a série era sobre xadrez e eu vou insistir que isso não justifica os silêncios.  E eu vou dar um exemplo, em Minha Mãe é uma Sereia, um filme que não era político, o trauma do assassinato de Kennedy é introduzido na narrativa com grande competência e termina por valorizar o roteiro.  Olha, se você pode colocar esse tipo de informação em um filme de menos de duas horas, em sete capítulos de 50 minutos, ou mais, vide o último episódio, você tem obrigação de fazê-lo.


Sigamos, vamos falar de um aspecto curioso de Queen's Gambit e conectado  a esse momento em que vivemos, a obsessão pela dessexualização das personagens femininas, mesmo que a série seja dúbia em relação a isso.  Eu não sei como a coisa é apresentada no livro, mas a Beth criança tem grande curiosidade pelo sexo.  Há uma cena que aparece mais de uma vez, acho que três, na fase do orfanato, em que Beth observa casais de adolescentes namorando além da cerca.  Jolene, a menina negra mais velha, lhe orienta sobre algumas coisas quando ela lhe pergunta sobre o tema e há os filmetes educativos/terroristas no orfanato.  

Mais tarde, no colégio, ela vê uma das garotas populares, a que eu citei lá em cima, se agarrando com um rapaz na biblioteca.  Beth fica curiosa e excitada.  Pouco depois, a menina se apaixona perdidamente por Townes em uma partida que provou que o xadrez pode ser muito sensual.  Eu adorei essa parte e o ator em questão é o homem mais bonito do seriado para mim.  Mas é isso, temos sensualidade, algo potencializado pela beleza de seu figurino depois desse primeiro triunfo de Beth, mas sexo, ou amor, não é discutido de forma mínima no seriado.


Apesar disso tudo e de estarmos nos anos 1960, e de Beth não sofrer nenhuma castração por parte de Alma, desde que ela não engravide, sua vida sexual é bem limitada e sem graça.  Na verdade, a série meio que dessexualiza os anos 1960 como um todo da mesma forma que ameniza a misoginia do período.  Beth não sofre assédio sexual em um meio masculino, os meninos com quem transa precisam quase receber um ultimatum da parte dela para tomarem alguma atitude, enfim, tudo isso faz parte do pacote colorido do seriado.  

Beth aparentemente perdeu a virgindade com um colega, um cara mais velho, do curso de russo em uma sequência que parece mais indicar que gente sobre efeito de drogas não consegue transar direito do que qualquer libido da parte dela.  O núcleo da faculdade, onde Beth estuda russo, comporta-se de forma mais aberta em relação ao sexo e drogas, além de vestir um figurino mais moderno e muito diferente da mãe suburbana de Beth e dela mesma.  Eles estão mais perto dos anos 1970, elas, dos anos 1950.  Depois, quando seus jovens rivais no xadrez, e que foram humilhados por ela, Beltik e Watts, eventualmente passam por sua cama, nada se vê de toques e carícias, os meninos não tomam a iniciativa, e a cara de insatisfação de Beth é evidência de que a coisa não é tão boa assim.  O xadrez, o álcool e os tranquilizantes são mais interessantes.


Com Watts, Beth chega a murmurar que tinha sido bom, mas quando o rapaz começa a falar de xadrez na cama, ela se ressente.  A atitude dele é pintada como egoísta e narcisista, mas Beth fizera quase a mesma coisa depois de transar com Beltik.  Antes disso, ela passara semanas na casa de Watts, estudando e treinando.  Quando ele a convidou para ficar hospedada lá, tinha-lhe dito que não haveria sexo entre eles.  Watts é o bad boy da série e com um grupo de amigos envolvido em uma relação poliamorosa, mas ele não tem nenhum impulso de sequer beijar Beth, só lá pelas tantas ele pergunta se ela ainda acha o cabelo dele bonito e a cosia acontece.

Acho que é no artigo do The Guardian que eu citei que a autora fala que Queen's Gambit prova que é possível mostrar que existe amizade platônica entre homens e mulheres.  A graça é que todos os homens jovens da série com nome e alguma importância na história são fascinados por Beth e, salvo talvez pelos gêmeos, a desejam.  Da parte deles, nunca foi só amizade, muito menos algo platônico.  Mas vamos para Townes, porque aqui a coisa fica um tiquinho mais séria.


Em qualquer resenha do livro, ou da série com spoilers, é dito que o Townes é gay e tem um companheiro.  Ele conhece Beth no primeiro torneio, a câmera age como se fosse o olhar da protagonista, concentrando-se nos lábios do moço, o traço mais marcante do rosto do rapaz.  Ele era do time da universidade.  Mais tarde, e eu realmente fiquei perdida com a idade da protagonista, no último episódio em 1968 é dito que ela ainda tem 20 anos, ela reencontra Townes em Vegas.  Eu me preocupo com a idade, porque é complicado até tentar precisar quão mais velhos que ela eram os moços que eu estou citando.  Enfim, Townes agora é repórter para a principal publicação de xadrez do país e quer entrevistá-la.  

Ele a leva até seu quarto, a moça fica nervosa e excitada, há um clima inegável de sedução entre os dois, ele está tomando a iniciativa e aparece o namorado.  O rapaz entende o que está ocorrendo, o que pode sugerir que não foi bem a primeira vez que Townes o traiu.  A adolescente Beth fica confusa e frustrada, não poderia ser diferente.  Imaginem que estávamos em meados dos anos 1960, antes de Stone Wall e ela era uma moça do interior e sua primeira experiência sexual tinha sido muito esquisita, mas, agora, ela estava sozinha com o sujeito de quem gostava fazia vários anos e, bem, acontece isso. 


O tempo passa e Townes e Beth se reencontram em Moscou, se reaproximam, ele se desculpa por não ter explicado as coisas.  Perguntei-me como se poderia fazer isso naquele contexto.  Ser abertamente homossexual não era algo aceitável na maioria dos lugares e Beth era jovem demais para entender e apaixonada ainda por cima.  A cereja do bolo, ela se desculpa por não ter compreendido a situação do moço e rompido uma amizade que o seriado nem consegue mostrar que existia.  

Repito, eles estavam na década de 1960, não no século XXI.  Homossexualidade era vista como doença, ou crime.  Agora, se quisessem ser mais modernos, Townes poderia ter falado de fidelidade ao companheiro e não que quase tinha cedido à tentação. Ora, como homem gay ele não teria desejo sexual por Beth, ou teria?  A meu ver ele é bissexual, ele está construído dessa forma na séria, e seria mais interessante investir nessa seara, mas não foi a escolha da série.  


Além de Townes, temos tanto Beltik quanto Watts, que tinham sido escorraçados por Beth, mais os amigos do segundo e os gêmeos, ajudando Beth a vencer Borgov no episódio final.  Eles estão nos EUA, na casa de Watts, o que significa que os gêmeos e Beltik se deslocaram para Nova York e agindo como seu time de apoio, assim como agiam os soviéticos.  É bonito de se ver, é emocionante, mas é aquilo, uma situação das mais irreais.  Quando os homens se tornaram tão cruéis com as mulheres?  Quando passaram a se ofender por pouca coisa, como serem serem derrotados por uma adolescente?  Será que a culpa é nossa?  E se os homens não se importavam de Beth ser uma mulher, por qual motivo há tão poucas mulheres no xadrez competitivo? Ah, se elas se esforçassem um pouquinho mais, quem sabe?

Falando das mulheres na série além de Beth.  Elas existem, há várias com nomes.  Temos a mãe de Beth, Alice, que é uma personagem nebulosa.  Ela aparece em quase todos os capítulos com Beth se recordando de acontecimentos da sua infância, dos conselhos da mãe e de como ela sempre parecia no limite. Sabemos que ela nasceu rica, casou-se bem, mas como seu casamento se desfez, não somos informados.   


Sabemos, também, que ela estudara matemática em Cornell, uma importante universidade dos EUA, que tinha doutorado e lecionara lá.  Em uma cena, Alice descreve a filha como um "glitch", um erro, uma falha.  A menina não compreende bem, mas leva essa informação consigo.  Mas vemos essa mãe se recusando a falar com o ex-marido, que parece um homem mais velho, quando ele quer ver Beth, depois, quando ela lhe pede ajuda, ele a recusa. Tem outra família, esposa e um filho. Alice é meio que um fantasma, porque pode sugerir que Beth tinha alguma patologia psiquiátrica herdade da mãe, assim como seu pendor para a matemática.  E há muito de matemático no xadrez.

A esposa de Borgov (Janina Elkin) é a intérprete do marido, não se referem a ela pelo seu nome próprio. Ela está na série como um válido elemento de humanização do principal oponente de Beth, um homem que ama a família, que mostra compaixão por Beth, inclusive a defendendo diante dos colegas russos jogadores que a criticam.  Já Jolene (Chloe Pirrie) participa de três episódios, sempre a mesma atriz, aliás, o que me incomodou, porque ela sempre parecia uma mulher adulta, mesmo tendo 13 anos.  


Ela está na fase do orfanato e no último capítulo, quando Jolene reaparece na vida de Beth empoderada, formada na faculdade, com planos de carreira muito claros e disposta a ajudar a amiga.  No livro, pelo que li, ainda que as duas não se falem, Beth vê em Jolene um modelo.  O seriado simplesmente não faz essa ponte.  Aliás, não sei se está no livro, mas fica difícil imaginar Jolene, a menina boca suja e candidata à marginal, se esforçando nos estudos e conseguindo uma bolsa na universidade. De novo, silêncio sobre obstáculos que seriam colocados para meninas, neste caso, além de pobres, negras.

A outra personagem feminina que tem algum destaque inclusive para mostrar como o roteiro escorrega é Annette Packer (Eloise Webb).  A moça foi colocada como primeira oponente de Beth em seu torneio de estreia menos por ser mulher e principalmente porque a protagonista não tem pontuação na associação de xadrez.  Packer tinha experiência nos campeonatos, Beth era uma novata.  Além dos gêmeos e Towse, ela é a única que acolhe Beth, apesar da moça tímida e sem traquejo social não conseguir retribuir-lhe com gentileza.


Packer retorna já no penúltimo capítulo, estudante de medicina, tendo largado o xadrez.  Ela agradece Beth pelo que ela fez por todas as mulheres.  A cara da protagonista, que estava meio chapada, é interessante, porque, efetivamente, deveria ser parecida com a minha assistindo essa cena.  Beth nada fez pelas mulheres.  Não há sequer uma cena mostrando meninas jogando xadrez, ou uma referência a isso, mesmo na pracinha em Moscou não aparecem mulheres jogadoras.  Veja, se não quer falar do que tinha que ser falado, melhor não fazer esse tipo de coisa.  

Lembrei na hora do filme A Dama de Ferro (*resenha*), quando uma mulher se aproxima de Margaret Thatcher e diz que se inspirou nela e agradece e a primeira-ministra diz que não fez nada pelas mulheres, fez por si mesma.  Do jeito que Queen's Gambit apresenta as coisas, se você não chegou lá, culpa sua, porque os homens são super cordiais e não se sentem nem um pouco ameaçados pela presença das mulheres competindo com eles por espaço e reconhecimento público.


As professoras do orfanato tem nome, mas são a caricatura da feminilidade domesticada e estéril, afundadas em uma religiosidade formal e sem nenhuma engajamento emocional, sem perspectivas de vida, talvez viúvas, ou solteironas, e tentando formatar meninas, não lhes inspirar de alguma forma. Temos Cleo (Millie Brady), a modelo namorada dos amigos de Watt, que serve como estereótipo da francesa sexualmente liberada em uma década de 1960 super casta.  Cleo aparece em Paris e ajuda Beth a ter uma recaída com  a bebida que a lança quase no abismo.  

Cleo também acorda ao lado da protagonista, mas acredito que elas estavam dividindo a cama depois da bebedeira.  De qualquer forma, a série nada mostra, ou sugere, de qualquer relação sexual com Beth.  As meninas do colégio, destaque para Margaret (Dolores Carbonari) a moça que eu citei lá em cima, a rainha da escola que casa e se torna nova candidata a Alma, são apresentadas como agressivas com a protagonista (*tão diferente dos meninos!*), vazias e sem nenhuma conexão com Beth, salvo pelo interesse por roupas bonitas.  E, sim, vamos falar do figurino.


Se você gosta de observar a cenografia e o figurino de séries e filmes, Queen's Gambit é para você.  A marcação do tempo é feita pelas roupas.  Começamos com os anos 1950, o orfanato com as meninas roubadas da sua individualidade, mas as professoras nem tanto, e seguimos para a vida fora dos muros da instituição onde  Beth aprendeu a jogar xadrez.  A série é fiel em não colocar as meninas com calças compridas na escola, mas as usando em casa.  Já li relatos de mulheres que viveram aquela época nos EUA, início dos anos 1960, final dos anos 1950, e que os filmes normalmente não são fiéis nesse aspecto, que elas tinham que seguir um código de vestimenta que impunha o uso de saias.

Beth começa usando roupas muito humildes, fora de moda, e contraposição com as colegas de escola. As roupas de Beth e seu cabelo feio, também, servem para marcar sua estranheza, o fato de ser um peixe fora d'água. A seguir, conforme ganha dinheiro, suas roupas ganham beleza e qualidade, mas continuam bem conservadoras.  Enquanto Alma está viva, reparem que Beth se veste de forma bem comportada e com um pé nessa virada dos anos 1950-60.  Ao redor dela, especialmente em Vegas, vemos mulheres já com um pé nos final dos anos 1960, mas ela continua com saias godê na altura dos joelhos.  Quando fica sozinha e tem que cuidar de si, Beth começa a usar minissaia e calças compridas, a maquiagem se torna mais agressiva.  Ela deixa de ser criança e tutelada e se torna uma mulher só que cada vez mais sozinha e perdida.  Quando ela sai do fundo do poço, temos uma nova mudança.


E são muitas roupas.  A vaidade de Beth, que no seriado é associada deliberadamente ao feminino, se manifesta no seu gosto por roupas bonitas e pela necessidade de estar na moda.  Há uma conversa sobre isso com Cleo, que é modelo internacional.  É Jolene, com seu jeito prático, que coloca uma trava em Beth, quando a está ajudando a se livrar de drogas, álcool e outras práticas ruins.  Mas vamos nos encaminhando para o fim, porque esse texto ficou monstruoso e minha mão machucada está doendo.

No seriado é mostrado o papel da organização chamada Christian Crusade, um grupo fundado por um pastor picareta chamado Billy James Hargis.  O objetivo desse pessoal era patrocinar ações contra o avanço das ideias comunistas, eles querem bancar a ida de Beth para Moscou, desde que ela aceite fazer um pronunciamento contra o comunismo.  Benny Watts quer convencê-la a aceitar, ele iria junto com ela para Moscou com as despesas pagas para lhe dar apoio, mas a moça recusa e os dois rompem por causa disso.  Já o nome da série vem de uma jogada de abertura do xadrez chamada de Gambito da Dama, ou da Rainha, no qual o jogador que está com as brancas e, portanto, inicia a partida, avança o peão da Rainha que pode, ou não, ser sacrificado para levar adiante as estratégias no jogo.


A série pode ser muito fiel ao retratar o xadrez como jogo, quase equiparando o que os japoneses conseguem fazer em suas séries de esporte (*mangá e anime*), dando um aspecto dramático para esportes aparentemente sem emoção.  Nesse aspecto a série pontua muito alto, mas não me venham com essa história de "parece shounen de esportes", porque só se for na baixa qualidade da vida sexual da protagonista. Agora, algo fundamental é não deixar de mostrar a carga de estudo e dedicação requerida de um jogador um profissional de xadrez.  Da mesma forma, Queen's Gambit é muito competente em apresentar o drama do vício em remédios e alcoolismo, assim como a trajetória da heroína na superação de grandes traumas.  O esforço da protagonista e o apoio que ela recebe são fundamentais para seu sucesso.

Eu gostei da série, acreditem, ou nem me daria ao trabalho de passar do primeiro capítulo, ou escrever este texto, mas quando o assunto é a questão das mulheres nos anos 1960, ou das mulheres no xadrez, desculpem, a série é muito ruim.  E, pior, não sei se errou tentando acertar, isto é, atrair uma audiência que não quer ver mulheres maltratadas, ou de propósito, reinventando o passado para amenizar a culpa da classe dos homens.  


Qualquer uma das duas opções, é lamentável e, bem, se você acredita que isso não é importante mesmo ciente do machismo e da misoginia que obstruem as mulheres nas mais diferentes áreas, você é cúmplice, você é parte do problema.  Queen's Gambit poderia falar de xadrez e, ainda assim, mostrar que ser mulher era um fator que prejudicava Beth. Isso não precisava ser o centro da série, mas não poderia ser apagado da história.  Aliás, termina a série e ela não é Grande Mestre do Xadrez.  A coisa era tão tranquila, que a federação internacional só abriu essa possibilidade em 1976 e a primeira mulher a receber o título foi  Nona Gaprindashvili em 1978.

Não queria falar de nada disso?  De anos 1960 e suas mudanças?  De discriminação às mulheres?  Colocasse um homem branco como protagonista e estaria tudo muito bom.  Por isso, quando vejo esse tipo de material fazendo tanto sucesso e as críticas, inclusive de quem sofreu na pele a discriminação por ser mulher no xadrez sendo tratadas como se nada fossem, eu passo a ver Queen's Gambit como um belo cavalo de Tróia.  Bastaria ligar o foda-se e teríamos mais mulheres grandes mestres, é tudo uma questão de vontade, porque o patriarcado não é um problema, quando você tem talento.  E este, com certeza, deve ser o post mais importante do blog este ano.  Se será lido, ou não, se receberá ódio do fandom, ou provocará a reflexão, não sei.  Só sei que eu precisava escrever e estou com o "foda-se" ligado, também.

8 pessoas comentaram:

Olá, Valéria!
Obrigada pela resenha... essa mensagem nas entrelinhas sobre patriarcado e talento me incomoda muito em dois ambientes que estou tentando construir uma trajetória: tanto no graffiti quanto nos games. Quantas vezes no graffiti ouvi que somente algumas eram "forte o suficiente pra ser grafiteira" e outras mulheres consideradas fracas...e o pior: tem muita mulher que cai nessa falácia e não ajuda mulheres que estão querendo adentrar nesse universo!
Já nos games é mais silencioso essa relação...aparentemente todos são gentis com vocÊ, mas pouquíssimos movem um esforço pra realmente te ajudar na caminhada com conhecimento concreto, compartilhando saberes! (geralmente os que também são minorias, seja negro ou lgbt+)

Resenha maravilhosa, acabei de assistir a série e é exatamente o que você escreveu.

Que post longo… Adorei!
A série é muito boa a representar o xadrez, confesso que nunca joguei e não percebo nada de xadrez, mas agora fiquei com umas luzes e muita vontade de apreender, tal como acontece depois de assistir um anime ou mangá do género.
O facilitismo vivido pela protagonista também me irritou, o aspeto inegável do conservadorismo e machismo na sociedade dos anos 60, que ainda hoje pode ser visto na sociedade atual em determinadas situações, foi completamente ignorado pelos produtores da série. O mais triste é que esta série não teria tanto impacto se não fosse protagonizada por uma mulher, a meu ver foi esse o fator que trouxe um "plus" a Queen's Gambit.
Beijo

Não entendo nada de xadrez. Gostei da série justamente porque não retrata a realidade política e social da época, (que vivi boa parte, pois sou desta) que estou cansada de ler nos livros e ver em filmes. Gostei da amizade entre as personagens, homens ou mulheres. Enfim, é uma boa diversão. Obrigada pela resenha.

Enquanto eu assistia também estranhei... Me perguntei uai será que era tão fácil assim ser enxadrista mulher naquela época? Kkkk

Assisti a série toda tendo mini incômodos sobre essa omissão de assuntos de grande relevância, especialmente >nessa< época. Seria como falar sobre 2020 e não mencionar o coronavírus. Sua resenha trouxe não apenas conforto, mas também reflexão sobre pontos que não tinha analisado bem.

Essa foi a resenha mais porcaria que já li , não é uma resenha , é uma opinião pessoal

Muito obrigada! Volte sempre. 😉

Outra coisa, talvez você não tenha aprendido na escola ainda, é matéria do segundo ano, mas resenha crítica exige que o autor se posicione dentro do texto. Use a informação para o seu crescimento pessoal e nem precisa concordar com a minha opinião, porque ela é minha antes de tudo.

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