domingo, 3 de janeiro de 2016

Representatividade só não é importante para quem sempre é representado


Sabe quando você encontra uma foto fofa, mas tão fofa que não pode deixar de repassar ou escrever sobre ela?  Pois é, este foi o meu caso com a foto desse menininho aí em cima com o boneco do Finn.  Eu precisava escrever.  Por conta disso, a resenha de Suffragettes talvez não saia hoje, mas sairá o mais breve possível, acreditem.  E, se puderem, vejam este filme.  Vejam, porque vale a pena!

Vamos lá, uma das questões muito caras aos movimentos negros, LGBT e feministas, e outros de ditas minorias é a da representatividade. Brinquedos, filmes, seriados, novelas, animação, games etc. são alvo de atenção e análise, porque fica sempre muito evidente que as ditas minorias, que só o são porque sub-representadas, aparecem muito pouco ou de forma bem estereotipada em produtos para amplo consumo.

Quando criança, eu gostava de ver crianças atuando, qualidade era o de menos, eu gostava de ver gente da minha idade nas telas e imaginar mil aventuras com aquelas personagens, ou outras que eu quisesse criar.  A idéia de que crianças gostam de se ver em filmes e novelas é algo que eu defendo e, normalmente, mostro os índices de audiência de coisas como Carrossel para fundamentar o argumento.  Me aborrecia, entretanto quando a maioria das crianças na tela eram meninos, ou os papéis das meninas eram torcer, esperar e gritar, enquanto os meninos viviam as melhores aventuras.  Isso era muito, muito chato.  Se a personagem feminina era um saco, preferia me apegar a um dos garotos como favorito e esquecer dela... às vezes, era o que acontecia mesmo.

Estou lá no canto com a minha boneca.
Em relação aos brinquedos, eu preferia bonecas pequenas, que cabiam nas minhas mãos e podiam ser encaixadas em carrinhos, aviões,  habitar em casas feitas com caixas de sapato. No entanto, eu tinha duas bonecas maiores das quais gostava muito, eram duas bonecas negras, uma com traços mais étnicos, por assim dizer, tinha pertencido à minha avó paterna e a única coisa de seu espólio que meu pai foi buscar, porque, segundo ele e minha mãe, eu gostava muito da boneca, o outro, era um bonecão barato de plástico que eu amava muito.  

Como a maioria dos bonecos negros dos anos 1970, 1980 e até quase os dias de hoje, meu "João Preto" era simplesmente o mesmo boneco branco só que feito de plástico preto. Mamãe dizia que eu com menos de um ano o escolhera, mas que eles não tinham como comprá-lo no dia e acabou sendo difícil consegui-lo depois.  Por isso, eu tinha um branco do mesmo tipo, que era uns meses mais velho.  

Não me vejo como negra, eu realmente não me preocupo com identidade étnico-racial, mas gostava muito mais de meus bonecos negros do que de outros que tinha.  Talvez por serem mais próximos de mim, talvez por aquele senso de justiça aguçado na infância pela minha mãe.  Como podem rejeitar bonecos por causa de sua cor? A cor de boa parte das pessoas que conviviam comigo na minha infância no meu bairro, escola e igreja.  Adolescente, quando vi pela primeira vez uma Barbie negra, em filme, noticiário, não lembro mesmo, como eu desejei ter uma delas. Por que nunca chegaram ao Brasil quando eu era criança?


A foto que eu procurei tanto ontem...
Poucas coisas me incomodaram tanto neste final de 2015, para além de já ter que ir para uma espécie de solenidade lá no trabalho, quanto um vídeo promocional do Exército no qual, entre tantas cenas, apareciam soldados da missão brasileira no Haiti dando uma boneca loura para uma menininha negra.  Sim, aquele mesmo tipo de boneca clichê que pululam nas nossas lojas e que se parecem remotamente com uma parcela mínima de nossa população.  A intenção certamente foi boa, presentear uma criança que, provavelmente, não tinha brinquedos.  Agora, custava dar-lhe uma boneca que se parecesse com a criança?  

“Ah, o que é que tem?” Tem que nós somos bombardeados com padrões de beleza o tempo inteiro.  Beleza que, via de regra, é branca, tem cabelos lisos e louros, não raro olhos azuis ou verdes, e é magra ou atlética conforme a moda de sua época.  Uma criança não branca – como eu fui um dia – pode até não se importar ou gostar da bonequinha loura, mas é gosto mesmo, ou falta de opção?  Eu não consigo acreditar em gosto genuíno pelo padrão dominante sem que ele tenha sido instilado pela falta de diversidade.  Se tivéssemos bonecas de todas as cores e tipos ofertadas em dignas quantidades por aí, eu acreditaria.  

Quando estive em São Paulo em agosto, deparei-me com um exemplo engraçado.  Era uma coleção tipo bonecas de todo o mundo, “Made in China”, obviamente.  As bonecas brancas eram ou louras, ou ruivas.  Era o que estava na caixa.  Mesmo a boneca que representava a Itália era ruiva.  Sim, há ruivas e louras italianas, mas o tipo mais padrão seria o de uma menina com traços latinos.  Branca com cabelos escuros.  Não havia boneca negra, claro, mas havia uma de traços orientais. Pelo menos isso, não é? 

Essa boneca seria um sonho para mim, na infância.
Pensando no tipo padrão brasileiro ou mais comum por aqui, muita gente ficou indignada quando finalmente saiu o vídeo um século de beleza do Brasil. É uma série simpática no qual a mesma modelo passa por transformações de cabelo e maquiagem de cada década do último século.  A brasileira não era nem a morena padrão, nem uma mulata, mas uma moça de pele alvíssima, ruiva e sardenta.  A modelo era a brasileira Cintia Dicker que havia atuado em Meu Pedacinho de Chão, mas foi um tanto incômodo para muita gente assistir ao vídeo.  Parecia que o padrão de beleza brasileiro era irlandês, por assim dizer.  No caso do mesmo projeto para os Estados Unidos, fizeram uma versão com uma moça negra e outro com uma moça branca.  Imagino que se deixassem somente a branca a recriminação seria grande e não apareceriam as vozes do deixa disso argumentando racismo inverso.

Junto com a foto motivadora do post veio a frase "Ele nem sabe o que é Star Wars, sabe que o boneco é igual a ele".  Sim, é por aí mesmo. Este menino, casos os seus responsáveis, ou um parente, assim deseje e possa, talvez ganhe um Finn de presente.  Talvez seja o primeiro boneco negro de qualidade  (*eu olhei de perto e ele é muito bem feito*) que ele possa ganhar de presente.  Eu daria com todo o prazer para alguma que desejasse.  Aliás, por qual motivo um menino ou menina negra pode receber um/a boneca/o branco e uma criança branca não pode?  Sei lá, eu que vi o filme ia querer passar longe do boneco do vilão que foi uma das maiores decepções do filme... Sei lá... Vai entender... 

O fato é que corre boato de que os bonecos do Finn estão encalhando.  Se assim for, trata-se de mais uma demonstração de como o racismo está entranhado em nossa sociedade.  Afinal, Finn é o herói do filme junto com a Rey... Ah, sim, e chegamos ao ponto mais incomodo, a Hasbro e a Disney não fizeram uma action figure da moça que é a protagonista do filme.  Legal, não é?  Nem vou falar da Phasma, ela faz nada no filme apesar da armadura estilosa, estou falando da protagonista.  Repete-se o que ocorreu com a Viúva Negra, por exemplo.  E é algo que vi o pessoal comentando sobre as action figures de Big Hero, simplesmente, as meninas ou não existem, ou são raras.

Protagonistas de Star Wars  promovendo os brinquedos.
Pelo que eu observo em seções de produtos infantis, quando são personagens muito famosas, elas são partidas.  Donald e Mickey para meninos, Minnie (*rosificada*) e Margarida para meninas.  Os passarinhos de Angry Birds tem no grupo duas fêmeas (*no início, ninguém sabia, mas a que bota ovos chama-se Matilda e a outra, rosinha, é Stella*) e elas não aparecem nos produtos para garotos e, como partem do princípio que este jogo não é para meninas, não aparecem em lugar nenhum... Eu procurei, eu gosto de Angry Birds e a Júlia vê o desenho.  

Qual é a conclusão?  Meninos não podem gostar de personagens femininas, porque ao se identificarem com elas, sua virilidade pode ficar comprometida.  Para as meninas, bem, é possível abrir uma exceção, mas, ainda assim, elas terão que consumir produtos pensados para garotos.  Agora, se fizermos o cruzamento com a questão racial, também não convém se identificar com o herói negro, isso, claro, quando ele ou ela existe, a não ser que você negro seja, porque se o fizer, você estará se rebaixando.  

Voltando para a Hasbro, ela agora fará praticamente tudo da Disney, inclusive as Princesas.  Para além do golpe na Mattel, que já está perdendo receitas por conta das quedas de vendagens da Barbie, eu não sei se a coisa será melhor nas mãos de uma empresa que trata tão mal personagens femininas.  O artigo da Bloomberg aponta que a empresa quer retratar o empoderamento das últimas princesas da Disney em seus produtos, bem, personagens femininas não parece ser o forte da empresa... Não mesmo... 


Identificação, representatividade e felicidade.
Ainda assim, acredito que uma criança possa fazer o que quiser de um boneco ou boneca, pode criar e imaginar mil coisas, subvertendo a ordem mesmo, os discursos, também, isso, claro, se os adultos ao redor não forem demasiado castradores... Bom seria que as crianças pudessem escolher brincar com os brinquedos que desejassem, que meninos e meninas pudessem ter suas bonecas e que elas pudessem ter mil cores, jeitos, olhares e cabelos, que a afinidade pudesse vir da identificação, ou de qualquer outro sentimento que brotasse dentro delas.  De resto, espero que a action figure da Rey, aquela da mesma coleção do Finn chegue às lojas.  

De qualquer forma, desculpem-me o texto desorganizado.  A idéia básica, no entanto, é esta do título.  Representatividade é importante e, normalmente, quem acha que não é quem é sempre representado e segue-se a hierarquia: homens, brancos, magros e/ou atléticos, pessoas cis de ambos os sexos etc. etc. etc.  

6 pessoas comentaram:

Eu realmente não entendo a lógica de mercado da Disney. Quase não tem bonecos da Rey, e os poucos que tinha já estão esgotados. Espero sinceramente que a Disney acorde e produza mais bonecos dela e dos demais personagens.
O Finn realmente é um dos únicos que sobrou pra comprar. Não quero levantar acusações infundadas pois não tenho dados, mas parece mesmo que o boneco encalhou. Mesmo os vilões como o Kylo Ren ou os Stormtrooper estão difíceis de achar. Cheira a racismo mesmo.

Sobre o "Meninos não podem gostar de personagens femininas" me lembrei de uma vez ter visto no onibus um menininho, de sete a dez anos mais ou menos usando uma camiseta com apenas a Astrid montada na sua dragão Tempestade. Achei bem bacana.

Sou considerada socialmente branca e nunca tive nenhuma boneca negra. Lembro que era apaixonada por uma Barbie indiana, de pintura mais escura, que via na loja de bonecas importadas que havia no meu bairro. Há alguns anos atrás, quatro ou cinco, não me lembro, me deparei, já adulta, com uma boneca de pano negra, cabelos cacheados, tecido escuro. Comprei. Não foi uma forma de compensar um antigo desejo de infância. Ela está guardada, e, quando tiver um filho ou filha, irei dá-la de presente. Independente da cor que a criança venha a ter.

Ainda não entendo como a Disney faz e distribui filmes com temáticas feministas(Frozen e Valente) e mesmo assim, não focar tanto em bonecas de personagens femininas de filmes votados para o público "masculino", e falando em bonecos e bonecas negros, me lembrei de uma vez, quando eu fui para o aniversário de minha afilhada que era em uma loja que só vendia bonecas Barbie tanto antigas quanto modernas; mas que também tinha um salão de festa; eu vi uma Barbie negra de cabelo cacheado da década de 50. Fiquei tipo: "Valha meu Deus, uma Barbie negra! É a primeira vez que vejo uma" e como nasci em 1997, dá pra entender como eu realmente fiquei, mas ao mesmo tempo pensei: "Hum...bem que poderia ter mais bonecas e bonecos assim"

Lembrei da Barbie da Uhura que deve estar uns 40 dólares na Amazon. Não encontrei no Brasil. Uma pena. Vou deixar um link aqui com as duas bonecas. Gostei do detalhe do nariz: https://encrypted-tbn2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSrrmPR8V9h5kpZrhgB3UY8bqXsgRU2dFGEElHNLaTgEI1LhXZTKMkzjsox

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