domingo, 16 de agosto de 2020

Comentando A Última Legião (Inglaterra/2007): Uma curiosa ponte entre o fim do Império Romano do Ocidente e a s Lendas do Rei Arthur

Ontem, acordei me sentindo mal, nada a ver com a suspeita de COVID-19, eu estou aguardando resultado do exame, mas com estresse e ansiedade.  Por conta disso, cismei de assistir um filme que fosse leve, divertido e que tivesse algum apelo especial, vamos lá, outro filme com Colin Firth.  Como já fazia alguns dias que eu olhava para uma das prateleiras de DVDs e estava lá A Última Legião  (The Last Legion) olhando para mim, foi a minha escolha.  Inclusive, em 2017, eu fiz um post sobre os filmes que precisava rever, A Última Legião está nessa lista.  Mas sobre o que é A Última Legião?

O filme, que é adaptado de um livro de mesmo nome de autoria de Valerio Massimo Manfredi, conta a história do fim do Império Romano do Ocidente, a queda de Roma, enfim, e tenta fazer uma ligação entre este acontecimento e a Lenda do Rei Arthur.  Como era moda na época, o filme é de 2007, mistura a IX Legião nesse bolo todo.  Temos Colin Firth como um improvável comandante romano, Aishwarya Rai como uma guerreira invencível e Ben Kingsley soltando bolas de fogo pelas mãos.  Vou parar de debochar e escrever um resumo decente e solene.

Roma, 460 d.C., Romulus Augustulus (Thomas Brodie-Sangster) está prestes a ser coroado imperador.  Seu pai, Orestes (Iain Glen), tomara o poder com o apoio do Senado, mas preferira colocar o  filho no trono como imperador fantoche.  Bárbaros aliados dos romanos mandam uma comitiva em nome de Odroaco (Peter Mullan), exigindo que Orestes cumpra sua promessa e lhes dê 1/3 da Itália.  O representante do senado, Nestor (John Hannah), fica surpreso que tal oferta tivesse sido feita. Nesse momento, a Itália era basicamente o que tinha sobrado do Império do Ocidente.  Orestes recusa, e Wulfila (Kevin McKidd), o líder da comitiva, diz que ele se arrependerá.

Para proteger o jovem imperador, é convocada a "Nova Invicta", a última legião que havia servido na África (*onde, não se explica, porque os territórios tinham sido perdidos fazia tempo*).  Seu comandante, Aurelius (Colin Firth), não se sente muito confortável com a missão, ele detesta políticos e filósofos.  Logo de cara, ele encontra o jovem imperador sem saber que se tratava do novo César, ele também conhece Ambrosinus (Ben Kingsley), o professor do menino, e ele lhe parece um filósofo, logo, alguém pouco confiável.  Ambrosinus é de Bretanha e está procurando a lendária espada que Júlio César teria levado para a Itália e que deveria ser empunhada por um rei justo que lideraria o povo da sua terra natal.  Ele desconfia que esse rei é Romulus Augustulus, mas é demitido por Orestes por causa da sua impertinência.

Os godos atacam Roma, os pais do jovem imperador são mortos, a cidade é conquistada, a Nova Invicta é massacrada.  Odroaco fica na dúvida entre matar Romulus, e Wulfilas queria fazer isso com suas próprias mãos, ou poupar a vida do menino.  Graças à intervenção de Ambrosinus, ele decide enviar o garoto  e o professor para a ilha de Capri, o antigo palácio fortaleza de Tibério (42 a.C.-37 d.C.), e que faria as vezes de prisão.  Aurelius, que tinha sido dado como morto, vai até a casa do senador Nestor, um amigo de longa data e fica a par dos planos para salvar Romulus.  

O imperador do Oriente (*Bizâncio*) oferecia asilo para o menino e pretendia apoiar a retomada do poder, segundo seu embaixador (Alexander Siddig).  Aurelius iria resgatar o que sobrara de seus homens e contaria com o apoio de um dos soldados bizantinos (Aishwarya Rai), que ele não sabia ser uma mulher ainda, e partiria para Capri.  Na ilha, Ambrosinus descobre o esconderijo da espada lendária, que é resgatada por Romulus.  O plano de resgate dá certo, porém, o Senado e os bizantinos tinham retirado o apoio ao jovem imperador.  O menino deveria morrer.  Não resta alternativa salvo partir para a Bretanha em busca da IX Legião e tentar recuperar Roma e o trono para Romulus Augustulus.  Já Ambrosinus acredita que com a espada será possível derrotar o tirano local, Vortgyn (Harry Van Gorkum).

Assim, por esse resumo, quem conhece alguma coisa da História do final do Império Romano do Ocidente já sabe o quão zuado esse filme é.  A data, 460, é uma das primeiras coisas que aparecem na tela.  Para começo de conversa, Roma caiu em 476.  Mas, talvez, seja importante dizer que o Império Romano estava partido em dois (*pelo menos*) desde 395.  Normalmente, quando a gente dá aula desse conteúdo na escola, sinalizamos que, para salvar o Oriente, o Ocidente foi sacrificado.  Os imperadores do oriente chegavam a subornar líderes desses povos germânicos para que eles não pilhassem seus territórios e seguissem para a Europa.  

A parte rica do Império, que estava recuperada  da crise do século III, tinha capital em Constantinopla, antiga Bizâncio.  Já a parte a parte Ocidental sofria com instabilidade política, revoltas militares, não tinha condições de conter as migrações e/ou invasões de povos germânicos e alguns não-germânicos, como os hunos.  Por isso, para evitar o mal pior, negociavam-se acordos que tornavam os bárbaros federados, com os romanos lhes cedendo terras.  Muitos generais dos últimos anos do Império do Ocidente eram de origem germânica.  

Roma foi saqueada em 410 pelos visigodos (*falei disso em uma resenha de livro-mangá no ano passado*) e em 455 pelos vândalos (*que levaram a imperatriz e suas duas filhas cativas*), antes de ser conquistada pelos hérulos em 476.  Só que desde 402, os imperadores passavam boa parte de seu tempo em Ravena, uma cidade mais segura, fortificada e menos insalubre do que tinha se tornado Roma, a capital oficial.  O pai de Romulus Augustulus, o usurpador Orestes, foi morto em Ravena, não em Roma.  E quem era a maior autoridade residindo na capital oficial?  O bispo.  Por exemplo, quem foi parlamentar com Átila, rei dos hunos, e pedir que ele poupasse Roma e a Itália não foi o imperador, mas o papa Leão I.  

De todos os problemas históricos que eu vejo em A Última Legião, o único que me incomoda de verdade, é que não há menção qualquer ao cristianismo, nem à Igreja Católica, nem à heresia ariana, pois praticamente todos os povos germânicos que invadiram o Império eram cristãos, só que não seguiam a ortodoxia.  Parece que era todo mundo pagão e, bem, isso está muito errado.  Voltando  aos invasores, os bárbaros que tomam a cidade são chamados de "godos" no filme, mas eram uma mistura de vários povos, liderados pelos hérulos.  Os godos, neste caso, os ostrogodos, só irão conquistar Roma mais tarde, quando Teodorico mata Odroaco com a autorização do Imperador do Oriente.

Aqui, vamos esclarecer outra coisa que o filme coloca errado.  Eram dois impérios, verdade, mas os seus governantes mantinham ainda relações próximas de parentesco e/ou casamento.  O menino Romulus fala para o pai, e há medo em seus olhos,  que os últimos cinco imperadores foram assassinados.  Não era bem verdade.  Os imperadores do Oriente (*havia dois co-governando naquele momento*) não reconheciam Romulus Augustulus como imperador, para Constantinopla, Júlio Nepos era o legítimo governante e tinha sido derrubado por Orestes.  Odroaco e seus homens tomam Roma com o consentimento dos imperadores do Oriente.  A cena com Wulfila pisando a coroa imperial tem efeito dramático, mas o que os bárbaros fizeram foi literalmente enviar a coroa para o Oriente, afinal, não existia mais imperador em Roma.

O que o cinema normalmente não entende, e A Última Legião é uma fantasia, não podemos perder isso de vista, é que muitos desses povos germânicos tinham uma relação de amor e ódio com os romanos.  Consideravam-se melhores guerreiros, em alguns casos, houve conflito religioso com os católicos, mas pela convivência longa com os romanos, germânicos começaram a ser formalmente admitidos no exército romano no século III, eles admiravam sua cultura, suas leis, e, não raro, consideravam-se vassalos (*não pensem em sentido feudal, por favor*) dos imperadores do Oriente.  Então, nunca houve esse apoio dos orientais ao imperador deposto, porque eles não consideravam Romulus imperador.  E, vejam só, o menino, que era mais velho do que o do filme foi poupado.

Romulus Augustulus não foi executado, nem trancafiado em uma prisão inexpugnável.  Ele não foi visto como ameaça, não existia essa história de que ele tinha sangue dos césares, e há evidências de que viveu até a idade adulta sem se envolver com política.  Quem terminou sendo assassinado em 480 foi o imperador considerado legítimo, Júlio Nepos, mas não vou falar dele, não.  O fato é que o domínio de Odroaco durou até 493, quando ele foi morto por Teodorico, rei dos ostrogodos, enviado de Constantinopla para se livrar desse antigo aliado que começara a achar que podia ser mais do que era.  Resumindo, o Império do Oriente mantinha relações com esses bárbaros que implicava no reconhecimento de sua autoridade e que eles governavam, porque Constantinopla assim permitia.  Dos povos germânicos mais importantes desse período, o único que não se submetia era os vândalos, mas o filme não é sobre eles e eu já estou m esticando aqui.

Vamos falar dos clichês, porque são muitos, o tempo inteiro e para todos os gostos.  O primeiro, que me saltou aos olhos desde a primeira cena de Alexander Siddig, é a representação do bizantino.  Antes um esclarecimento, os habitantes do Império do Oriente chamavam-se a si mesmos de romanos até a queda de Constantinopla; já os ocidentais, os chamavam de gregos e, mais tarde, de bizantinos, termo que usamos até hoje.   Lembro da minha orientadora de graduação e mestrado, Prof.ª Andréia Frazão, discutindo isso em O Incrível Exército de Brancaleone, os bizantinos pouco aparecem no cinema ocidental, mas quando estão lá é para marcar que não se deve confiar neles em nenhum momento.  

Era essa a visão que os medievais tinham dos orientais, "não se deve confiar nos gregos", e voltando mais atrás ainda, a expressão "presente de grego" ainda é usada em nossos dias para lembrar do Cavalo de Troia.  O termo bizantino também entrou na nossa língua em sentido pejorativo.  A terceira definição do Houaiss é "que tem caráter de bizantinismo ('tendência', 'ato'); frívolo, inútil, pretensioso".  Estudamos muito pouco e mal os bizantinos e me disseram que sumiu do BNCC (Base Nacional Comum Curricular) do 6º ano como sequência didática independente. Abaixo, um mapa dos dois Impérios em  476.

Enfim, Alexander Siddig, o Dr. Bashir de Jornada nas Estrelas: Deep Space Nine, sempre é escalado para fazer papel de alguma minoria, ou ele é o árabe gente boa, ou é o árabe malvado, ou é latino, já foi Aníbal em um docudrama sobre essa personagem e neste filme é o bizantino genérico. Ele entra em cena e você já sabe que não deve confiar nele, há uma aura escura em torno do sujeito que se chama Theodorus Andronikos.  Ele se veste com roupas escuras, tem aquele olhar dúbio, fala macia, olheiras, meio que kit completo de vilão pé de chinelo, só faltava alguma cicatriz sinistra.  

Outros dois em papel clichê são Iain Glen e John Hannah.  Este último, salvo por Quatro Casamentos e um Funeral, não me vem a cabeça em nenhum papel que não seja o do sujeito covarde, ou de caráter duvidoso.  Ambos se aplicam nesse filme.  Já Iain Glen, que eu acho super charmoso, sempre, quase nunca falha (*exceção My Cousin Rachel*), é o cara rancoroso, chantagista  (*vide Wives and Daughters e Downton Abbey*), cheio das más intenções, ou capaz de fazer tudo pelo poder.   Bingo!  Ele entra em cena e já se sabe para quê.  Trata o filho como objeto, destrata Ambrosinus, e fez promessas para os bárbaros que não pretende cumprir.  Morre de espada em punho, não como um covarde.  Pelo menos isso.

Vamos falar de Ambrosinus.  Eu realmente acredito que muita gente embarcou nesse filme por dinheiro, por amizade, ou por diversão, só pode.  Esse deve ver o caso de Ben Kingsley.  Ele sempre parece estar se divertindo no papel, as cenas dele com o menino-césar, e o Thomas Brodie-Sangster, era um garotinho bem fofinho nessa época, são sempre muito legais.  Mas quem é esse sujeito?  Sabemos, desde o início, que ele é um druida.  Lá, bem no fim do filme, seu nome celta é revelado: Merlim.  

Merlinus Ambrosius é o nome latino da personagem que aparece em várias lendas medievais ligadas, principalmente ao Rei Arthur, mas, também, a Uther Pendragon e a uma personagem que normalmente não é tão conhecida, mas se chama Ambrosius Aurelianus, um dos últimos líderes na Inglaterra que se considerava romano.  Acho que a primeira vez que ouvi falar dele foi em As Brumas de Avalon.  Mas quem é essa pessoa no filme? A personagem de Colin Firth, que é chamado na película de Aurelianus Caius Antonius, ou, Aurelius, como ele é chamado no filme.

A personagem de Ben Kingsley é uma espécie de versão do mestre Yoda, parece muito calmo e inofensivo, mas, se precisar, entra em um modo porradeiro.  E ele tem um passado que o une ao vilão, Vortgyn, que é mais uma dessas personagens que navega entre História e lenda.  Não se sabe se existiu, se ele era um rei, se ele era um chefete local com má fama.  o fato é que Ambrosinus foge da Inglaterra, porque Vortgyn que matá-lo e quer a espada, já o Merlim precisa da Excalibur para destituir o vilão.  Durante todo o filme, Ambrosinus não faz grandes atos de magia, só pequenos truques de salão.  Mas, na batalha final, ele sobre na Muralha de Adriano (*tem que ser ela*) e começa a atirar umas bolas de fogo feitas com efeitos especiais muito grosseiros MESMO.  

Se ele é capaz de atirar umas bolas de fogo, por qual motivo ele não tinha feito isso antes?  Ele tinha quase morrido nas mãos de Wulfila e não usou esse poder, ou algo semelhante?  Lembrei de Kail em Anatolia Story que é descrito como um mago super poderoso e blá-blá-blá, mas que em 28 volumes de mangá usou seu poder umas três vezes e só.  Mesmo na batalha, ele usa em uma cena e não mais, porque ele sai atrás do vilão e deixa todo mundo para trás em uma situação bem complicada.  Claro, há uma lógica nisso, morto o chefe, o exército se desfaria, isso é uma lógica daquele período, os laços eram de fidelidade pessoal.  De qualquer forma, poderiam justificar o arroubou pirotécnico dizendo que nosso Merlim ficava mais forte quando perto das pedras de Stonehenge, ou outra bobagem do tipo.  

A esperança das personagens era encontrar a tal IX Legião Hispânica.   OK, mas existiu essa tal IX Legião?  Sim, ela existiu, mas seu símbolo não era um dragão, como está no filme, é porque a legião que aparecia no livro original era outra e o dragão se prestava melhor para a película.  A Nona participou da conquista da Bretanha, mas seus registros na Inglaterra cessaram por volta do ano 108.  Daí, a lenda de que ela teria desaparecido no norte da Inglaterra e que aparece no filme O Centurião.  Porém, mais recentemente, se descobriram traços da IX Legião em documentos sobre a região de Nijmegen (Holanda), em 120.  A Nona pode ter sido mandada para outra missão e como muitos registros se perderam, ou não foram recuperados, a gente não tem como mapear.  

O fato é que ela não aparece em duas listas de legiões romanas feitas no governo de Septímio Severo (193-211).  E não há nada de errado nisso, legiões poderiam ser desmobilizadas, desmembradas, massacradas, o que seja.  Pois bem, eles encontram a Nona, mas não era bem aquilo que eles esperavam.  Rompido o contato com Roma, perdidos no extremo norte do que seria o território do Império, seus soldados dispersaram, ou se acomodaram.  A Nona tem importância para o desfecho do filme e, acredito, que a batalha final seja uma referência à Batalha de Monte Badon, uma das últimas vitórias dos britânicos que se achavam romanos contra anglos, saxões e outros invasores.

Falando em representatividade nesse filme,  A Última Legião tem mais de dez anos, mas os romanos negros não eram novidade para os estudiosos nessa época.  em um texto recente que eu escrevi, Havia negros na Inglaterra de Jane Austen, mas eles parecem invisíveis, falei de túmulos de mulheres romanas indiscutivelmente negras na Inglaterra.  Há uma personagem negra no filme, uma só, Batiatus (Nonso Anozie), um dos legionários de Aurelius, e que tem boas cenas no filme, mas todos os membros da Nona são homens brancos, louros em sua maioria.  Há diversidade no filme, mas a ideia de um Império Romano branco permanece visualmente forte na película.

Vamos falar de Aishwarya Rai, que é chamada por Merlim  no final de "donzela guerreira", já falei do mito várias vezes.  Enfim, eu adoro essa atriz, ela é muito competente e, claro, belíssima.  Eu não consegui encontrar meu livro, mas no original a guerreira vinda da Índia não existe.  O que temos é uma jovem romana chamada Lívia, que se disfarça de rapaz (*se minha memória de mais de dez anos não falha*) para tentar evitar um estupro e termina salvando Aurelius e o acompanha na aventura.  Eu nunca conclui a leitura de A Última Legião e, ontem, depois de terminar o filme, fui procurar na estante onde o vira da última vez.  Não achei.  OK.

A personagem de Aishwarya Rai, Mira, aparece pela primeira vez com o corpo totalmente coberto e como um dos guarda-costas do embaixador bizantino.  Todos a tomam por um homem e o primeiro a descobrir o segredo, que, a partir daí, ela não faz questão de esconder é Aurelius.  Eu não lembrava que tinha sido tão cedo no filme, mas foi bem no comecinho.  A descoberta se faz em uma cena que é referência direta à Orgulho & Preconceito (1995).  Mira sai da água vestindo somente uma camisa molhada e Aurelius fica sem palavras, Colin Firth faz a cara de pastel que ele constantemente faz em seus filmes, vira as costas e vai embora.  Mais tarde, ela explica que é praticante de Kalaripayattu, considerada a mais antiga arte marcial do mundo.  Há um vídeo aqui, para quem quiser ter uma ideia.


 Quem é o guerreiro mais competente do grupo?  Mira.  Ela não obedece as ordens para ficar esperando no barco e derruba sozinha uns trinta inimigos enquanto os machos (*menos Aurelius, que estava fazendo outra coisa*), especialmente, Demetrius (Rupert Friend), ficam parados olhando sem acreditar e sem mexer uma palha para ajudar.  Essa parte do resgate na fortaleza é a que reúne a maioria das cenas cômicas pensadas para serem assim, passou dessa parte, o humor é involuntário.  

Mira não obedece ninguém, não que Aurelius seja mostrado como um sujeito que quer se impor a ela, mas se ele disser para que ela faça alguma coisa, ela vai fazer exatamente o contrário e vai dar certo, ou ele não teria chegado vivo no fim do filme.  Só que assim como Batiatus, o legionário negro, Mira é única.  Nenhuma outra mulher tem destaque no filme, que não cumpre a Bechdel Rule, a mãe de Romulus (Beata Ben Ammar) teve algumas falas, a menina Igraine (Alexandra Thomas-Davies) também, mas a única mulher com destaque é Mira.  Então, seu caráter de exceção não se presta a discutir gênero de verdade.  

É um caso que poderia ser incluído no Princípio de Smurfette, isto é, "(...) é a prática da mídia, como cinema e televisão, de incluir apenas uma mulher em um conjunto inteiramente masculino. Estabelece uma narrativa dominada por homens, onde a mulher é a exceção e existe apenas em referência aos homens."  Mira é muito legal, mas não sabemos como ela saiu da Índia, ela diz que é de Kerala, ou como chegou no Império do Oriente, como entrou para uma guarda de elite etc.  E ela está no filme para ser uma atração nas cenas de combate, assumir uma função materna em relação ao jovem Romulus, algo que ela abraça de imediato, diferentemente de Aurelius, que demora a se comportar como um pai substituto do menino, e, sim, para ser o par romântico de Colin Firth.

Falando em romance, a partir do momento em que Aurelius descobre que Mira é uma mulher, a moça parece disposta a conquistá-lo.  Ela joga verde para colher Colin Firth, por assim dizer, o tempo inteiro.  Ele se esquiva, ela insiste.  Por fim, na cena que é a mais sensual do filme, ela o desafia para um treinamento e, a meu ver, se deixa derrotar de propósito, porque algo que fica muito evidente na história é que Aurelius deveria se aposentar.  Não que ele fosse um mau soldado, mas porque ele tinha pelo menos uns trinta anos de batalhas constantes.  O fato é que os dois se acertam, tem algumas cenas ternas, mas talvez para atender ao mercado indiano, não sei, não há beijo entre os dois.  A não ser que esteja em alguma cena cortada que eu não assisti.  De qualquer forma, um dos motivos para reassistir A Última Legião foi para ver o casal Colin Firth e Aishwarya Rai juntos.  A graça é que ele foi Mr. Darcy em 1995 e ela fez a Elizabeth Bennet de Bride and Prejudice (2004).

Falando de Colin Firth, eu gosto de vê-lo atuando sempre, mas não sei se ele foi a melhor escolha para o papel do comandante romano endurecido por uma vida na frente de combate.  Talvez, eu esteja errada e o tom fosse aquele mesmo, o do sujeito que está de saco cheio de politicagem e violência e que, ainda que não admita, precisa se aposentar.  A cena, que tem tom humorístico, em que Mira desobedece e volta para ajudá-lo é bem ilustrativa, ele tinha lutado tanto, com tanta gente e, de repente, aparecem mais uns quinze sujeitos.  A cara de desânimo, cansaço e, bem, Mira o salvou.  Aliás, a sequência é engraçada por vários motivos, um deles é o "de onde veio tanta gente"?  Para guardar um moleque em uma fortaleza inexpugnável, bastava uma meia dúzia de sujeitos, não precisava ser um exército.  

Enfim, Mira e o jovem Romulus dão as condições para que Aurelius se aposente, não mais na Itália natal, mas na Bretanha.  Quer dizer, se ele é o Ambrosius Aurelianus da lenda, se aposentou, não. No filme, seu último desafio foi enfrentar Wulfila que vai atrás de Romulus e da espada, como se o fato do menino estar vivo na Inglaterra fizesse alguma diferença para o poder de Odroaco.  O fato é que o vilão, porque Wulfila é o vilão mais importante e tem a cicatriz feia no rosto para provar, odeia o menino e passa a odiar Aurelius, também.  Era um sujeito insistente e burro, deveria ter sido aniquilado pelo Ambrosinus no início do filme, mas o Marlin só usa seus poderes quando convém.

Falando das locações e figurino agora.  Gostei de terem colocado uma Roma suja e meio decadente.  Acredito que esse deveria ser o tom da cidade na segunda metade do século V mesmo.  Agora, quando mostram o castelo de Vortgyn... Tsc... Tsc... Tsc... Até queria saber qual castelo era aquele, porque é uma construção dos últimos séculos da Idade Média.  Um imenso castelo com muralha e várias torres que em nada se pareceria com as fortalezas e castelos do século V.  Algo bem clichê, também, é a história de ir à pé para a Gália atravessando os Alpes.  Não fui pesquisar, mas acredito que seria mais seguro e até rápido ir de barco para a Inglaterra.  Mas e o efeito dramático de atravessar montanhas geladas, não é mesmo?  E eles tinham que desembarcar em Dover, porque o canal se cruza de barco, para que aparecessem as escarpas branquinhas.  É cartão postal obrigatório.

O figurino é aquilo, a impressão que eu tenho é que foi coisa alugada de várias produções.  Temos roupas que parecem romanas, e eu adoro homens usando toga, mas isso dura pouco.  A maioria das roupas dos protagonistas é uma mistura genérica de couro e peles.  Entre os antigos membros da Nona Legião, colocam até um sujeito usando tartan.  Muito sem noção mesmo.  Os extras do exército de Odroaco e, mais tarde, Vortgyn, juntam roupas de vários momentos históricos.  Temos sujeitos com rosto pintado na Bretanha.  E me colocaram um godo genérico com aquele capacete viking com chifres que ninguém nunca usou.

Isso ficou grande demais, mas preciso terminar.  Uma das chaves para se entender essa salada deliciosa, porque o filme é divertidíssimo, é olhar o currículo do seu diretor.  Doug Lefler é criador de storyboard, roteirista e diretor de séries e filmes.  Antes de A Última Legião, acredito que o trabalho de maior destaque dele como diretor foram episódios das séries Hércules e Xena.  Quem conhece esse material, reconhecerá a grife do diretor em A Última Legião.  Entenderam esse descompromisso com a história, esse mone de clichês e a garantia de diversão?  Pois é.  Um dos roteiristas, Jez Butterworth, depois seria o principal escritor da série Britannia, sobre a qual já li coisas boas e ruins, e fala, claro, da Inglaterra debaixo do domínio romano.

Acho que é isso. Não comentei que o Rupert Friend está mais bonitinho nesse filme do que em Orgulho & Preconceito (2005), mas ainda não tanto quanto estará em A Jovem Rainha Vitória Devo ter esquecido de comentar uma ou outra coisa.  Foi divertido escrever, mas deu mais trabalho do que eu gostaria.  Por favor, nunca passem A Última Legião para uma turma na escola como filme histórico, não o recomendem para ninguém como tal, mas podem ir sem medo se o objetivo é se divertir por quase duas horas.  É um filme simpático, não se vende como épico, nem nada assim, só uma boa diversão mesmo. E a Última Legião recebe o máximo de estrelinhas na minha cartela do "É ruim, mas eu gosto."


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