Hoje, iria sair para assistir ao grande concorrente de O Agente Secreto, o filme norueguês Valor Sentimental. Só que fiquei tão capturada pelo drama francês É Tempo de Amar (Les Temps d'Aimer), que eu não consegui largá-lo e sair no meio da onda de calor para o centro de Brasília. Talvez, na segunda-feira, quem sabe? E eu nem conhecia Les Temps d'Aimer até ontem. Não lembro dele ter entrado em cartaz, não lembro mesmo, mas ele estava no Festival de Cannes em 2023. Enfim, é um ótimo filme, com personagens que têm que lidar com sentimentos muito turbulentos, os adultos os escondem ou tentam; a criança não tem ainda as ferramentas para tal. Vou dar o resumo, que veio do site feminista francês le genre & l’écran (*que eu descobri agora*) e já volto:
Esta é a história de um casal que se conhece após a Segunda Guerra Mundial, unidos pelo sentimento comum de serem excluídos. Madeleine (Anaïs Demoustier), de origem humilde, teve um breve caso com um médico alemão antes de ele ser enviado para a Frente Oriental. Grávida, teve os cabelos cortados publicamente após a Libertação e deu à luz um filho sem pai, fugindo em seguida de sua vila natal para escapar do estigma. François (Vincent Lacoste), um estudante de origem burguesa que manca devido à poliomielite, precisa esconder sua atração sexual por homens. Cada um carrega um "segredo vergonhoso", e o relacionamento entre eles se torna um refúgio de um mundo social hostil. Eles se conhecem na costa da Bretanha, onde ele passa férias na propriedade da família, enquanto ela trabalha como garçonete em um hotel próximo.
Les Temps d'Aimer foi dirigido e roteirizado por uma mulher, Katell Quillévéré, e ainda que fale de um casal qu permanece junto por quase vinte anos, é um filme, pelo aos meus olhos, sobre a jornada dessa personagem feminina e sua reconciliação com o filho, um menino que desde muito pequeno tinha a impressão de não ser amado pela mãe. E esse filho, que é interpretado magistralmente por três jovens atores, com destaque para o mais novinho deles, Hélios Karyo, desejava ter acesso à verdade sobre o seu nascimento, informação que por boa parte do filme, a mãe não é capaz de lhe dar.
Les Temps d'Aimer abre com imagens reais do justiçamento de mulheres que tiveram relacionamentos com alemães durante a guerra. Escrevi extensamente sobre isso na resenha do quadrinho Colaboração Horizontal, termo pejorativo usado para esse tipo de relacionamento. Enquanto muitos homens colaboracionistas foram poupados ou passaram por membros da Resistência na confusão da Libertação da França, mulheres tiveram seus cabelos raspados em praça pública, foram expostas nuas ou em roupas de baixo e agredidas de todas as formas possíveis. Deitar-se com o inimigo por amor, para não morrer de fome ou por meio de violência era uma ofensa a toda a pátria. E a autora tempera as imagens dessas mulheres humilhadas com as de outras, algumas sendo constrangidas, beijando soldados norte-americanos, "seus libertadores", a quem não deveriam negar nada.
As fotos, eu conhecia bem, mas algumas filmagens mostradas no filme, eu desconhecia totalmente. Tudo era material de arquivo, mas ele se entrelaça com o próprio filme. Madeleine com os cabelos raspados, correndo semi-nua, tentando apagar a suástica que lhe tinha sido desenhada na barriga de grávida. Os cinco minutos iniciais do filme serviriam maravilhosamente bem em uma aula para o Ensino Médio e, como vou ter que voltar a falar de 2ª Guerra Mundial, já estou planejando como. Enfim, o trauma de Madeleine foi enorme e mesmo que François a tenha acolhido e a seu filho, porque ela lhe conta tudo quando ele se declara para ela, não há mentira da parte da protagonista, ela não continua marcada e isso atrapalha enormemente a relação com o pequeno Daniel, algo que se agrava conforme o menino vai crescendo.
É bem cruel ver o menininho pedindo que a mãe lhe dê um beijo de boa noite e ela ignorando e indo embora para o trabalho, por outro lado, é compreensível que Madeleine não consiga lidar com toda essa carga emocional. Fora, claro, o fato de ser mãe solo nos primeiros seis anos de vida do filho. Só que a culpa não é da criança e, conforme o menino cresce, se estabelece um abismo entre os dois. E a única ponte entre eles é François, que nem sempre é emocionalmente capaz de dar conta dessa atribuição e ainda lidar com o seu próprio turbilhão emocional.
Falando em François, ele é um jovem arqueólogo que está desenvolvendo sua tese na Sorbonne. Ele não pode lutar na guerra por causa da pólio, diz para Madeleine que não se dá com o pai e tem uma relação de afastamento com o atlético irmão mais velho por causa de sua escolha profissional. Ele vem de uma família de ricos industriais, ele quer ser um intelectual, algo que não é bem compreendido. Só que, ao longo do filme, somos levados a refletir se, na verdade, o que causa dissenção na família é a orientação sexual do rapaz. Não colocaria François na letra G, mas ele com certeza está na letra B e com preferência por homens. Ele ama Madeleine, ele é melhor pai para Daniel do que a esposa é para seu próprio filho, mas ele não consegue fugir de seus desejos por outros homens o tempo todo. Em dado momento, ela o acusa de ter se casado com ela para se esconder, cabe a quem assiste ao filme tirar suas conclusões.
Logo depois do casamento, eles passam a viver em Paris e um ex-amante vem atrás de François. Imagino que o tempo que ele passou distante de Madeleine, antes dele lhe propor casamento, e que fez a moça imaginar que ele a tivesse esquecido, tenha sido para se desenganchar do sujeito. Eles moraram juntos no apartamento para onde ele leva a família. François conta uma história para Madeleine, diz que eles tinham uma rivalidade acadêmica (*e cientistas podem matar, vide o caso recente dos dois físicos portugueses*), e que o rapaz tinha transtornos mentais. Sim, o cara era esquizofrênico, isso é verdade, mas eles foram amantes.
No fim das contas, o sujeito acaba ateando fogo no apartamento de François e Madeleine, quando eles estão atendendo aos funerais do pai de Madeleine. Madeleine está vivendo o luto, tendo que passar pelas ruas da cidadezinha onde foi humilhada, o carro do casal é vandalizado com esterco ou lama, não sei bem, com uma suástica nazista desenhada nele, e, quando retorna, encontra seu lar destruído. Madeleine desconfia que François guarda segredos, pergunta para ele inclusive, mas o marido se retrai. Nessa sequência da casa queimada há uma imagem que é de terror para qualquer um que já tenha feito dissertação de mestrado ou tese de doutorado, que é a do trabalho de François completamente destruído. Madeleine o consola dizendo que tudo está na cabeça dele (*minha mãe me disse isso para me acalmar quando eu estava fazendo meu TCC*) e que ele conseguiria fazer tudo de novo. Acho que eu morreria um pouco ali.
A destruição do apartamento leva o casal a se mudar. François tinha falado de uma proposta de emprego em um dancing, uma espécie de boate, que ficava perto de uma base norte-americana. Eles queriam um gerente fluente em inglês, ele iria ficar com esse emprego, e Madeleine poderia trabalhar como garçonete. Ela parecia ter recusado, fala da tese do marido, ele diz que pode fazer o trabalho acadêmico de dia. No fim das contas, eles vão. A chegada na área das boates e bordéis, com montes de soldados bêbados, mulheres se prostituindo na rua e muitas luzes, deixa o pequeno Daniel fascinado. É tudo muito diferente, colorido e não é bem o melhor lugar para uma criança. Temos aí o primeiro salto no tempo; sai de cena o pequeno Hélios Karyo e entra Josse Capet, Daniel aos 10 anos de idade.
É dessa segunda parte do filme que vêm os cartazes de Les Temps d'Aimer. Temos François, Madeleine e o soldado norte-americano Jimmy (Morgan Bailey) deitados na grama. Aliás, fiquei sabendo desse filme por um vídeo do canal Gay Nerd que deu ênfase à ideia de que Les Temps d'Aimer parecia ter como centro a relação entre esses três. Não tem, não. A participação de Jimmy é pequena, ele flerta com Madeleine e com François, mais com ela do que com ele, mas é meio que peça-chave para que a protagonista compreenda melhor o marido. De qualquer forma, é um relacionamento altamente problemático e não se forma trisal nenhum, por assim dizer.
Jimmy é desejado pelos dois. Madeleine ama ou pensa amar François, mas é evidente que ele não consegue lhe satisfazer sexualmente, falta alguma coisa. Já François arde de desejo por Jimmy, mas tenta se controlar, não dar bandeira. Homossexualidade é crime na França, a lei que penalizava a prática ficou em vigor entre 1942 e 1982, e ele é um homem casado. Conforme a relação dos três é desenvolvida, temos uma cena de sexo, a única com alguma nudez, envolvendo o trio. Madeleine está com Jimmy e François está assistindo ao ato. Acontece? Sim, mas é algo que se remete à pornografia e à fetichização do corpo masculino negro. Gostei disso, não.
Madeleine convida o marido a participar. Ele timidamente se despe e entra na cena. Primeiro, ele troca carícias com a esposa, acaricia Jimmy, mas quando se sugere que ele deseja penetrar o sujeito, temos uma explosão. Jimmy bate em François e acusa o casal de querer transformá-lo em um brinquedo. Não discordo, mas quem começou a brincadeira toda foi o próprio Jimmy logo que os conheceu. E o que fica evidente para mim é a questão da construção da masculinidade do homem negro. Jimmy não poderia jamais ser o passivo, ser visto como gay efeminado. E quem quiser aprofundar esse tipo de discussão dentro do audiovisual, recomendo o excelente Moonlight e a série Fellow Travelers, que eu não resenhei, mas comentei no Shoujocast da retrospectiva 2024.
Depois disso, Jimmy some da história e ainda teríamos mais de uma hora de filme. Então, quem for atrás de Les Temps d'Aimer achando que o filme é sobre o trio, esqueça, é um drama sobre três párias, Madeleine, François e Daniel. Agora, a participação de Jimmy serve para discutir a segregação. Há boates mistas e há boates para brancos. A de Madeleine e François é para brancos, Jimmy termina virando frequentador e isso gera alguns problemas. Não é o foco do filme, a coisa meio que passa batida, mas é algo que está lá. François e Madeleine não o discriminam, mas, como comentei, ambos meio que fetichizam o sujeito. E todo mundo é bonito no filme. Os três em particular são lindos.
Nessa segunda parte do filme, Daniel continua sendo rejeitado pela mãe e François pressiona a esposa dizendo que já era hora de falar para o menino, que está com dez anos, quem é seu pai, mas ela não consegue. Daniel é expulso da escola por ter agredido um colega. Ele é um excelente aluno e François diz que ele será aceito em outra escola. Daniel pergunta se ele é um monstro. A mãe não lhe dá resposta, mas François o acolhe e diz que ele não é um monstro. Os laços entre os dois se estreitam ainda mais, mesmo que Daniel permaneça obcecado pelo pai biológico, e cresce o abismo entre mãe e filho. Depois disso, temos a única cena de sexo mais quente entre François e Madeleine, depois que ele a consola e ela engravida de novo. Com a morte do pai de François, as condições econômicas da família mudam enormemente, porque ele vende sua parte nas fábricas para o irmão. Outro salto no tempo.
Agora, eles são uma família burguesa, estão em Paris e François realizou seu sonho. Concluiu a tese, voltou a ser pesquisador e é professor da Sorbonne. Ele tem uma filha que ele quer que estude e siga uma carreira acadêmica e estimula Daniel, agora interpretado por Paul Beaurepaire, a entrar para a Escola Politécnica, a faculdade de engenharia mais conceituada da França. Só quem parece realmente infeliz é Madeleine, porque ela amava a vida na boate e não consegue atingir o grau de exigência de uma esposa de professora da Sorbonne. Ela vem das classes populares e não consegue se interessar por aquilo que o marido ama e que, agora, ele tem dinheiro para ter novamente. Além disso, ela sente ciúmes dos amantes que julga que François tem, além de estar sexualmente insatisfeita. E vem a tragédia.
François realmente tem um amante. Eles se encontram furtivamente em um banheiro que é ponto de encontro de homossexuais em busca de aventuras e alguma privacidade. O jovem é seu aluno. Só que François sente culpa e vergonha, além de medo, provavelmente. Ele rompe com o rapaz, dizendo que não é capaz de seguir adiante. O jovem decide se vingar e conta para o pai que foi assediado pelo professor, constrangido a práticas homossexuais. Já seria ruim o suficiente, mas o moço é menor de idade; ele tem 20 anos. François é preso, demitido da Sorbonne e decide dar um passo sem volta. E, algo que preciso pontuar, é que François, que é um sujeito gentil, ainda que falho, tem um tremendo dedo podre para homem.
Sem François, a família fica à deriva. Daniel confronta a mãe e sai de casa. Jeanne (Margot Ringard Oldra) não consegue entender a morte do pai e o motivo do irmão, que ela ama muito, ter ido embora de casa. Madeleine tenta seguir em frente, abre uma boate, permanece ativa, mas ela está doente, talvez não tenha muito tempo. O tom do filme fica ainda mais pesado, mas não somos deixados no inferno, porque Daniel, que abandonou os estudos e entrou para o exército, suplica à mãe por detalhes sobre o pai. Ele precisa de informações para dar entrada junto ao governo da Alemanha Ocidental de uma busca pelo seu pai biológico. É nesse último momento que Madeleine consegue se livrar do trauma ou que ele para de doer e, finalmente, mãe e filho parecem se reconectar.
Sim, sim, muitos spoilers, me desculpem, mas eu não consegui evitar. Les Temps d'Aimer é um bom filme, tocante e que consegue aprofundar uma série de discussões que são relevantes. É um filme histórico, coloca em discussão a situação de gente que por motivos diferentes são párias sociais, a discriminação às mulheres e aos LGBT+. Em duas horas e pouquinho ele consegue ser muito profícuo e denso. E eu não consegui deixar de simpatizar com ninguém e digo que nem François nem Madeleine são pessoas perfeitas, eles são complexos e falhos. Já Daniel, seja em qualquer uma das suas fases, é a única completa vítima dessa situação toda. A mãe quer protegê-lo, ele tem o sobrenome de François, mas não consegue lhe dar amor e ele tem medo de ser um monstro, porque é assim que os alemães são pintados.
Les Temps d'Aimer tem um excelente figurino e ele ajuda a marcar a passagem do tempo, assim como as paisagens. Não há o uso irritante de letreiramentos. O tempo passa, porque as roupas, especialmente de Madeleine mudam, porque seu cabelo está alterado, porque novas tecnologias aparecem em tela, porque os discos são outros, porque estamos em Paris ou em outro lugar e assim por diante. Há, também, referências ao período histórico que são colocadas na trama: fim da 2ª Guerra, Independência da Argélia, Guerra do Vietnã etc. Ninguém é tratado como idiota, por assim dizer. Quanto à caracterização dos atores, Anaïs Demoustier consegue convencer no seu amadurecimento e envelhecimento, já Vincent Lacoste sempre parece muito jovem, porque ele aparenta ter menos idade do que tem.
Assisti Les Temps d'Aimer porque localizei um torrent. O filme está disponível em um streaming que eu não tenho e eu fiquei com vontade de dar uma olhada pelos motivos errados, por assim dizer, e os cartazes do filme conduzem a uma ideia que não é a do filme. A surpresa foi descobrir um filme sensível, denso e que não escolhe caminhos fáceis. Além disso, o desempenho do menininho Hélios Karyo é magnífico. Ele atua com os olhos, com a expressão corporal, ele é extremamente convincente como a criança que só quer amor e que não consegue entender por qual motivo a mãe parece, na percepção infantil dele, odiá-lo. Enfim, recomendo bastante.














































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