terça-feira, 19 de agosto de 2014

Comentando o documentário Wonder Women! ! The Untold Story of American Superheroines



Semana passada, recebi meu DVD do documentário Wonder Women!  The Untold Story of American Superheroines.  Feito em 2012, o filme recebeu vários prêmios e elogios.  Considero a boa recepção muito justa, mas o título é amplo demais já que o foco é na Mulher Maravilha e em poucas outras figuras heróicas (*menos até que super-heróicas*) da TV e do cinema.  Pouco se falou das outras super-heroínas dos comics, por exemplo, ainda assim, é um material bem interessante e com a proposta de ser um material didático para futuras discussões em colégios, disciplinas de história das mulheres e das meninas, e de estudos feministas.

O documentário se foca, principalmente, o impacto da personagem Mulher Maravilha como ícone da cultura pop e feminista, sua capacidade de inspirar meninas e mulheres, ainda que os escritores das histórias da Amazona e a DC pouco se importassem com este público.  Além disso, o filme discute a baixa representatividade e a objetificação das mulheres nos quadrinhos e no cinema; as figuras (super)heróicas mais recentes como Buffy e Xena, e o que elas oferecem de novo para o seu público e para a representação das heroínas em geral.


Aqui, cabe explicar o meu oscilar ao utilizar heroína e super-heroína.  Vejam bem, Rippley da série Alien pode ser considerada uma super-heroína?  Ela usa alguma roupa ou apetrechos que poderiam torna-la uma super-heroína?  Acredito que não seja o caso.  Que super poderes ela possui no início de sua jornada?  Já a Mulher Maravilha possui poderes e apetrechos mágicos; a Bat-Girl não tem super-poderes, mas possui apetrechos que potencializam suas capacidades.  

Esta discussão não é feita no filme, mas opõe, por exemplo, duas autoras importantes, Trina Robbins e Lillian Robinson.  Para Robbins, figuras heróicas e super-heróicas não se diferenciariam, já para Robinson, não.  Se consideramos Robbins, a Mulher Maravilha não seria a primeira super-heroína dos comics.  Concordo em muitas coisas com a Trina Robbins, mas, não, nesta questão.  Só que Robbins é mais famosa, está viva e, bem, o filme não faz discussão neste sentido.


Wonder Women! é um documentário bem interessante, no entanto, é inegável que é bem superficial em alguns aspectos.  Por exemplo, ignora completamente o impacto dos mangás e animes nos EUA.  Nenhuma palavra sobre Alita, a Major Kusanagi, ou mesmo Sailor Moon e Card Captor Sakura.  Não posso deixar de ver isso como uma grande lacuna.  Outro tropeço, este dos grandes, é cair no blá-blá-blá do bondage e sadomasoquismo nos primeiros quadrinhos da Mulher Maravilha.  Quem discute uito bem a questão é Lilian Robinson ao mostrar – melhor seria usar provar – que não era somente a Mulher Maravilha a ser amarrada na Era de Ouro, mas Batman e outras personagens masculinas tinham tratamento semelhante.  Às vezes,  me pergunto de somente Robinson teve acesso ao material de época ou se os outros vieram com opiniões pré-estabelecidas e inamovíveis mesmo diante das evidências.

De resto, o documentário oferece farto material para discussão e mesmo orientações para seu uso em sala de aula.  Há uma ótima parte com um workshop com adolescentes, meninas que são desafiadas a montar a sua própria super-heroína.  Há outra muito legal com uma brasileira, imigrante, mãe solteira (*ao que parece*), que se inspira na Mulher Maravilha para buscar forças.  Ela tem várias tatuagens da heroína e diz que venceu nos EUA, porque foi forte, migrou durante a crise econômica brasileira, conseguiu trabalhar e fazer faculdade, fala bem inglês, algo que sua mãe e avó jamais poderiam sonhar.  Diz, também, que sua filha é uma wonder girl e que irá ainda mais longe.  


Uma das melhores partes do documentário é a da polêmica da DC com as feministas da revista Ms. a respeito da Mulher Maravilha.  Esta icônica revista feminista foi criada em 1972 e sua primeira capa trouxe a Mulher Maravilha, como ela era quando as autoras da publicação eram crianças e adolescentes nos anos 1940, e o slogan “Wonder Woman for President”.  A personagem é mostrada como forte e comprometida com a paz mundial, além de cheia de compaixão pelos mais fracos.  Foi aí que elas souberam que a heroína tinha sido despida de seu uniforme e poderes, aberto uma loja de roupas (*sério! 1*), virado especialista em artes marciais e que tinha um mestre (*sério! 2*).  A coisa é tão feia que o nome do tal mestre aparecia na frente do nome da heroína!  Confiram na capa aí em cima.

Enfim, pouco me importa que alguém venha me dizer que a fase Mod foi a melhor das histórias da Mulher Maravilha, Gloria Steinem – que fala pela Ms. no documentário –  vai direto ao ponto, a heroína é um ícone feminista, a única super-heroína americana com revista própria desde sempre, que nunca dependeu de um super-herói masculino e que nasceu comprometida com ideais feministas.  Tirar seu uniforme e colocá-la tutelada a um homem é um caso gritante de desempoderamento.  E tome cartas para a DC.  Quem viu o documentário Comic Book SuperHeroes Unmasked – onde só falam homens – deve estar ciente que a figura que falou do incidente estava confusa, afinal, para ele, a Mulher Maravilha era uma personagem criada para o público gay masculino (*Há!*) e não para essas mulheres.  As feministas são loucas?  Bem, Steinem conta a sua versão da história e da sua conversa com os chefões da DC  “Já devolvemos o uniforme.  Já criamos  uma tribo de amazonas negras na Núbia!  Agora, deixe-nos em paz!”.  Elas venceram, e tinham seu ícone de volta.



O documentário, entretanto, fala, sim, do sucesso da personagem entre os homens gays (*mulheres lésbicas têm voz várias vezes ao longo do filme*), eles, também, carentes de heróis e heroínas que os representassem tomam a Mulher Maravilha como uma de suas heroínas favoritas. Daí o belo enfoque no trabalho de Andy Mangels, um apaixonado pela Amazona, e o seu Women of Wonder Day que levanta recursos para programas contra a violência doméstica. O seu evento reúne todo o tipo de gente que é convidada a desenhar a heroína como desejaria que ela fosse.  Vi a página do evento e, parece, o último Women of Wonder Day foi em 2012.

Wonder Women! foca, também, no seriado da Mulher Maravilha dos anos 1970 que, apesar dos seus defeitos especiais (*é assim que a gente brinca com esses seriados da época*), foi um hit na época.  A série estrelada pela Miss América  Lynda Carter foi exibida entre 1975 e 1979.   A atriz é entrevistada e fala do que representou para ela interpretar a heroína e que ela inventou a transformação da personagem, que girava para deixar sua identidade secreta para trás e se tornar a Amazona.  A graça é que não havia retorno, uma vez Mulher Maravilha, a personagem não voltava mais a ser Diana Prince.  Que eu tenha visto, não há menção no filme nem às tentativas anteriores, nem às posteriores.



O documentário fala de outras séries que vieram na esteira do sucesso, inesperado para os chefões da TV, como A Mulher Biônica (1976–1978) e mesmo As Panteras (1976-1981).  O filme pontua muito bem que as séries não eram necessariamente feministas, mas que preenchiam um vazio muito grande e, por isso, marcaram época e inspiraram as meninas e mulheres.  Sim, há várias entrevistas ao longo de todo o documentário.  Outra coisa importante é que o filme destaca que essas heroínas estavam à serviço da comunidade e que, especialmente a Mulher Maravilha, celebravam a sororidade, isto é, a cooperação e solidariedade entre as mulheres.

A partir daí, Wonder Women comenta o backlash dos anos 1980, a celebração do herói super-viril individualista, vide os filmes de Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone.  Assim, as personagens femininas ou seguiram um pouco na mesma linha, vide Ripley e Sarah Connor, ou foram colocadas em seu devido lugar como acessório erótico do filme, namoradinha do herói ou donzela em perigo.  Quando escapavam disso, mesmo em filmes B ou C, nos quais, segundo o documentário, estavam as mulheres mais fortes e mesmo cruéis dos anos 1970 e 1980, precisavam morrer.  



Os anos 1990 chegaram um pouco mais animadores na TV e nos cinemas com Thelma e Louisie (1991), Buffy (1997-2003), Xena (1995-2001), entre outras.  No entanto, apesar de empoderadas, independentes, capazes física e intelectualmente, a sombra da morte estava sempre à espreita lembrando, talvez, que não havia espaço para elas neste mundo ou, pior, que elas eram meninas más.  O filme é muito rico e fala ainda de webcomics, movimento Grrl Power dando voz às mulheres que fazem parte dele e criticando a apropriação e domesticação feita por produtos como as Spice Girls.  Senti falta da Mulher Maravilha na animação, não se falou uma linha sobre os antigos ou novos desenhos da Liga da Justiça.

Documentários como Wonder Women mostram, e estou me repetindo, a carência enorme que temos no Ocidente de heroínas e super-heroínas que possam inspirar meninas e mulheres.  Vendo a parte do Comics Code, a acusação de lesbianismo e a guinada romântica nas histórias da Mulher Maravilha, é  impossível não lembrar do que acontecia no Japão e que mesmo os animes de robôs gigantes de Go Nagai nos anos 1970 ofereciam mais referencial de tipos femininos heroicos do que a TV e os comics.  Triste?  Sem dúvida, e eu nem vou falar da Rosa Versalhes.  



É isso.  Não sei se um dia este documentário estará disponível no Brasil.  Comprei minha cópia no site dos produtores.  O DVD deveria ter closed captions, mas nenhum dos meus aparelhos consegue lê-las.  E  foi por água abaixo minha possibilidade de emprestar para quem não tem um inglês tão fluído.  De resto, recomendo.  Se tiver a chance, não deixe de assistir.  E recomendo a resenha do Washington Post sobre o documentário.  Muito melhor que a minha, aliás.

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