sábado, 26 de dezembro de 2020

Comentando Soul (Pixar/Disney/2020): um elogio à vida e ao aprendizado

Ontem, tive o prazer de assistir Soul, a nova animação da Pixar com a Júlia, minha filha, sentada no meu colo.  Só pensava no estrago que a pandemia fez ao cinema, porque é realmente uma tristeza que um filme como aquele não tenha sido assistido na tela grande.  Eu não sabia o que esperar de Soul, mas diferentemente de Dois Irmãos, eu queria ver o filme nem que fosse por causa da polêmica. 

Sim, o primeiro trailer foi duramente criticado, porque pensamos que seria outra protagonista negra que passaria o filme inteiro em uma forma alterada, nesse caso, uma alma.  Não, não é isso. Soul é puro sentimento, gentileza e tem uma história muito bem sacada.  Eu mudaria um tiquinho o final, mas ele mesmo não compromete em nada a narrativa.  E mais, é filme para professores assistirem, um daqueles que eu recomendo para todos os meus colegas de profissão. 

Tentarei evitar spoilers, mas é difícil falar de Soul sem cometer uma série de indiscrições.  Vamos ao resumo: Joe é professor substituto de música em uma escola cuja vida não está correndo do jeito que ele esperava. Sua verdadeira paixão é o jazz e ele queria tocar em uma grande banda. No mesmo dia, ele recebe a comunicação de que foi efetivado como professor no colégio em que trabalha, o que alegrou sua mãe, dona de um atelier de costura de bairro e que sonha ver o filho com um emprego seguro, e é convidado para tocar em uma banda de jazz, graças à lembrança de um antigo aluno.  Feliz, ele se distrai e termina sofrendo um acidente e, ao acordar, está em outro mundo.

Depois de alguns problemas, ele termina sendo escalado para ser instrutor da Alma 22, uma aluna difícil e que se recusa a encarnar na Terra, porque não vê nenhum motivo para nascer.  Ela não consegue ver graça no mundo dos humanos e cabe a Joe fazer com que ela descubra sua vocação.  Só que o próprio Joe nunca conseguiu amar a vida que teve, nunca se achou um bom professor e só pensa em conseguir voltar para a Terra e tocar na sua banda dos sonhos.

Soul é uma das animações mais sensíveis que eu já assisti da Pixar.  Ela me tocou particularmente, porque Joe é aquele tipo de professor que não consegue ver a importância que ele tem na vida de seus alunos e alunas.  Há professores que criam grandes expectativas sobre a profissão, acreditam que irão tocar, encantar, marcar todos os alunos e alunas e se frustram, porque, bem, não é assim que as coisas acontecem e, não raro, um ex-aluno só descobre a nossa função em sua vida muitos anos depois de ter deixado a escola, ou faculdade.  Eu valorizei muito alguns professores somente anos depois de ter me formado.  

E o filme também mostra que pai, mãe, enfim, quem cuida de você, também tem a função de ensinar, que a educação formal é comente uma parte do processo.  Crianças muitas vezes aprendem a amar a música, as artes, a leitura, a natureza, nos joelhos de seu pai, ou mãe, ou quem está lá ocupando esse lugar. E há gente que abre mão de ocupar esse espaço e delega para terceiros, às vezes, nós, professores, tarefas tão fundamentais.  É o pai de Joe quem o ensina a amar a música e esse elemento é um fator de união entre eles.

Só que Joe nunca valorizou sua experiência como professor, porque ele nunca desejou lecionar.  Para ele, foi um desvio. Ele não conseguia apreciar a beleza da vida e se sentia um fracassado aos olhos da mãe.  Sua relação com 22, a alminha que havia passado por vários mestres de Arquimedes à Madre Teresa de Calcutá, ele aprende uma série de coisas e esse descobrir das pequenas belezas e experiências mundanas é transmitido de forma muito singela em sons e imagens pela equipe de animação.

Soul se move por vários ambientes.  Há a escadaria que leva à grande luz.  O que estará além do portal?  Joe não quer descobrir.  Temos a escola das alminhas, com instrutores recém-falecidos e os mentores que orientam todo o trabalho.  Temos um outro setor do plano espiritual, onde almas que entram em algum estado de transe, ou êxtase, na Terra circulam.  E temos nosso planeta que é para onde Joe quer voltar e 22 não quer ir.  As coisas não ocorrem do jeito esperado para nenhum dos dois.  Aliás, a cena da barbearia é boa para refletir sobre isso, que nem sempre escolhemos o caminho a seguir, mas que a jornada pode, sim, ser interessante.

Falando do character design de Soul, foi muito bom ver que as personagens negras estão presentes praticamente durante todo o filme.  Mesmo que Joe tenha passado algum tempo como alma, não há o desequilíbrio de A Princesa Sapo, ou de Um Espião Animal (Spies in Disguise), que eu não resenhei no blog.  E o elenco é muito diverso, seja etnicamente, ou no caráter etário e físico.  Há idosos, jovens, crianças, gente magra, gorda, homens e mulheres.  E as personagens são simpáticas, mesmo 22.  A alminha é intragável no início, mas vamos penetrando em suas camadas de defesa e é delicioso vê-la descobrindo as belezas do nosso mundo, vendo coisas que Joe nunca conseguiu ver.

E a animação do filme é espetacular.  No além tudo é minimalista, os mentores, por exemplo, são meros traçados.  Agora, quando vamos para o vale das almas em transe/êxtase, já temos mais elementos gráficos e o nosso mundo é uma explosão de sons, cores e detalhes.  Tudo parece muito vivo, muito denso e, repito, é muito triste não poder assistir Soul no cinema.  Muito mesmo!  Espero que a Disney reconsidere pelo menos o lançamento de seus filmes em DVD/Blu-ray, porque eu compraria o disco de Soul sem pensar duas vezes.

O filme cumpre, também, a Bechdel Rule.  E nem falo de 22, que tem uma dubladora, porque a alminha explica que ela escolheu aquela voz porque é irritante, mas por existirem várias personagens femininas com nomes.  De qualquer forma, em Soul as discussões de gênero são muito periféricas, quase inexistentes.   E isso não é ruim, estou somente fazendo uma constatação.  Quando aparecem, elas estão ligadas à mãe de Joe, que serve de arrimo de família e, de uma certa forma, lamenta que tanto seu marido, quanto seu filho, vivam com a cabeça nas nuvens por causa da música. 

Já caminhando para o fim, nem sei se a resenha ficou realmente boa.  Soul me fez lembrar de Mr. Holland, Adorável Professor, que é também sobre um sujeito que quer ser músico de jazz, mas termina professor de música em uma escola.  Assim como Joe, ele demora a entender que está deixando marcas positivas na vida de seus alunos e alunas.  Há alguns pontos de toque entre Mr. Holland e Soul, mas são filmes bem diferentes, porque Soul vai muito além do ambiente escolar, eu, professora, é que me apeguei a esse aspecto em minha resenha.   E até me desculpo por isso.

De qualquer forma, eu, que sou professora por vocação, sempre me emociono quando reencontro anos depois, mesmo que virtualmente, um ex-aluno, ou aluna, que me diz que eu fui importante de certa forma em sua vida.  E mesmo gente que frequenta o blog me diz coisas assim, também.  A imagem acima é exatamente do aluno que lembrou-se de Joe, seu professor de música, tantos anos depois e o convidou para um teste na "banda dos sonhos" dele.  Esse aluno não teria chegado lá sem Joe e lembrou-se dele exatamente, porque reconhece que o professor tem talento e fez toda diferença em sua vida. Acredito que no final de Soul, Joe, 22 e a audiência tiveram a possibilidade de aprender bastante.

2 pessoas comentaram:

Adorei a resenha! Também fiquei muito emocionada com o filme, impressionante como deixamos passar tanta coisa no caminho pra "chegar lá": no grande sonho. A historinha sobre o peixe querer ir pro oceano trata exatamente disso! A forma como o filme trata de educação também é incrível, aprender fora da sala de aula é tão importante quanto dentro dela, e às vezes viver é a melhor lição, como a 22 percebeu! Me identifiquei com o que você falou sobre só reconhecer o papel de alguns professores na nossa vida anos depois, mas que bom que são novos tempos e agora podemos de alguma forma agradecer a eles a inspiração que trouxeram pra nós! Obrigada por tudo que me ensinou e ainda ensina, professora!

Me emocionei com o filme também.

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