No dia 30 de abril, estreou mundialmente na Netflix o filme da Rosa de Versalhes (ベルサイユのばら). Acordei cinco e pouco da manhã e decidi sentar para assistir ao filme antes de fazer a minha segunda cirurgia de catarata. Decidi que iria resenhar quando desse e precisava olhar o mangá de novo para me certificar da minha memória. Li o mangá pela última vez faz algum tempo e há resenha de todos os volumes na edição da JBC no blog (*volumes 1 - 2 - 3 - 4 - 5*) para quem quiser olhar. Este é meu primeiro texto sobre essa nova abordagem da Rosa de Versalhes, outros devem vir em breve, aquele em que eu vou falar SOMENTE do filme como filme, sem entrar em maiores discussões sobre o que deveria ou não estar, ou como era no mangá, quer dizer, vou tentar fazer isso.
Se você pegar o resumo que está na página de abertura da Netflix, pouco se entende do filme. Querem ver? Em inglês é assim: "Duas nobres estão dolorosamente divididas entre o amor e a honra, o desejo e o dever, nesse anime romântico baseado no clássico mangá dos anos 70." Em português, está ligeiramente menos ruim: "Criada como um menino e educada para ser um soldado, a honrada Oscar François de Jarjayes tem sua lealdade testada como guarda-costas da futura rainha Maria Antonieta." Muito que bem, vou oferecer meu resumo para o filme: "Às vésperas da Revolução Francesa, o destino de duas mulheres se cruza. Uma delas é Maria Antonieta, a trágica Rainha da França, a outra é Oscar François de Jarjayes, criada para ser um soldado, ela deve dedicar sua vida a proteer a soberana. Ambas terminam se apaixonando pelo mesmo homem, o Conde Fersen, mas estão estão dolorosamente divididas entre o amor e a honra, o desejo e o dever. Observando e protegendo Oscar está André, seu companheiro de infância, criado, sua sombra, alguém que ama incondicionalmente sabendo que nunca poderá ter o que deseja, não em um mundo no qual o seu lugar é definido pelo nascimento. Mas, talvez, os ventos da revolução possam mudar as coisas e Oscar possa perceber que o amor verdadeiro está mais perto de si do que ela imagina."
Antes de escrever qualquer outra coisa, deixo registrado que gostei do filme. Gostei de verdade e qualquer crítica que eu vá fazer não apaga isso. Algumas sequências conseguiram capturar a beleza e a plasticidade do mangá de Riyoko Ikeda de tal forma que eu cheguei a me emocionar. Se houve muitas mutilações e alterações (*para o bem e para o mal*), ainda assim, a equipe de produção soube capturar o espírito do mangá e a personalidade do quarteto que foi colocado no centro da história, isto é, Maria Antonieta, Oscar, Fersen e André. Algumas sequências colocaram em movimento e deram voz para aquilo que estava somente no mangá e no coração dos fãs dessa obra-prima dos quadrinhos japoneses.
Como a opção foi por fazer um musical, é preciso dizer que as canções fizeram total sentido para mim quando observadas dentro da película e comecei a gostar de várias delas. Nos próximos dias devo me pegar ouvindo de novo e assistindo fragmentos do filme, porque eu já baixei uma cópia para ter no meu HD e as imagens da resenha vieram de lá em sua maioria. E o trabalho dos dubladores japoneses foi extremamente importante, com destaque para Aya Hirano, que dá voz para Maria Antonieta. Como tributo ao original, o filme chega quase à perfeição, mas e quem não conhece nada da história? Será a audiência, especialmente, fora do Japão, conseguirá compreender que é uma homenagem mais do que uma adaptação do mangá para quem não é iniciado? Ainda assim, imagino que Rosa de Versalhes apareça entre os mais assistidos da Netflix em vários países na sua semana de estreia.
Como já escrevi e comentei em vídeos, ao saber que seria material para o cinema, imaginei que o melhor nesse caso seria uma trilogia com as cores da bandeira da França, que são as mesmas dos uniformes de Oscar: branco (capitão), vermelho (coronel) e azul (general). Dava para ser? Dava. Só que ficou evidente, quando os primeiros trailers começaram a sair no ano passado, que seria um filme só. Conforme as informações foram fluindo, descobrimos que seria um musical. Pelo menos para mim é óbvio que decidiram homenagear, também, o Teatro Takarazuka, porque em 2024, a primeira peça musical da Rosa de Versalhes estreou no Japão. O Takarazuka foi quem melhor conseguiu traduzir o mangá para outra mídia, mesmo fazendo enorme sucesso na Europa, o anime de 1979 nunca foi um favorito entre as fãs japonesas, assim como o filme live action lançado um pouquinho antes.
Mas e o novo filme? Como ele é? Logo no início é narrada rapidamente a aliança entre França e Áustria (*na verdade, Sacro Império Romano Germânico*), pondo fim a anos de hostilidades entre os dois países (*é a chamada Revolução Diplomática*). Esse movimento resultou no casamento da arquiduquesa Maria Antonieta com o herdeiro do trono francês, o futuro Luís XVI. Maria Antonieta chega à França e se admira da beleza do país e seus olhos caem sobre Oscar, capitão da sua guarda pessoal. Ela é informada que se trata de uma mulher. Admirada, a delfina (*o herdeiro do trono da França é chamado de delfim*) termina estabelecendo com Oscar uma forte amizade. Nesse momento, ambas têm 14 anos.
Maria Antonieta conhece seu futuro marido e não sente nada. Sua vida no início de seu casamento será marcada pelo vazio e pela necessidade de se ajustar a sua nova pátria, à etiqueta da corte francesa e ao afastamento emocional em relação ao marido. Esses primeiros anos são retratados ao som da música "Ma Vie en Rose" cantada pela dubladora de Maria Antonieta, Aya Hirano. Aqui, já destaco que parte do brilho do filme, pelo menos em sua versão original se deve ao trabalho de dublagem, destacando-se Hirano, não somente pela sua potência vocal nos momentos cantantes, mas na forma como ela modulou sua interpretação para acompanhar a evolução de Antonieta, não somente seu amadurecimento conforme progridem os anos, mas a transformação da princesa insegura de seu lugar na soberana do país. A cena da separação entre ela e Oscar, a última cena das duas, às vésperas da Revolução, mostram uma Antonieta magnânima e fria, mesmo que sua voz fraqueje quando percebe que aquele adeus entre as duas será o último.
É durante essa música que aparecem as primeiras duas referências ao filme Maria Antonieta (2006) de Sofia Coppola. A cena de Antonieta fazendo uma das refeições como o marido e sendo observada pelos cortesãos (*o que era um privilégio*) e a cena na qual a Condessa de Noailles (*Apelidade de Madame Etiqueta*), que deveria guiar Maria Antonieta nos seus primeiros anos de adaptação, a repreende na igreja. Talvez, a cena em que ela se veste seja, também, uma homenagem ao filme, pois não existe no mangá. A terceira cena referenciando a película é a dos sapatos enfileirados. Pela idade da do pessoal do Estúdio Mappa envolvido na produção, o filme da Sofia Coppola deve ser um dos que serviram de molde para pensar Antonieta tanto quanto o mangá original.
A primeira parte do filme é de Maria Antonieta e, por conseguinte, de Aya Hirano. Na verdade, o filme tem somente duas mulheres importantes, Oscar e Antonieta, todas as demais mulheres foram apagadas, ou tiveram sua participação muito reduzida. Em um mangá sobre mulheres, dar mais destaque aos homens - e não estou falando dos principais, Fersen e André - me deixou um tanto irritada. Fica parecendo que, tal e qual no Takarazuka, os otokoyaku (*atrizes que interpretam as personagens masculinas*) são a alma do espetáculo. A coisa é tão corrida, que mesmo a origem de Oscar fica enevoada. Se você nao conhece a história, fica parecendo que ela é filha única e, não, a sexta menina, que fez com que o pai, cansado e preocupado com a saúde da esposa (*no mangá a mãe de Oscar parece ser um tanto frágil*), decidiu criar como se fosse seu herdeiro masculino.
Enfim, ao eliminarem as personagens femininas, transformando-as em cameo, na maioria das vezes, acabaram deixando pelo menos uma ponta solta. Por exemplo, durante a música Ma Vie en Rose, Antonieta tem um embate com uma mulher, mas não sabemos seu nome, não sabemos o que acontece, nada nos é dito. Trata-se de Madame Du Barry, a última amante titular (maîtresse en titre) de Luís XV, mulher mais importante da corte e que entrou em disputa com a princesa austríaca. Pela rígida etiqueta de Versalhes, Du Barry não poderia falar com Antonieta, era a delfina que deveria falar com ela. As filhas solteironas do Rei Luís XVI instigam a adolescente contra a amante do rei, dizendo que ela se rebaixaria ao falar com uma prostituta. qualquer bom filme sobre Maria Antonieta mostra esse incidente.
O embate entre as duas tem muito destaque no início do mangá. Se você não conhece a biografia da rainha, ou a série de Riyoko Ikeda, termina vendo o destaque que aquilo tem na música, mas não sabe do que se trata, quem é aquela mulher e o peso do um incidente que virou caso diplomático. Estabelecido isso, o filme animado é para iniciados, isto é, parece querer agradar a quem já é fã da Rosa de Versalhes, seja o mangá, seja o Takarazuka. Como tenho lido e traduzido matérias japonesas sobre o filme, sei que muita gente está indo atrás do original depois de assistir a nova adaptação animada. Para mim, é um alívio e espero que o sucesso possa fazer com que Riyoko Ikeda permita a produção de uma série, que era o que Rosa de Versalhes merecia.
Retornando para o filme, a Maria Antonieta tenta preencher o vazio que sente e que o filme não chega a explicar direito, afinal, não comenta em nenhum momento que o casamento entre ela e Luís XVI não fora consumado. Maria Antonieta não tinha o amor romântico que o anime nos diz que ela desejava, tampouco podia cumprir seu papel de rainha plenamente, isto é, produzindo herdeiros, porque o marido não tinha feito a parte dele. E, sim, era dever dele, não cabia a ela correr atrás do sujeito (*no mangá original, ela até tenta*) e ir até os aposentos dele, mas foi ela a acusada de ser culpada, afinal, ela era mulher e estrangeira. No mangá, Ikeda, que gosta muito de Luís XVI, explica que ele precisou se submeter a uma cirurgia (*fimose*) para conseguir cumprir com seu dever. Na realidade, além da cirurgia, faltava, também, educação sexual e quem precisou viajar até a França e ter uma conversa com a irmã e o cunhado foi o futuro imperador José II, da Áustria. Isso não está no mangá, mas está em qualquer boa biografia de Maria Antonieta.
A primeira virada do filme é quando Fersen entra em cena. Antonieta vai escondida a um baile de máscaras em Paris. É inapropriado e Oscar, que tenta aconselhar sua senhora a ter moderação, vai com ela. Ambas conhecem Fersen e caem de amores por ele. Antonieta, mais tarde, depois de se tornar rainha, irá abrir seu coração para Oscar, que tenta, em vão, proteger a honra da soberana (*e da França*) e aconselha Fersen a partir. Ele volta para a Suécia e ambas ficam de coração partido. A separação dos dois serve de gatilho para que Maria Antonieta mergulhe em uma espiral de gastos com roupas, joias e jogo. Nessa arte aparece rapidamente Madame Bertin, a modista genial da rainha, e foi difícil encontrar a Duquesa de Polignac que, no mangá, tem status de vilã. Ikeda tinha uma visão romântica da Revolução Francesa, mas o mangá dá nuances para Maria Antonieta que o filme não teve tempo (*e/ou vontade*) para fazer.
Temos o contraste entre os gastos da rainha entediada e a miséria do povo. Para quem não tem informação sobre como funcionava essa sociedade do Antigo Regime e como Maria Antonieta foi difamada, fica parecendo que ela realmente seria capaz de dizer "se não tem pão, que comam brioches". Oscar tenta chamar a rainha à responsabilidade, há um diálogo aqui e ali, como quando ela decide rejeitar seu aumento salarial ao ser promovida à Coronel (*nas legendas em inglês, há uma confusão de patentes, não sei como ficou em outras línguas*), mas a rainha não é capaz de ouvir.
Com o retorno de Fersen, que diz estar em busca de uma esposa para satisfazer a vontade do pai, e a confissão de Maria Antonieta, em uma das sequências que mais evocaram o espírito do mangá original, Oscar decide se vestir como uma dama pela primeira vez para dançar com o sueco. Ela queria saber como seria se sentir "uma mulher de verdade", só que é tudo tão rápido e tão mutilado que boa parte do impacto emocional da decisão, da ação em si ficam meio esvaziadas. Obviamente, o que se desejava era colocar Oscar com o icônico vestido estilo odalisca, mas sem a surpresa e o sofrimento de André, sem a posterior descoberta de Fersen de que ela era a dama misteriosa, talvez, tenha sido um desperdício de tempo dentro do filme. Nessas horas, parece que se trata de uma colagem de momentos marcantes do mangá costurados em um grande clipe musical. O fato é que, falando em descobertas, a parte em que Fersen descobre que Oscar é mulher, logo lá no comecinho, foi muito bem feita e seguiu quase fielmente o mangá. Foi um momento de humor preservado e que envolveu a babá de Oscar e avó de André.
A grande reformulação e que terminou sendo usada como divisor de águas na vida de Oscar foi o incidente que envolveu o Duque de Guémené e Rosalie (*em sua única aparição*). No mangá, o Duque de Guémené mata a sangue frio um menino miserável que supostamente tentara lhe roubar. Quem pede pela vida dele é uma mulher sem nome. Oscar presencia tudo e, posteriormente, confronta o duque em um jantar com a presença da rainha. O incidente quase termina em duelo. Na animação para o cinema, a mulher sem nome vira Rosalie, uma das personagens femininas mais importantes do mangá, ela apela pelo menino. Oscar intervém, mas o povo faminto e enfurecido ameaça linchar o Duque e Oscar. O criminoso foge e Oscar é atacada pela turba. André intervém e é gravemente ferido. Quem vem em auxílio deles é Bernard Chatelet, um jornalista revolucionário. Ele salva a vida dos dois.
No mangá, Chatelet é o responsável por mudar a vida de André, pois irá ferir um de seus olhos e o rapaz terminará ficando cego. Exatamente por isso, colocar Bernard salvando André e Oscar me deixou um tanto irritada. Quando há um quase linchamento dos dois, foi Fersen quem os salvou. Mas Bernard vai receber um destaque maior do que precisava no anime, ele chega a cantar. No mangá, Oscar o perdoa, ele se casa com Rosalie (*que havia sido acolhida pela protagonista em sua casa*), ele tem importância nos desdobramentos finais da história, mas transformá-lo em única voz do povo que queria a revolução foi uma escolha curiosa. No mangá, ele divide esse papel com Robespierre, que interage várias vezes com Oscar ao longo dos vários volumes. Por outro lado, não sei se transformar o líder revolucionário em cameo foi uma escolha política, no sentido de fugir de usar uma personagem histórica e controversa. E mais, ao cortarem Rosalie, eliminam, também, o subtexto yuri da obra, porque a jovem se apaixona perdidamente por Oscar, inclusive, há uma conversa entre ela e André na qual o rapaz reconhece que ambos nutrem o mesmo sentimento sem futuro pela protagonista.
Depois da primeira hora de filme, a película passa a dar mais importância para André e Oscar, mas antes, um comentário. A crise econômica se agrava às vésperas da revolução e a guerra de independência dos Estados Unidos é apresentada como um fator que acelerou a queda do Antigo Regime, mas algo muito importante foi omitido: Fersen lutou na América. Por qual motivo isso foi ignorado? Eu não sei, mas é algo importante, porque a grande cena de Antonieta na parte do filme mais centrada em Oscar, é a conversa com Luís XVI. A rainha aparece com os três filhos - Maria Teresa, Luís José e Luís Carlos - e o rei passeando, mais tarde, ela encontra o rei lendo uma carta que ele recebera e chorando.
A carta dizia que o caçula, Luís Carlos, que nascera depois da volta de Fersen da América, era filho do sueco. Isso está no mangá, mas foi cortada a cena em que um dos irmãos do rei é visto por Antonieta sussurrando a maledicência. O filme não mostra, mas parte das difamações sofridas pela rainha e que respingavam no rei, vinham da própria família. O grande vilão masculino do mangá é o Duque de Órleans, mas o Conde de Provence e o Conde de Artois, irmãos de Luís XVI, também agiam para infamar o casal de soberanos. O fato é que essas intrigas políticas são ignoradas pela película, que se concentra na oposição entre Oscar e Antonieta, entre dever e liberdade, nos romances trágicos de ambas, e na revolução, que é creditada em larga medida aos gastos excessivos da monarquia, ou, mais especificamente, de Antonieta.
Mesmo com muitos cortes e reduções, o amor de André é muito bem apresentado ao logo do filme desde a sequência do cavalo, quando ele é responsabilizado por um acidente sofrido por Maria Antonieta. Ele decide que sua vida pertence à Oscar, mas, ao mesmo tempo, ele sabe que amá-la é em vão. No início, ele percebe que Oscar está apaixonada por Fersen, mais tarde, é a percepção do abismo social entre eles, ela, uma mulher da nobreza, e ele, um plebeu. De todas as personagens da Rosa de Versalhes, é André o mais sofrido, o que carrega a carga mais pesada, porque Oscar só deixa de vê-lo como um irmão e percebe o quanto ela o ama, quando a história já vai muito avançada.
Durante a parte em que André e Oscar se tornam o foco principal, a protagonista decide sair da guarda real e se juntar à guarda francesa, o que seria mais próximo do exército com soldados vindos das camadas mais baixas da sociedade. André a acompanha por ordem do General de Jarjayes. Na guarda francesa, Oscar vai enfrentar forte resistência por parte da tropa que se recusa a ser comandada por uma mulher. Aqui, não é problema do filme, é algo que vem do mangá, e meio que uma incompreensão que vários mangá-kas parecem ter da vida militar. Soldado insubordinado é punido, pode ser prisão, galés, chibatadas, morte, dependendo da época. E não pode haver espaço em um ambiente hierarquizado para negociar adesão ou pautar as relações pelo afeto, porém, é isso que temos aqui. Oscar quer ganhar o respeito e a estima dos subordinados e é recusada e humilhada repetidas vezes, mesmo depois de se mostrar competente e compassiva.
Como fui reler o mangá, minha memória foi refrescada, e a coisa é exatamente assim no original. É irritante, mas é evidente o que Riyoko Ikeda quer mostrar e sua audiência compreendeu bem, mesmo hoje, aliás, o que ela mostra ali ainda pode acontecer em muitos lugares. Não importa o quão qualificada é uma mulher, a depender do lugar onde ela estiver, se for em uma profissão (*vista como*) masculina quanto pior, ela poderá ter sua competência questionada. Com Oscar ainda havia o agravante dela ser uma mulher da nobreza, porque isso poderia indicar que aquele lugar não foi conquistado, mas herdado ou mesmo comprado. Em uma sociedade de Antigo Regime, a mérito não garantia a ascensão social de ninguém, o que definia o seu lugar na sociedade era o nascimento. Ainda que, aqui e ali, possamos encontrar exceções, mas elas só se prestam a confirmar a regra.
O líder da insubordinação é Alain. Ele é importante no filme, mas não há nenhum interesse e/ou tempo de mostrar quem ele é, então, ele passa como líder negativo, machista e insubordinado, que, mais tarde, seguirá incondicionalmente Oscar e estará com ela e André até o final. No filme animado, porém, não o colocam se apaixonando por Oscar. Por questões de tempo, vários dos incidentes com a guarda francesa são suprimidos, ou juntados em uma sequência só, como o caso da venda das amas e a entrada do General Boillé, figura contra revolucionária importante e que é a única pessoa citada por nome na Marselhesa. No mangá, ele é inimigo pessoal do pai de Oscar e, por isso, ele a persegue. No filme animado, ele só está fazendo a parte dele, afinal, os soldados se mostram extremamente indisciplinados e não respeitam sua comandante.
Oscar já estava mostrando alguns sinais de rebeldia, estava lendo os Iluministas, especialmente, Rousseau, e o pai queria tentar mantê-la sob controle. No mangá, este arco é bem interessante, porque ele mostra a tenacidade da protagonista, o sofrimento de André, a importância da mãe como conselheira de Oscar e dá espaço para Gerodel brilhar atormentando tanto Oscar, quanto André. Mesmo sem ir espicaçar André, o noivado acaba fazendo com que o rapaz, que está ficando cego, decida tomar uma atitude desesperada depois de ler A Nova Heloísa, de Rousseau. O livro fala de um amor impossível pelos mesmos motivos que temos em a Rosa de Versalhes e que não poderá se concretizar nesse mundo. E temos a sequência do veneno.
André quer se matar e levar Oscar com ele. Esta cena é muito importante no mangá e no Teatro Takarazuka, é um momento em que André se sente impotente e seu sofrimento parece impossível de suportar. Imaginar outro homem casado com Oscar, lhe tira a razão. Obviamente, ele se arrepende e Oscar percebe o que ele tentou fazer. Excelente sequência. Voltando para Gerodel, que aparece com um cabelo enorme, ele é muito mais cavalheiro no filme do que no mangá e não ridiculariza André, ou beija Oscar à força. Ele simplesmente aceita que ela não o ama, não o aceitará como marido e que se ela for infeliz, ele também será. Ele também compreende, ainda que considere um desperdício, que ela pretende permanecer solteira por amar André. Esta cena está no mangá, é praticamente arrancada intacta dele salvo por um fato muito importante, André já tinha beijado Oscar e ela começa a perceber que ela o deseja.
Se não tivessem mutilado a história, aqui teríamos o confronto com o pai de Oscar e ela se declarando para André, que ficaria em êxtase. Preservaram Oscar decidindo seguir seu caminho como soldado e temos uma música em que ela aparece, como no mangá, como Ares, deus da guerra dos gregos. O quadro, a tuberculose, isso também foi eliminado, assim como a aceitação por parte do General de Jarjayes de que Oscar e André ficariam juntos, mesmo contra tudo e todos. Depois disso, uma cena importante só de André seria ele queimando de desejo e se culpando por desejar mais. Rosa de Versalhes chocou em sua época, a Margaret recebeu cartas indignadas de pais de leitoras, por falar de sexo mesmo sem falar abertamente, pois o texto de Ikeda nunca é direto e cru, ele é todo floreado e carregado de romantismo e a pressão sobre os editores aumentou ainda mais quando finalmente aconteceu. Mas inegável era que André estava no limite. Se bem que cortam a cena de André sem camisa e se secando... Oscar ficou bem alterada nessa hora... O desejo era recíproco.
Se o filme se concentra na oposição entre Oscar e Antonieta, com a primeira escolhendo a liberdade, mesmo que tenha que trair o grupo social ao que pertence, enquanto a outra se conforma ao papel que lhe foi imposto, ele também discute o que é ser uma mulher. Oscar se questiona o tempo inteiro a respeito de seus sentimentos e mesmo satisfeita em ser um soldado (*ainda que o filme nunca se esforce em deixar isso tão evidente quanto no mangá*), ela se questiona se ela estaria no lugar certo, se os sentimentos que traz dentro de si não seriam compatíveis com a vida que leva. Seu modelo de feminilidade é Maria Antonieta, ela é amada por Fersen, e isso atormenta Oscar. Quando a protagonista finalmente aceita e entende o amor que André lhe dedica, ela percebe que ele a deseja como ela é, que um complementa o outro, como a luz e a sombra.
Depois da noite de amor, que é percebido como um casamento de fato pelos dois, Oscar e André partem para se juntar as revolucionários. Vários regimentos foram enviados para reprimir os protestos em Paris. O filme já havia mostrado os Estados Gerais (*o único momento em que o filme mostra Robespierre*), que é o início de fato da Revolução Francesa, e a chegada de cada vez mais gente na capital para se juntar aos protestos. Quando do fechamento da Assembleia, o jovem Napoleão Bonaparte passa rapidamente por Oscar, mas, diferentemente do mangá, ela sequer o nota. Enfim, esse texto está ficando enorme, e tenho muito o que escrever, sabia que ia dar nisso. Muito bem, Oscar decide liderar seus soldados, não para cumprir as ordens vindas de Versalhes, mas para se juntar ao povo que já está lutando em Paris. É nesse momento que seus homens decidem obedecê-la integralmente. Aqui, minha única crítica é que, no mangá, Oscar dispensa seus oficiais, que eram nobres, de seguir com ela e a tropa. Eles decidem permanecerem fiéis ao rei. O filme corta esse detalhe importante e que estava de acordo com a personalidade da protagonista.
A batalha nas Tulherias é um momento importante do filme. Houve um investimento grande na animação das duas batalhas no final. há um grande detalhismo e o drama vai escalando até chegarmos à tragédia, que é a morte de André. E que ninguém venha me reclamar de spoilers, porque o mangá tem mais de 50 anos. Aqui, mais uma vez o trabalho dos dubladores, Miyuki Sawashiro (Oscar) e Toshiyuki Toyonaga (André), é magistral. Houve algumas alterações em relação ao mangá, principalmente, quando eliminam André pedindo água e Oscar correndo para pegá-la. Ele faz isso para que ela não o veja partir e morre nos braços de Alain. O efeito é diferente, mas o peso dramático é o mesmo e o que vem depois, a agonia de Oscar, segue o espírito do mangá com ela emergindo como uma fênix para liderar a tomada da Bastilha.
E o filme entrega uma espetacular batalha pela fortaleza que seve de marco da Revolução e data nacional da França. Anacronicamente, mas isso é do mangá, já vemos bandeiras tricolores e o lema "Igualdade, Liberdade e Fraternidade" na boca de Oscar. Em todas as cenas de multidão, a participação das mulheres é mostrada, porque elas efetivamente estavam lá. Agora, como cortaram Rosalie do filme, a jovem não está presente para amparar Oscar junto com Alain em seus últimos momentos. Assim como no Takarazuka, temos a apoteose de Oscar e André. Não é exatamente igual no musical, mas os elementos estão lá e são utilizadas ilustrações originais de Ikeda como base.
O filme termina nesse momento, que é altamente dramático, mas o fato é que a última parte do filme esqueceu que Maria Antonieta era protagonista, também. Entram créditos chatíssimos e usando gravuras de época que vão apesentando cronologicamente os eventos da Revolução até a morte de Maria Antonieta (16/10/1798) e temos o salto para a morte de Fersen (20/06/1810). Aqui, faltou um pouco de sensibilidade. Eu levaria os créditos até o momento da morte de Antonieta e meteria uma cena mostrando a morte da rainha, seguida da morte de Fersen. Seria um pós-créditos inesperado e que não roubaria o impacto da morte de André e Oscar. As páginas da morte de Maria Antonieta são das mais bonitas do mangá inteiro, elas mereciam ser animadas. Falando nos créditos, houve um erro importante. Antonieta não é separada dos filhos, ela é separada da filha e da cunhada, Madame Elisabeth, seu filho Luís Carlos foi levado antes e usado contra ela no tribunal. Para quem não sabe, porque foi cortado do filme, Luís José morreu semanas antes da Revolução explodir.
Terminou? Não, ainda não terminou. Eu preciso elogiar um dos pontos altos do filme, o figurino. O mangá original se equilibra entre uma tentativa de retratar o vestuário do século XVIII e os clichês do shoujo mangá, que Rosa de Versalhes ajudou a criar. Por conta disso, os grandes laços de cabelo de Maria Antonieta. Eles continuam lá, mas podemos apreciar vestidos que realmente se inspiram nas roupas da época com um detalhismo que enche os olhos. Alguém fez uma thread no Twitter mostrando que em vários momentos alguns vestidos que Maria Antonieta usou em quadros famosos apareceram na tela. E houve correções em relação ao mangá, que foram muito bem-vindas.
Um dos exemplos importantes são a cena do acidente de cavalo, quando Maria Antonieta estava vestindo uma roupa de montar, com direito a um chapéu e tudo mais. A roupa é inspirada em um quadro dela adolescente com roupa de montar. Curiosamente, ela não era uma boa amazona, porque sua mãe, a Imperatriz Maria Teresa, que sabia montar muito bem, não considerava adequado que mulheres muito jovens andassem a cavalo. Um dos sofrimentos de Maria Antonieta era que ela queria montar melhor e poder criar as condições para estar mais próxima do marido, que amava caçadas, e a proibição da mãe, que a monitorava de longe através do Conde Mercy, o embaixador da Áustria. Mercy consegue inclusive que o rei Luís XV proíba a esposa do neto de montar cavalos, Antonieta acaba tendo que montar mulas, o que era visto como humilhante, mas ela acabou transformando em moda. Mas houve uma vez em que ela montou escondido, acredito que venha daí a ideia do incidente com o cavalo.
Falando das roupas dos homens, elas também receberam uma atenção especial. Eu estou longe de ser especialista em História da Moda, por isso, talvez perca as minúcias, mas acredito que deveriam ter variado ao longo do tempo o comprimento das casacas ou coletes, mas realmente não tenho certeza, estou lembrando de um post do Frock Flicks sobre a série Rainha Charlotte em que elas discutiram isso. Queria muito que elas pegassem o novo filme para analisar, porque elas já descascaram mais de uma vez o anime de 1979. De qualquer forma, o espírito da época estava lá. Oscar recebe um figurino bem maior que no mangá e nem sempre está com seus uniformes, que estão mais nos moldes do século XVIII, também, mas roupas masculinas civis, por assim dizer. Como não poderia deixar de ser ela aparece com suas calças boca de sino e camisa branca, algo que é muito mais década de 1970 do que qualquer outra coisa. De novo, trata-se de manter algo que é do original.
Os cabelos também são muito mais fiéis à época, ainda que as características das personagens do mangá precisem ser preservadas. Antonieta aparece com vários penteados muito elaborados ao longo do filme e eles também acompanham a moda da cada período da vida da Rainha. Já os cabelos dos homens, ou de Oscar, seguiram o mesmo padrão do anime, além disso, mantiveram alguns homens mais velhos bigodudos. Pelo facial não era algo bem visto no século XVIII, era algo que se remetia à barbárie e selvageria, usar barba ou bigode era algo excêntrico até que deixou de ser lá pelo final da década de 1830. Houve um cuidado com as perucas, mas nem todos usam perucas, então, nesse aspecto não houve grande impacto. Agora, quando se trata de chapéus, os homens usam chapéus, aliás, todo mundo usa chapéu, algo que fazia parte do vestuário padrão e que, às vezes, eram esquecidos no mangá.
E, sim, antes de terminar, é preciso escrever que o traço de Riyoko Ikeda foi preservado pelo anime, ainda que as atualizações para uma estética mais moderna tenham ocorrido. Os olhos em especial não foram mudados, eles têm estrelas e muito brilho. Conforme as personagens amadurecem, eles vão ficando melhores e menos ingênuos, eu diria, mas continuam muito bonitos. E eu gostei muito de terem colocado Oscar com cílios e sobrancelhas douradas, o efeito foi bem gracioso, por assim dizer.
1 pessoas comentaram:
Infelizmente, eu não gostei muito do filme.
Achei a edição confusa, e as músicas desnecessárias.
Mas amei a dublagem, o figurino, a sequência da queda da Bastilha e o romance da Oscar com o André (tão lindos).
Se a intenção da produção era somente fazer uma homenagem a obra da Ikeda, acho que o filme foi bem sucedido. Pk fui correndo ler o mangá logo em seguida.
Postar um comentário