domingo, 13 de março de 2022

Crossing Egypt~Becoming The Pharaoh's Bride~: Manhua histórico ruim começa a ser lançado no Japão

Ontem, gastei parte do meu pouco tempo lendo os 13 capítulos disponíveis em inglês do manhua Crossing Egypt: Becoming The Pharaoh's Bride (*ou Passing Through Egypt: Become the King's Bride, ou ainda Traveling Through Egypt: Turning Into the Bride of the King*), que o Comic Natalie anunciou que começou a ser publicado oficialmente no Japão pela plataforma Piccoma. Como leitora de shoujo mangá, historiadora feminista e fã de Anatolia Story (天は赤い河のほとり), a série me ofendeu bastante e, por isso, abro espaço para falar sobre ela. No momento em que escrevo, esse manhua conta com 31 capítulos no momento e usando este nome que eu coloquei em inglês, porque li as scanlations nessa língua, mas há em espanhol, o que é realmente triste, porque sei que há material muito bom precisando ser traduzido para línguas ocidentais e que não recebem atenção.  Mas vamos lá!  Isso é uma resenha e eu tenho umas palavrinhas para falar sobre esse manhua.  Segue o resumo do Mangaupdates:

"Sob o desejo de Yuya, o gato preto, Nefertiti viajou para o antigo Egito e se tornou a princesa que estava destinada a ser noiva do futuro faraó. Por que ela, que só queria encontrar um caminho de volta à era moderna, acidentalmente atraiu a atenção do próximo faraó, Akhenaton? E Yuya, que esteve ao seu lado o tempo todo, parecia ter um segredo. O amor do destino começou silenciosamente a partir do reencontro." 

Temos alguns ingredientes conhecidos dos shoujo mangá nessa história, o primeiro deles, a garota que viaja no tempo.  A protagonista, e não sabemos o seu nome moderno, só que ela, no passado assume o corpo de Nefertiti.  O segundo elemento, a mocinha deslocada no tempo atrai a atenção do cara que vai ser, ou já é, o governante de uma poderosa nação, neste caso, o Egito.  O terceiro ponto, trata-se de uma variação do gênero mais em voga no momento, o isekai, porque o Egito da história tem a mesma função de terra de fantasia, e seria uma série OK se o/a autor/a não tivesse escolhido uma ambientação real, mas um mundo alternativo qualquer.  Ponto positivo da história, não temos o toque macabro da morte da mocinha antes da sua transmigração para outro mundo.

Na série, escolheram fazer de Nefertiti uma princesa Mitanni, um estado poderoso que, no momento em que a série se passa, século XIV a.C., estava comprimido entre duas superpotências, o Egito e o Império Hitita.  A possibilidade de Nefertiti ser uma princesa mitanni é aventada por arqueólogos e historiadores, ainda que já tenha sido praticamente descartada, então, nenhum problema aqui.  O manhua é colorido e o começo primeiro capítulo é realmente bonito visualmente, com algumas explicações sobre as divindades egípcias, daí, temos a silhueta dessa moça de nossos dias e um gato preto falante em seu colo oferecendo a ela a possibilidade de ir para o Antigo Egito.  

Encontrar gato preto falante é o ponto de partida de Sailor Moon (美少女戦士セーラームーン), mas a mocinha, que parece ter algum juízo, deveria ter pensado duas vezes, porque a partir do momento em que ela está no passado, pelo menos no início, ela só quer voltar para casa o mais rápido possível.  Mas, sim, acho que ela ficará por lá, porque de cara ela já é agarrada e beijada por um sujeito moreno, musculoso, com cabelo estiloso e tatuado.  Ela bate forte nele, a nossa mocinha domina artes marciais, ou pelo menos alguma delas, porque o quadrinho não se dá ao trabalho de nos dizer qual.  O rapaz lhe diz que prefere mulheres submissas, mas que gostou dela e some pelos telhados da cidade.

Cena é cortada para o palácio e o capítulo 2 mostra Nefertiti sendo apresentada, acompanhada pelo gato, ao faraó Amenhotep III.  Ela foi mandada ao Egito para se casar.  Aparece o príncipe Akenaton e a mocinha descobre que é o sujeito que a agarrou na rua.  Ele diz que gostou dela e a quer como consorte e seu pai se regozija e torce para que eles se entendam, isto é, que façam sexo.  Mais tarde, é revelado que, até então, o jovem nunca tinha se interessado por mulheres. Entendam como quiser, pela alegria de papai, eu só consegui pensar em uma coisa.

Nossa mocinha bate nele de novo, ele lhe avisa que poderia forçá-la se quisesse, porque ele é o príncipe herdeiro e eles estão casados, aparece o gato, que vira um rapaz e conversa com o  Akenaton.  Ambos se conhecem.  O filho do faraó se retira e a mocinha diz ao gato que quer ir embora, voltar para o seu tempo.  Ela dorme ao lado do gato e acorda de conchinha Akenaton.  De novo, a mesma coisa, ela pede ajuda ao gato, que está dormindo e nem liga, bate no filho do faraó, ele se mostra apaixonado daquele jeito descrito antes, ameaçando estuprá-la e coisas do gênero, mas sem nada gráfico, ele diz que uma princesa não deveria saber lutar.  Não sei se é nesse momento que ela diz que quer ir embora e ele lhe diz que ela não iria muito longe, porque não sabe ler, nem escrever.  

Pensei eu, uma princesa mitanni realmente não saberia ler e escrever em língua egípcia, mas a maioria da população do país não sabia, também, pois eram camponeses e era uma escrita muito complexa.  Enfim, vai ficar esquisita essa conversa.  Bem, já tínhamos dois bishounen na história, Akenaton e a versão humana do gato, e aparecem mais dois, o general Horemheb e um sujeito, secretário do príncipe, chamado Kay, que eu imagino ser Ay.  Tanto Horemheb, quanto Ay, se tornarão faraós depois do filho de Akenaton, Tutankamon.

Para quem não lembra, porque é uma das coisas que a gente tem que ensinar na escola sobre Egito, Akenaton, antes disso Amenófilis IV, promoveu uma reforma religiosa radical.  Ele aboliu o culto a TODAS as divindades e decretou que só havia um deus, Aton, o arco solar, que diferentemente dos outros deuses, não tinha representação humana, ou animal.  O faraó e sua esposa principal seriam, a partir de então, os intérpretes da vontade do deus, falando diretamente com ele.  Além disso, ele construiu uma nova capital, Amarna, no meio do deserto, deu liberdade criativa para os artistas e outras coisas mais.  Nas representações dele mesmo, não raro, estavam Nefertiti, sua rainha, e, às vezes, as seis filhas que teve com ela.  

Sendo uma civilização politeísta, vocês imaginam que essa medida não deve ter sido bem aceita, mesmo que o faraó fosse visto, ele mesmo, como deus vivo.  Que gerou apreensão no povo, angústia profunda, medo da ira divina.  Fora isso, os sacerdotes, especialmente, o de Amon, tinham muito poder e riqueza e a revolução desencadeada pelo faraó tinha como um dos desdobramentos, talvez, um de seus objetivos, reduzir sua influência sobre o Estado, o povo e o faraó.  Até a mudança da capital, porque Tebas, a anterior, era a cidade do deus Amon.  Akenaton concentrou poderes em suas mãos, usou a seu favor a ideia de que o faraó era rei, governou 17 anos e foi, provavelmente, assassinado.  Sua morte não resolveu a confusão, ela se aprofundou e conduziu ao final da 18ª dinastia.

Para delimitar a personalidade do príncipe, temos uma cena em que Akenaton está ouvindo petições junto com Horemheb e Kay.  Dois sacerdotes trazem uma moça que pede por sua família, eles foram entregues ao templo por sabe-se lá quem como pagamento por sabe-se lá o quê.  A mocinha está ouvindo atrás de uma coluna.  A moça pede por sua família.  O príncipe se mostra pouco incliná-lo a ouvir a suplica da garota, PORÉM um dos sacerdotes se mostra arrogante e ameaça Akenaton com a irá dos deuses.  O príncipe saca da espada e mata o cara na hora, afirmando que ele, como filho do faraó, é um deus vivo.  Foi violento e a mocinha passa a acreditar que ele poderia matá-la.

Sobra um sacerdote, que se mostra menos arrogante, e usa a lei para afirmar que a moça e sua família pertencem ao templo.  Durante toda essa sequência, está subentendido que ele queria violentar a garota.  Ele a pega pelos cabelos, enquanto ela suplica a bondade de Akenaton.  Neste momento, a mocinha intervém e enfrenta o sacerdote, que quer saber quem é ela.  Ela se dirige a Akenaton e pergunta se tudo no Egito pertence ao faraó, ele diz que, sim, e que ele, o príncipe, fala pelo soberano, ele assente de novo.  Ela pede, então, que ele lhe dê a  moça e sua família.  Akenaton assente e diz ao sacerdote indignado que ela é sua esposa.  Toma a mocinha nos braços e percebe que ela está tremendo, vê-lo matar um homem a assustou, ela não se mostrará mais tão afrontosa com ela como foi no início.

Akenaton acha estranho que ela não tivesse medo dele antes, mas ao vê-lo matar um homem tenha ficado aterrorizada.  Bem, acho difícil de entender, não é mesmo?  De qualquer forma, Horemheb e Kay percebem que o príncipe está estranho, apaixonado, claro.  E a mocinha começa a sentir coisas por ele, também.  A garota vira sua atendente e as duas conversam.  A mocinha quer aprender a ler e escrever e a atendente se mostra horrorizada.  Daí, vem uma aula errada sobre sociedade do Egito Antigo e a serva afirmando que as mulheres eram proibidas de aprender ler e escrever, que ocupavam a base da sociedade, eram desprezadas e sem poder algum e que sua função única era ter filhos e cuidar da casa.  Eu quase dei um berro nessa cena.  

A mocinha, que é feminista, que lembra da mãe como seu exemplo de luta pela igualdade, engata um discurso que todos são iguais e sobre a importância das mulheres fazendo links com as divindades do Egito e o próprio Nilo, que ela diz, ser uma deusa.  Está errado, o rio não era visto como uma deidade feminina.  Outro erro, portanto.  Akenaton está ouvindo atrás da porta e entra nessa hora.  Adverte a esposa de que ela poderia ser morta somente por dizer coisas assim.  A serva tenta assumir para si a responsabilidade, ele a repreende dizendo que ela deveria usar outra forma de tratamento para a mocinha, que ela não estava usando da devida deferência com a futura rainha do Egito e a manda sair.  A sós com a mocinha, Akenaton a intima a repetir o que disse, pergunta se ela não tem medo de morrer, a mocinha pensa duas vezes, mas diz tudo de novo.  O príncipe fica pensativo e decide que irá ajudá-la a aprender a ler e escrever.  Que irá colocar um professor a sua disposição.

Suponho que quem escreveu essa história leu ZERO coisas sobre Egito, não leu nem Anatolia Story, ou Ouke no Monshou (王家の紋章), o básico japonês desse tipo de história, e está pensando está em The Handmaid's Tale. E, bem, toda revista de História tem matéria de Egito, edição sim e a outra, também, há inúmeros sites e documentários para todos os aspectos possíveis sobre a Terra dos Faraós.  O Egito não é uma civilização obscura sobre a qual sabemos muito pouco, é o inverso.  Mas falemos das mulheres, por isso estou escrevendo esta resenha.  O Egito é lembrado, porque ficou escrito para a eternidade, como uma das civilizações antigas onde as mulheres tinham mais direitos, elas ocupavam várias profissões especializadas e não havia qualquer interdição ao aprendizado da escrita, porque sabemos os nomes de algumas mulheres que eram escribas, isto é, profissionais da área.

Cito um parágrafo do site USHistory: "As mulheres egípcias podiam ter seus próprios negócios, possuir e vender propriedades e servir como testemunhas em processos judiciais. Ao contrário da maioria das mulheres no Oriente Médio, elas tinham permissão para estar na companhia de homens. Elas poderiam escapar de casamentos ruins se divorciando e se casando novamente. E as mulheres tinham direito a um terço da propriedade que seus maridos possuíam. Os direitos políticos e econômicos das mulheres egípcias as tornaram as mulheres mais liberadas de seu tempo."  Acrescento ainda que as mulheres egípcias poderiam ficar com a guarda dos filhos em caso de divórcio.  

Especificamente sobre mulheres escribas, a divindade patrona de todos eles era feminina, Seshat, associada à sabedoria, conhecimento e escrita.  Fora isso, há registros de mulheres escribas e deveríamos ter mulheres que dominavam a escrita, alguma delas, e que não eram profissionais da área, como as médicas.  De qualquer forma, o drama criado em cima disso no quadrinho, a afirmativa de que as mulheres eram oprimidas e excluídas no Egito antigo, inclusive do direito de sair do palácio, algo que Akenaton e a mocinha irão discutir mais adiante, é absurdo.  Na verdade, a autora, ou autor, do manhua quer projetar no passado desigualdades e exclusões que não existiam na sociedade egípcia.  Parece que esse mangá está contaminado pela obsessão que vi nos poucos manhwa que é representar a vida das mulheres como miserável nesses passados recriados.

Resumindo, se você quer fazer um mangá histórico, precisa estudar um tiquinho para não passar vergonha.  Esse Crossing Egypt: Becoming The Pharaoh's Bride não traz nada de novo que mereça que a gente feche os olhos para essas falhas.  Fora a representação absolutamente equivocada das mulheres e da própria sociedade do Egito do século XIV, a autora não pesquisou vestimentas, e, de novo, temos muitas representações sobre o que se vestia no país na época, ou a arquitetura.  É uma tristeza.  Se Crossing Egypt: Becoming The Pharaoh's Bride se passasse em um país fictício, em um mundo de fantasia, estava tudo OK.  

Concluindo, o capítulo 13 fecha com um ataque feito ao palácio do faraó e a mocinha sendo cercada por um bando de criminosos.  Ela pode lutar e derrubar todos eles, ela é muito boa em artes marciais, mas há muita gente em volta e ela PREFERE assumir uma atitude de COITADA e fica esperando que venham salvá-la.  E acaba o capítulo.  Não sei como a coisa seguirá, mas foi bem brochante essa sequência.  Imagino que ela, que já está apaixonada por Akenaton, será domesticada.  Sinceramente?  Os japoneses não precisavam publicar esse material, não.  Não faz falta.  É mal pesquisado.  É cheio de clichês.  E chega a ser ofensivo ao tratar do papel das mulheres no antigo Egito.

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