sábado, 24 de julho de 2021

Muito Além do Mangá: Comentando Pele de Homem, uma mensagem de Tolerância e Liberdade

No final do ano passado, meu amigo Pedro comentou no Facebook dobre Pele de Homem, o quadrinho mais premiado na França em 2020.  De autoria de Hubert (roteiro) e Zanzim (arte), o álbum se passava no século XVI, em uma cidade italiana genérica do Renascimento, e contava a história de Bianca, uma moça de 18 anos, já em uma idade um tanto avançada para estar solteira, e que tem seu casamento arranjado pela família.  A jovem acredita que é uma situação absurda essa de se casar com um homem que não conhece, na verdade, a garota nada conhece do mundo dos homens.  Sua madrinha consegue levar Bianca para sua casa nos dias que antecedem seu casamento e lhe conta o segredo da família, existência da tal pele de homem do título.


As mulheres do lado materno da família de Bianca herdavam uma pele mágica de homem, Lorenzo, que possibilitaria às adolescentes se transformarem em um rapaz e se misturarem no universo masculino experimentando, pelo menos por alguns dias, o que é ser um homem naquela sociedade. Uma de suas tias, que se tornara freira, tinha inclusive ido longe demais e deixado algumas moças com o coração partido e queria levar a pele de homem para o convento, mas a impediram, porque, bem, vai que a Inquisição descobre? Bianca se traveste e se torna fisicamente um homem, mas sua madrinha precisa treiná-la, porque ela precisa aprender a andar como um homem, sentar como um homem, enfim, ela foi socializada como mulher.  A moça consegue, mas nos primeiros dias é difícil para ela pensar como um homem e termina se chocando com o que ouve.

A situação de Bianca é como a experiência de Oscar no mangá da Rosa de Versalhes, quando ela se veste como uma dama para ir ao baile, mas tem uma série de dificuldades em andar e se movimentar como o vestido, enfim, em performar o papel feminino.  Gênero (*ou sexo social*), papéis associados à homens e mulheres em uma dada sociedade, é algo que aprendemos desde o nascimento, é algo ensinado e reiterado a cada momento da nossa vida.  Na série animada, ela se veste e, num passe de mágica, é uma dama perfeita, afinal, os autores (homens, ou mulheres assujeitadas a essa ideia) acreditam que há uma natureza feminina.

Em Pele de Homem, Bianca, agora Lorenzo, quer conhecer melhor seu noivo, Giovanni.  Ele é rico, jovem e bonito, Bianca tem mais sorte que as suas amigas, porém, ele é uma completa incógnita.  Na primeira cena, Bianca assiste de longe a um arranjo financeiro feito por homens jovens e velhos, aqueles que tem poder sobre as mulheres.  Na pele de homem, Bianca conhece Giovanni e sua primeira impressão não é das melhores, mas se sente atraída por ele.  Ela também tem a oportunidade de observar o comportamento de certos conhecidos durante a noite e comparar com a forma como se comportam diante da sociedade.  Todos são hipócritas e falsos moralistas.

No outro dia, ela volta a buscar a companhia de Giovanni.  Os dois começam a se tornar cada vez mais íntimos e o rapaz leva Lorenzo (Bianca) a um lugar onde somente os homens frequentam.  A moça se espanta, porque há mulheres lá, quer dizer, não são mulheres, mas homens travestidos.  Um deles, Peccorina e, na verdade, Peccorino, o maior artista da cidade.  Bianca fica atordoada pela quantidade de informações e novas sensações e termina sendo beijada pela primeira vez... Só que é beijada pelo noivo que acredita que ela é um rapaz.

Giovanni é homossexual e assim como Bianca é obrigado e performar uma atitude viril em uma sociedade que é misógina e homofóbica.  E ele se sai bem na tarefa, é preciso deixar claro.  Ele já fez sexo com mulheres, mas por dever, para que ninguém possa lhe apontar o dedo.  Ele vê o casamento com Bianca como uma obrigação, o prazer ele guarda para os rapazes, só que Lorenzo é especial, Giovanni quer que dure, o quer como seu companheiro, mesmo sabendo ser impossível.  E o que Bianca quer?  Ela quer o amor de Giovanni, ela quer prazer sexual e ele não pode lhe dar nada disso, não a ela, somente para Lorenzo.  

Para Lorenzo, Giovanni explica seus sentimentos.  Ele fala de como o mundo dos homens e das mulheres parece ser diferente, salvo por alguns poucos momentos de encontro.  As mulheres, sua virgindade, sua virtude e a honra, que era a da família, deveria ser preservada.  Por isso, a possibilidade de interação com as "moças de família" eram poucas e sempre vigiadas.  Pele de Homem não discute identidades, raros eram os homens que no século XVI deveriam ter consciência de sua orientação sexual.  Simplesmente, sabiam o que a sociedade esperava deles e que deveriam cumprir certos papéis e poderiam ter certos prazeres, desde que discretos.  Como todos, afinal, o próprio Giovanni fala sobre a sociabilidade entre os homens, a descoberta do sexo, suas intimidades, para uma surpresa Bianca, faziam (*ou tinham feito*) as mesmas coisas e raramente um denunciava o outro.  

Fácil lembrar de um episódio Downton Abbey no qual Mr. Carson (Jim Carter), o mordomo, quer denunciar Mr. Barrow (Robert James Collier) à polícia por sodomia e o Conde (Hugh Bonneville) pede que ele seja mais tolerante e lembre de como era nos tempos de escola.  Sim, mundos separados acabam possibilitando relacionamentos afetivos homoeróticos ou lesbianos sem necessariamente apontarem para uma orientação sexual.  Há curiosidade, há carência e há, em muitos casos, violência envolvida.

E Bianca descobre que a visão de Giovanni sobre as mulheres não é muito diferente da dos outros homens.  Ele acredita que uma esposa não deveria desejar prazer sexual, que isso é coisa de prostituta.  Ele se preocupa com a fidelidade da esposa, mas defende que um homem pode ter amantes mulheres e homens, se for discreto.  Bianca conseguirá mudar seu coração?  É possível que ele venha a amá-la?  Essa é uma das questões de Pele de Homem.  Mas o fato é que como Lorenzo, Bianca começa a testar os limites da sociedade e questionar o mundo ao seu redor.  Sua madrinha começa a ter medo e se arrepender de ter lhe dado a pele de homem... 

Pele de Homem tem um vilão, Ângelo, o irmão padre de Bianca.  Um sujeito fanático religioso e com sede de poder.  Ângelo foi mimado pela mãe e se acha que vai consertar o mundo, é seu dever e sua missão.  E ele comporta-se como um inimigo das mulheres, a fonte de todo o mal, e os sodomitas, que se fazem de mulheres para ter prazer.  Aqui, Hubert vai expor mais uma hipocrisia, ao separar homossexuais em ativos e passivos, os primeiros conseguem ter seu mau comportamento amenizado, afinal, eles não se colocaram na condição de mulher, ainda que tenham pecado e mereçam punição. Lorenzo questiona Giovanni sobre isso quando ele diz ser o ativo e é lembrado que nem sempre... Xiiii!  Ninguém pode saber.  Aliás, Giovanni é bem competente em se passar por viril em público.  Como o modelo de masculinidade hegemônico é moldada pela violência, ele precisa parecer agressivo, tem que intimidar outros homens, se quiser sobreviver.  

Voltando para Ângelo, ele também age como censor das artes, promovendo a queima de quadros e destruição de estátuas, além de impor um código de vestimenta às mulheres.  Inclusive o livro expõe uma ideia que eu defendi na minha tese de doutorado que são os homens que ao longo da História se preocuparam em vestir, ou despir as mulheres, de impor-lhes códigos que eram criados para atender seus próprios interesses e fantasmas.  O moralista Ângelo parece ser inspirado em uma personagem real, o dominicano Girolamo Savonarola (1452-1498), que pregou em Florença, denunciou os maus costumes, atacou a arte secular, entre outras coisas.  Teve muito poder, até cair em desgraça e ser condenado à morte.  Ângelo não termina morto, mas teve sérios problemas a partir do momento que decidiu mexer com os prazeres e o bolso dos homens.

Não vou dar mais detalhes da trama.  Há algumas personagens secundárias com seus momentos na história, mas Pele de Homem é sobre Bianca, suas descobertas e a relação da moça com Giovanni.  O quadrinho é, também, sobre a nossa sociedade, porque os autores estão dialogando o tempo inteiro com a sociedade em que vivem as disputas de poder e de discursos que presenciamos hoje sobre moral, sobre sexualidade, sobre hierarquias entre homens e mulheres.  

Ao jornal Liberation, Zanzim disse que queria “desenhar uma história íntima que falasse sobre [Hubert], sua complicada adolescência, seu período gótico e sua homossexualidade”.  No site da Glenat, Zanzim comenta que pediu a Hubert que quando ele decidisse fazer sua autobiografia, que o chamasse para desenhá-la.  Há algo de autobiográfico em Pele de Homem.  E há outra questão, Hubert queria falar do casamento gay, que foi motivo de grande controvérsia na França com grupos (pseudo) conservadores católicos, evangélicos e muçulmanos se unindo em manifestações alguns anos atrás, e a história começou a ser gestada nesse momento.  Pele de Homem não fala de casamento gay, mas fala de aceitação, de companheirismo e de tolerância ao desenvolver a relação entre Bianca (Lorenzo) e Giovanni.  E, isso é um spoiler para quem conhece A Rosa de Versalhes, Bianca tem o seu André, mas sem que a coisa termine em tragédia.

A arte do quadrinho é bem dinâmica e bonita, se utilizando bem das referências históricas, sem ser realista.  Há momentos em que o figurino está com os pés firmes no século XVI, em outros ele se afasta.  Seria mais o que se pode chamar de para-realista, por assim dizer.  O espírito da época está lá, mas não de forma rigorosa.  O texto da tradução flui bem, não parece confuso em nenhum momento.  E, bem, é a qualidade da editora Nemo.  Aliás, quando soube do quadrinho, imaginei que era bem a cara da editora.

É isso.  A história é boa como história, as discussões sobre relações de gênero e sexualidade é muito bem desenvolvida.  O desenrolar da trama n]ao é óbvio, eu imaginei um caminho e o percurso e o final foi diferente e plenamente satisfatório, além de libertário, muito mesmo.  Mesmo com a autoria masculina, não teria problema nenhum em dizer que Pele de Homem é um quadrinho feminista que consegue dar voz à protagonista para além das discussões sobre homossexualidade masculina.  A condição das mulheres em uma sociedade patriarcal, suas limitações e estratégias de sobrevivência de de poder (*vide a mãe da protagonista*) foram muito bem abordadas.  Pele de Homem vale cada real gasto nele.  Quem quiser comprar o quadrinho, ele está disponível no Amazon em versão impressa e Kindle.

1 pessoas comentaram:

Me chamou a atenção mas sem grana no momento. s/2

http://www.cisgenerodetaubate.blogspot.com/

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