sábado, 30 de novembro de 2024

Protagonismo negro nas telenovelas para fechar o mês da Consciência Negra

Comecei a escrever esse texto no Dia da Consciência Negra (20 de novembro), mas, como ainda é novembro, dá tempo para concluí-lo.  O objetivo era comemorar a criação de um feriado nacional, reconhecendo que  negros e negras contribuíram para a construção desse país.  Claro, não foi, pelo menos durante os primeiros séculos, uma contribuição por vontade.  A maioria dos negros foram trazidos para o Brasil à força, escravizados, mesmo depois da proibição do tráfico, com a Lei Feijó (1831), agentes do governo imperial, isto é, do Estado, do poder público, continuaram facilitando a entrada ilegal e a regularização de pessoas que deveriam ser livres, condenando seus filhos e netos à condição de escravidão.  

Quando se fala em medidas compensatórias, o motivo mais forte é este, mesmo que várias pessoas, como uma desembargadora socialmente branca da Bahia finja, ou realmente não entenda, porque elas são necessárias e justas.  No caso desta senhora, ela também não compreende a importância dos feminismos, então, acredito que o problema seja com ela mesmo.  De qualquer forma, a análise sobre os resultados das cotas raciais tem sido positiva, mas deve incomodar muito para quem sempre teve o seu lugar garantido, ver uma universidade pública cada vez mais negra.  Meritocracia é uma grande falácia, basta observar como determinados sobrenomes se perpetuam em certas instituições de prestígio de nosso país.

Mesmo com a abolição da escravidão, que foi feita sem o oferecimento de qualquer apoio para os ex-escravizados (*e havia projetos que previam isso*), o legado da escravidão permanece.  Pessoas identificadas como negras são ainda hoje discriminadas, recebem piores salários, residem nas áreas mais precarizadas das grandes cidades e as que mais morrem vítimas da violência, inclusive policial.  Há dados consolidados sobre isso e, antes que alguém venha escrever bobagem, não que eu vá publicar, claro, pergunte-se se algum dia um branco foi estigmatizado nesse país por ser branco, se deixou de ter acesso a algum espaço, se foi discriminado nos serviços de saúde por ser branco, se foi morto/a por causa de sua cor de pele, se recebe menos por ser branco, enfim, se existiu navio branqueiro.  

Quando brancos são escravizados, e já foram, estamos em um contexto no qual a escravidão não tem cor, ou em que o capitalismo sem freios ou alguma conjuntura louca de fundamentalismo religioso (*vide o ISIS*) domina. Fora isso, mesmo negros ricos e/ou bem sucedidos são alvo de racismo.

Enfim, vamos falar de novela, pois o texto é para isso.  Volta e meia assisto novelas antigas no Viva.  No momento, estou assistindo Corpo à Corpo (1985).  Não é novela de época, mas contemporânea, Gilberto Braga no seu melhor, ele ousou colocar um casal interracial quase no centro da trama, com uma mulher mais velha (*com uma boa profissão, de classe média, formada na universidade*) e um homem mais novo (*sem muito rumo na vida*) e pagou caro por isso.  Houve rejeição e eu lembro de falas de gente da minha família, criticando o romance de Zezé Motta com Marcos Paulo.   Falas como esta aqui.

Preciso escrever um texto exclusivo sobre Corpo à Corpo, mas queria pontuar aqui que ela tem mais personagens negros que a média da época e das novelas de até não muito tempo atrás.  Ao todo são cinco, dois núcleos familiares, o que foi raro durante muito tempo, porque as personagens negras tendiam a ser entes isolados, atrelados a alguma personagem branca importante da novela (*para ver mais da discussão, assistam o documentário A Negação do Brasil*).  Agora, ambas as famílias não tem a presença do pai.  Em um dos núcleos, o de Sônia (Zezé Motta), da mãe, Jurema (Ruth de Souza), e da irmã, Laurinha (Eliane Neves), o pai morreu em um acidente no início da trama.  No outro, o dos empregados da mansão dos Fraga Dantas, formado por Wanderley (Cosme dos Santos) e Odete (Zeni Pereira), nada se falou sobre o pai ainda.  

Agora, Wanderley é tratado de forma muito abusiva e ambos são tão subalternizados, que chega a dar revolta.  Ainda assim, mesmo em nossos dias, esses abusos ainda podem acontecer sem que muita gente se dê conta.  Odete não somente aceita seu lugar, ela é uma mammy (mãe preta) que é meio que um patrimônio da família, mas rejeita Sônia como possível membro da família.  Ela é uma caricatura da negra racista, na medida que ela aceita o espaço que lhe deram, que, no caso dela, envolve algum poder delegado, e acredita que a sociedade tem estruturas que não podem ser mudadas. Já Wanderley, questiona o racismo estrutural, e teve um diálogo com a mãe que foi muito melhor do que os da novela A Força de um Desejo (1999), que é do mesmo autor. Só que Wanderley é uma personagem menor, a novela não é sobre ele o que nos leva ao assunto central do post.

Estamos em 2024 e as três novelas da Globo que estão no ar são protagonizadas por atrizes negras e nenhuma delas é sobre escravidão.  A primeira protagonista negra da Globo foi Thaís Araújo, em 2004, na novela Da Cor do Pecado (*Esse nome...*). Mais do que isso, elas têm famílias, e o elenco negro não se reduz a um punhadinho de gente.  Qualquer uma das tramas no ar parece representar de forma muito mais coerente a configuração da população brasileira.  Por outro lado, algumas coisas pouco mudaram.  A única mocinha que tem um par romântico também negro é a da trama das sete, Volta por CimaJéssica Ellen e Fabrício Boliveira formam o casal principal.  

Já nas tramas das seis e das nove, temos mocinha negra e um par branco.  Isso em si, não é ruim, mas historicamente, mulheres negras e indígenas são apropriadas por homens brancos, então, romper com esse padrão, como foi feito na novela Vai na Fé (2023), é muito importante. Enfim, não vou falar de Mania de Você, porque além de não assisti-la, sei que ela está passando por uma série de mudanças.  O último vídeo do Coisas de TV é sobre isso.  Recomendo.  Posso, no entanto, falar de Garota do Momento, a trama das seis.  Já fiz texto sobre ela, inclusive.

Não há rejeição em, relação a certos casais interraciais, eles, inclusive, são mais aceitos em nossos dias do que no passado, vide Corpo à Corpo.  No entanto, minha teoria é a de que eles precisam atender a determinadas exigências para serem assimilados pela audiência.  Quais seriam?  Homem branco, mulher negra.  Homem rico, mulher pobre.  Homem mais velho, mulher mais nova.  E estamos, claro, falando dos protagonistas, não de núcleos de humor.  Foi assim em Da Cor do Pecado, por exemplo, e a fórmula segue parecida até hoje.  E eu realmente acredito que Sônia e Cláudio seriam bem aceitos se tivessem sido atendidas tais exigências.  Agora, se essa equação for diferente...

Homem negro rico e mulher branca pobre.  Quantos casais de novela temos nesses moldes?  Um?  Quando Lázaro Ramos fez um sujeito bem sucedido, mulherengo e dúbio, ele, que nem era o protagonista, foi rejeitado.  Curiosamente, era outra novela de Gilberto Braga, Insensato Coração.  Se fosse um ator branco, talvez, um José Mayer da vida, talvez tivesse dado certo.  Escrevi sobre isso em 2011.  Não tivemos nenhum autor se arriscando colocando um casal interracial que não reproduza de alguma forma as tradicionais hierarquias sociais, sejam do patriarcado, sejam do capitalismo.

Em uma matéria para o Jornal Extra comemorando o Dia da Consciência Negra, Jéssica Ellen disse algo muito importante: "Meninas brancas que começaram comigo não demoraram a protagonizar novelas e séries. Eu levei 12 anos. Estou muito feliz que as próximas gerações já não vão viver tantos atravessamentos — diz Jéssica, de 32 anos."  Para atores e atrizes negros o percurso até o protagonismo tende a ser muito mais longo do que para os colegas brancos.  E o julgamento sempre será mais pesado, porque, para muitos telespectadores e mesmo críticos, eles não deveriam estar ali, porque não seriam capazes de representar aquilo que o público quer.  Eu me preocupo muito com o que pode acontecer com Bella Campos como Maria de Fátima no remake de Vale Tudo.  Parece que Gabz, a protagonista negra junto com outros três brancos de Mania de Você, é quem está sofrendo maior rejeição, quando, ao que parece, é a trama da novela que não vai bem das pernas.

Mesmo com essas três protagonistas e um elenco negro mais robusto, as novelas brasileiras ainda têm muito mais personagens e protagonistas brancos.  Na novela das seis, entre os protagonistas, somente Duda Santos é negra, em Mania de Você, dos quatro protagonistas, somente Gabz é negra.  Ainda assim, e eu guardei as matérias para este texto, Thiago Fragoso, que já tem 43 anos, e deveria ter noção das coisas, reclamou de racismo reverso e heterofobia.  Ele disse o seguinte:

"Em cada novela ou série, eu tenho a chance de fazer um personagem. Ou sou eu, ou o Jonas Bloch, ou o Herson Capri, ou o namorado da Larissa Manoela, que também é loiro de olhos azuis. Entrou um não pode mais ter homem hétero, branco. Estamos vendo esse questionamento pela mudança do status quo. Eu tenho uma chance por novela" Primeiro, isso não é verdade, ele vem de uma sequência de papéis na Globo, o último foi em Travessia (2022), ou seja, bem recente.  Fora, claro, que a maioria das personagens das telenovelas continua sendo branca e hetero, além de cis.  Segundo, aos 43 anos, ele precisa compreender que, em situação normal, ele não será o mocinho jovem da novela.  

Ele está quase no ponto de ser o pai do mocinho. Aliás, ele colocou no mesmo saco atores de gerações diferentes.  Certamente, Thiago Fragoso não disputa papéis com Herson Capri (73 anos), nem com André Frambach (27 anos), que foi reduzido por Fragoso a namorado de Larissa Manoela.  Não faz sentido nenhum o que ele disse, parece somente recalque em ver que homens negros estão conseguindo mais papéis e ele menos. Terceiro, mesmo antes de ser um ator competente, ele já tinha o privilégio de protagonizar novelas, vide o caso de O Profeta (2006), ou ter papéis de destaque em obras como A Casa das Sete Mulheres (2003).  Esses argumentos são coisa dos reacionários de extrema-direita, só faltou falar em cultura woke ou lacrolândia para fechar o pacote.

Houve várias reações às falas de Fragoso, mas cabe citar o que disse Fabrício Boliveira, protagonista da novela das sete: "Ele não mora no Brasil, né? Ele não olhou para a história dele nem para a história desse país. Só pode ser isso. Não dá para lidar com tanta ignorância hoje, em 2024" (...)  "Boliveira foi além e disse que apenas alguém com o perfil “cis, hétero e branco” teria essa perspectiva "ou gente que ainda está grudada ali no passado e não entendeu que estamos caminhando para um outro lugar", afirmou. "É realmente um lugar [posicionamento] de mimado, de quem sempre teve tudo e não quer de jeito nenhum compartilhar esse espaço".  

A graça é que o único comentário da matéria é de um cara concordando com Thiago Fragoso e dizendo que a Globo perdeu 70% do público de suas novelas por colocar negros e gays no elenco.  Há quem fique de mi-mi-mi, caso de Thiago Fragoso e quem veja guerra cultural em tudo.  Mas veja que é o que eu escrevi sobre Gabz, se a novela vai mal, não é culpa de uma trama problemática e/ou pouco atraente, ou das intervenções cada vez mais arbitrárias de quem comanda a produção das novelas, competição do streaming etc. é dos negros, dos gays, das trans etc.  Aposto, aliás, que esse mesmo comentarista deve ter xingado Niko e Félix, só está concordando com Thiago Fragoso, porque o que ele disse vem de encontro às suas crenças pessoais.  Aliás, que papelão do Thiago Fragoso vir reclamar de personagens gays... 

Uma matéria da CNN comentando o protagonismo negro trouxe o seguinte dado: "Segundo estudos da UERJ, entre 1994 e 2014, apenas 10% dos personagens principais eram interpretados por atores negros. Mesmo nos anos 1990, grandes novelas como “Rei do Gado” (1996) não contavam com atores negros no elenco principal."  Ainda assim, somente este ano tivemos esse marco inédito de três protagonistas negras.  Para meninas e meninos negros é importante que eles se vejam nas produções de TV, cinema e outras.  Só não vê importância nesse tipo de coisa, quem sempre foi representado.

O fato é que o Brasil sempre pareceu mais branco em nossas telenovelas.  Agora, as coisas começaram a entrar em sintonia com o que vem os na realidade social.  E cabe observar quem se sente incomodado e por qual motivo.  E a quem esses incomodados culpam quando as novelas não vão bem.  Concluindo, eu estou preocupada com Vale Tudo, mexer com uma novela monumento, com uma obra que, para muitos, beira a perfeição é chamar para si a atenção.  Espero estar errada, mas imagino que teremos muito racismo destilado nas redes no ano que vem.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Ookami Ouji to Usotsuki na Kekkon: novo mangá da revista Hana to Yume é destaque no Comic Natalie

O Comic Natalie deu destaque à estreia do mangá Ookami Ouji to Usotsuki na Kekkon (狼皇子と嘘つきな結婚), de Oto Hisamo, na revista Hana to Yume.  Fui procurar scanlations, mas o que temos é o primeiro capítulo raw mesmo, ele está todinho no Comic Natalie e junta traço bonito e dinâmico com uma história que parece promissora.  

O resumo é o seguinte: "A personagem principal é Aylin, a princesa do Reino de Ayus. Para salvar sua terra natal, que estava à beira do colapso devido a uma crise financeira, ela se casa com Ruslan, o príncipe do Império Eren, e se muda para o castelo do noivo, conhecido como “Castelo do Lobo”. Ruslan é sempre um cavalheiro e de fala mansa, enquanto Irina é forte, mas sempre falha. Porém, ele tem um lado oculto relacionado aos “lobos”..."

Sem conseguir ler nada, já deu para entender um pouco da dinâmica da série.  Nossa mocinha não queria casar, ela se submete, mas tenta se esquivar de qualquer intimidade com o noivo.  Só que a química entre os dois é enorme, tanta que eu até desejei que fosse um TL... 

Ruslan, claro, é um cavalheiro, como a descrição deixa claro.  Ele não força nada com a mocinha e, sendo HanaYume, isso pode ficar nesse chove e não molah por muito tempo.  Mas o fato é que a própria protagonista começa a ter ideias.

Com a média das mocinhas, Aylin é impulsiva e, acredito, tentou fugir.  Ela termina sendo salva por Ruslan, que está usando uma máscara.  Por qual motivo ele se disfarça?  Não sabemos, mas ele não esconde dela a sua identidade. Enfim, quando saírem as scanlations, tentarei olhar.  

Gostei do contraste entre a Aylin loura e Ruslan bem moreno.  É a ideia de que eles pertencem a povos diferentes reforçada visualmente.  

E, sim, espero poder voltar com os posts de lançamentos, mas estou com a vida muito corrida.

Shounen Jump aumenta o salário dos mangá-kas novatos

O Sora News trouxe uma matéria sobre a decisão da direção da Shounen Jump, a mais importante antologia de mangás do Japão, de aumentar os valores pagos aos artistas novatos.  A mensagem postada no Twitter é a seguinte: “Gostaríamos de informar a todos que o pagamento mínimo de manuscrito para mangás serializados ou one-shot na Shonen Jump foi aumentado, com efeito a partir de novembro de 2024.  Com base nos lucros de vendas recebidos dos leitores da Weekly Shonen Jump (edições impressa e digital), continuaremos a fazer tais reservas no futuro para produzir melhores ambientes de trabalho para os criadores da nossa revista.”

Com a mudança na tabela de pagamentos, os artistas receberão um mínimo de 31.350 ienes (US$ 206) por página colorida e 20.900 ienes (US$ 139,30) por página em preto e branco. Segundo o SN, "A grande maioria das páginas de mangá é publicada em preto e branco, e assumindo uma contagem média de páginas de 20 páginas por capítulo, isso daria 418.000 ienes em ganhos por capítulo/semana, o que se estende a 1.627.000 ienes por um mês com quatro edições, ou cerca de 21,7 milhões de ienes por um ano de 52 semanas."  

Que fique claro que é o pagamento para novatos, não estamos falando de mangá-kas experientes, muito menos dos figurões da revista.  Gostaria de ter uma ideia de qual o pagamento em outras revistas de menor tiragem.  E imagino que o artista, caso tenha assistentes, divida esse valor com os colegas.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Projeto que condena mulheres à morte e a ter filho de estuprador passa na CCJ e vem uma criatura me cobrar que eu fale de uma ameaça imaginária

Estamos nos 14 dias da campanha pela erradicação da violência contra as mulheres.  Ela começa no dia 25 de novembro (*post aqui*) e segue até o dia 10 de dezembro, que é o Dia dos Direitos Humanos.  Normalmente, faço um post no início da campanha e um no fim.  E isso por mais de dez anos, afinal, o blog é velho.  Ano passado, não fiz a postagem, mas acredito que não falhei na maioria dos anos.

Muito bem, hoje, terça-feira, foi aprovado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, uma PEC (Projeto de Emenda Constitucional) que reforma altera o artigo 5º da Constituição Federal para incluir a inviolabilidade do direito à vida “desde a concepção”.  Houve protestos, mas os manifestantes foram expulsos.  Esta PEC estava parada fazia mais de uma década, a proposta é de 2012, e é de autoria do infame Eduardo Cunha.  Passar na CCJ significa que os deputados viram a proposta como admissível, agora, ela vai rodar por outras comissões até ir à plenário.  Foram 35 votos a favor, todos de partidos de direita e de centro-direita, contra 15 contra.  Quem puxou a discussão para a CCJ foram duas deputadas Chris Tonietto (PL-RJ), a redatora, e Caroline de Toni (PL-SC), a presidente da CCJ.

Pela legislação atual, é admissível o aborto em três casos: estupro, risco de vida da mãe e inviabilidade extrema do feto (*caso da anencefalia*).  Somente esses três.  Se a PEC avançar, se ela não for considerada inconstitucional pelo STF, o aborto não será permitido em nenhum caso.   Você está grávida e pode morrer?  Problema seu, morra você e o feto.  Foi estuprada?  Ah, a vítima de estupro é sua irmã ou filha de 12 anos?  Lamentamos muito, mas ela será obrigada a levar a gravidez fruto da violência até o fim. Tanta gente querendo adotar um bebê?  É só aguentar mais um pouquinho.  Perdeu o bebê que esperava?  Que coitadinha que nada!  Fazer curetagem?  Quem me garante que você não abortou?  Vai primeiro se explicar com a Justiça e depois a gente conversa. Gravidez ectópica?  Desculpe, temos que esperar um aborto espontâneo.  Você está com medo de ter hemorragia e morrer ou perder seu útero?  Torça para isso não acontecer, afinal, temos que pensar na criancinha que está dentro de você. Pesquisas com células tronco?  Não pode.  Inseminação artificial?  E o direito dos embriões?  Não pode, tambémTUDO É ABORTO, TUDO É ASSASSINATO.

Essas situações trágicas já estão sendo vivenciadas em vários países.  Mulheres que sofrem perda gestacional podem pegar trinta anos de cadeia em El Salvador.  Todos os outros casos descritos já viraram lugar comum em alguns estados norte-americanos desde o fim da Roe vs. Wade.  Não fiz nenhum post aqui no blog, mas tenho vários no Instagram e Facebook, mas essa PEC é uma nova investida da extrema-direita contra os direitos das mulheres, meninas e pessoas que gestam.  Os deputados recuaram e o PL do Estupro foi arquivado depois de pressão das mulheres nas ruas e em outras instâncias, mas eles iam tentar de novo.  As mulheres terão que tomar as ruas novamente.

O autor é o @quinho_cartum
Não pensem que atacar os direitos das mulheres é cortina de fumaça, como as criaturas que acreditam que somente a economia move o mundo acreditam, na verdade, retirar direitos das mulheres é uma das principais agendas dos grupos extremistas de direita com influência do fundamentalismo religioso católico, evangélico e espírita kardecista.  É bandeira inegociável desses grupos.  

Eu decidi marcar essa data macabra, porque só desse troço chegar até a CCJ e avançar a gente já tem que lamentar e acender todas as luzes vermelhas.  Só que, para piorar, recebi um comentário de uma feminista radical trans-excludente (TERF), que me deixou tão furiosa, então, se eu não escrevesse, ou gravasse um vídeo, eu iria explodir.

Uma cambada de misóginos fazendo avançar uma pauta tenebrosa dessas contra as mulheres e meninas e vem uma criatura, neste mesmo dia, deixar comentário no meu post do dia 25 de novembro, no qual eu comentava violências REAIS contra as mulheres e meninas,  cobrando que eu desse destaque ao SUPOSTO ataque aos espaços exclusivos para mulheres, o que significa me posicionar contra as mulheres trans (*ela usou uma sigla que eu nunca tinha visto, deve ser jargão desses grupos de fanáticas*).  Querer que eu fale de banheiro trans e do fantasma das mulheres trans nos esportes femininos em um momento como esse é muita insensibilidade, muita falta do que fazer, muita alucinação ideológica.

Vejam só, quem está liderando essa violência contra as mulheres e meninas no Congresso não são Erika Hilton e Duda Salabert, mas duas deputadas mulheres cis. E elas sabem o que estão fazendo, elas têm prazer no que estão fazendo, isto é, semear mentiras, pânico moral e abrir caminho para que mulheres e meninas cis sejam ainda mais discriminadas e sofram cada vez mais violência.  E vem aqui me cobrar que eu fale de BANHEIRO?!  Em que mundo essas feministas, porque não lhes tirarei a carteirinha, vivem?  

E ainda me sugere leitura de um livro, A Criação do Patriarcado da Gerda Lerner (1920-2013), que é bibliografia básica para qualquer feminista e que, muito provavelmente, eu já tinha lido em inglês quando essa pessoa ainda estava no jardim de infância. E duvido que a Lerner fosse abraçar esses discursos de ódio travestidos de preocupação com mulheres e meninas (cis).  E, junto no comentário, ainda me deixa o endereço de um perfil desses que destila ódio e desinformação.  Se eu publico o comentário, estou ajudando na divulgação desse pessoal.  E só de olhar a página, porque eu fui até lá, eu imagino que é a nova casa, com outro nome, provavelmente para fugir de processos, de um conhecidíssimo perfil TERF que chegava ao nível de falar em "ideologia de gênero" como se isso existisse.  

Essas feministas que consideram as mulheres trans e pessoas não-binárias como suas maiores inimigas (*vejam bem, não o patriarcado, mas pessoas trans*), terminam se juntando com a extrema-direita para passar pautas desumanas, e, no fim das contas, estão semeando a sua destruição, ou a nossa, porque começam com as trans e chegarão nas mulheres cis, porque nos odeiam a TODAS,  E é isso, aqui, no Shoujo Café, eu gasto meu tempo discutindo coisas sérias, ou que me deem prazer.  A escolha é minha, inclusive de publicar, ou não comentários.

ATUALIZAÇÃO - 28/11: A pessoa voltou e deixou isso aqui.  Nenhuma palavra sobre a PEC, só ódio contra as mulheres trans e, claro, a audácia de dizer que eu não entendi Gerda Lerner.  😉  Me lembrou a J.K.Rowling e seu silêncio sobre a derrubada da Roe vs. Wade.  Há coisas mais importantes para as mulheres, não é mesmo?  A raiz da opressão feminina não é o patriarcado, mas as mulheres trans, banheiros inclusivos e coisas do tipo. 



Autora de Firefly Wedding será esponsável pelo design das personagens de anime que estreia em 2025

A Shogakukan anunciou segunda-feira que a série The Dinner Table Detective (Nazotoki wa Dinner no Ato de/謎解きはディナーのあとで), de Tokuya Higashigawa, ganhará uma série animada no ano que vem.  O character design da série será de Oreko Tachibana (Firefly Wedding, Promise Cinderella).  Bem, é questão de tempo para que Firefly Wedding (Hotaru no Yomeiri/ホタルの嫁入り) receba um anime, ou dorama, de repente, será até no ano que vem. 

A história da série se passa em Kunitachi, Tokyo, onde Reiko Houshou, filha do dono do mundialmente famoso Houshou Group, é uma jovem detetive. Seu chefe é o inspetor Kazamatsuri, filho do dono da Kazamatsuri Motors. Os dois trabalham para resolver casos difíceis. Ao lidar com seus casos, Reiko sempre consulta seu mordomo e motorista Kageyama, que acaba sendo franco e abrupto com as palavras, mas sempre consegue resolver o caso de forma brilhante.  A série de livros já inspirou uma peça de teatro, uma série live-action em 2011, especiais live-action em 2012 e 2013 e um filme live-action em 2013.

Eu não conhecia o material, nem consigo ligar esse resumo a um restaurante.  Será por causa do mordomo?  Esses detetives são ricaços que trabalham como passatempo?  Enfim, a série começou a ser publicada em 2007, e a Shogakukan publicou três novels em 2010, 2011 e 2012.  As informações vieram do ANN e do Comic Natalie.

Fumi Yoshinaga estreia mangá sobre um grupo de jovens talentos em busca do estrelato

A fabulosa Fumi Yoshinaga, uma das grandes ausências no mercado brasileiro, estreou novo mangá na revista Cocohana.  Segundo o Comic Natalie, Talent (タレント) começa no final do século XX e irá se estender por mais de 15 anos da vida de quatro jovens atores talentosos.  Quem deles chegará ao estrelato?  Quem chegará ao topo?  Por enquanto, é o que sabemos da série.  E, sim, uma série que começa no fim do século XX, já é uma série histórica, afinal, já estamos chegando na metade da segunda década do século XXI.

O CN também comenta que a última edição da Cocohana trouxe a informação de que teremos um anúncio relacionado ao mangá Gintarou-san Otanomi Mousu (銀太郎さんお頼み申す) de Akiko Higashimura.  Imagino que seja um dorama.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Saiu o guia "Kono Light Novel ga Sugoi!" 2025 com as melhores light novels do momento no Japão

Começou a temporada de listas de melhores e mais vendidos.  Nunca tinha postado a Kono Light Novel ga Sugoi! (このライトノベルがすごい!), algo como Esta Light Novel é Legal!.  Trata-se de outro guia da editora Takarajimasha, a do Kono Manga ga Sugoi!, e existe desde 2004.  Eu só passei a ler light novels recentemente, então, nem entendo direito as categorias desse guia, mas acredito que há uma parte dos melhores das livrarias, isto é, em formato papel; outra das light novels, que devem ser em formato digital, principalmente, e há listas de melhores personagens femininas e masculinas.  Em 7º lugar está uma série que teve animação este ano e que é muito boa, Loop 7-kaime no Akuyaku Reijou wa, Moto Tekikoku de Jiyuu Kimamana Hanayome Seikatsu o Mankitsu Suru (ループ7回目の悪役令嬢は、元敵国で自由気ままな花嫁生活を満喫する) ou 7th Time Loop: The Villainess Enjoys a Carefree Life Married to Her Worst Enemy!, seu título em inglês.  Preciso terminar de assistir.  Fiz resenha de vários episódios (*1 - 2 - 3*) e comecei a ler as novels.

O problema é que a página oficial traz um top 10 e mais colocações posteriores que não fazem muito sentido.  Para quem quiser, o guia tem perfil no Twitter.  Eu traduzi os títulos todos e, quando tinha mangá shoujo ou josei, marquei como para o público feminino, mas aviso que pode não ser bem assim.  O selo da light novel nem sempre casa com o mangá que sairá depois, ou concomitantemente, porque essas novels, às vezes, começam on line em sites nos quais as editoras peneiram possíveis sucessos.  De qualquer forma, segue a lista:

1. Madougushi Dahlia wa Utsumukanai ~Kyou Kara Jiyuu na Shokunin Life~
2. Tensei Shita Daiseijo wa, Seijo de Aru Koto wo Hitakakusu: A Tale of The Great Saint (shoujo)
3. Akuyaku Reijou wa Dekiai Route ni Hairimashita!? (shoujo)
4. Mahotsukai No Hikkoshi Ya Yusha No Inkyo Ryu No Tabidachi Maho Toshokan No Iten, Donna Irai De Mo Omakasekudasai
5. Koi Shita Hito Ha, Imoto No Kawari Ni Shindekure to Itta。 ―Imoto to Kekkon Shita Kataomoi Aite Ga Naze Imasara Watashi No Moto Ni? to Omottara― (shoujo)
6. Nageki No Borei Ha Intai ~Shitai Saijaku Hunter Niyoru Saikyo Party Ikusei Jutsu~
7. Loop 7-kaime no Akuyaku Reijou wa, Moto Tekikoku de Juukimama na Hanayome Seikatsu wo Mankitsu Suru (shoujo)
8. Hikikomori VTuber Ha Tsutaetai
9. Tensei Shitara Slime Datta Ken
10. Kage no Jitsuryokusha ni Naritakute!
12. Yagate Eiyuu ni naru Saikyou Shujinkou ni Tensei shitakedo, Boku ni wa ni ga Omokatta you desu
13. Zemmetsu Endo o Shinimonogurui de Kaihi Shita。 Patei ga Yanda。
14. Futsu Ota Hairimasen! 〜Gakeppuchi Seiyu, Radio De Jinsei Restart!〜 (yuri?)
20. Fukushoku Shi Ruchia Ha Akiramenai〜 Kyo Kara Hajimeru Ko Fuku Keikaku〜 (shoujo?)
21. Tensei Shita Daiseijo wa, Seijo de Aru Koto wo Hitakakusu: ZERO (shoujo)
23. Kakushite Shonen Ha Meikyu Wo Kakeru Goyoku No Meikyu to Shakkin Mamire No Shimmai Boken

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

25 de novembro: Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres

Em 1981, durante o Primeiro Encontro Feminista da América Latina e Caribe, realizado em Bogotá,  foi estabelecida a data de 25 de novembro como Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres.  Trata-se do ponto de início de uma campanha que termina no dia 10 de dezembro, Dia dos Direitos Humanos.    

A data foi instituída em memória das irmãs Minerva, Pátria e Maria Tereza Mirabal, chamadas  de “Las Mariposas”, em 25 de novembro de 1960, pela ditadura de Trujillo, que governava com mão de ferro a República Dominicana.  Falei delas aqui.

Esta data é muito importante como um alerta e para a mobilização da sociedade civil e dos Estados.  E, aqui, cabe destacar que, no dia 14, a ONU votou uma resolução pela erradicação da violência contra as mulheres.  O Afeganistão não estava presente (*por motivos compreensíveis*), houve treze abstenções (*incluindo no grupo Rússia, Coreia do Norte e Irã*) e a Argentina votou contra.  Foi o único país.  Pense em uma nação que assume uma posição contrária à erradicação da violência contra as mulheres.  Sim, existe.

Na verdade, com a ascensão da extrema-direita, os direitos das mulheres estão em risco e não por causa das mulheres trans, alvo preferencial das lideranças extremistas, mas em virtude da misoginia inerente a essa corrente política.  Por isso mesmo, o governo Milei, que abraça integralmente o pior do discurso extremista de direita, se posicionar de forma tão clara e desavergonhada, inclusive, perseguindo e difamando as escritoras do país.  Sim, censura baseada em pânico moral, não se enganem com esse papo de liberdade.

No Brasil, temos recordes de feminicídio.  Dia sim, outro também, a gente abre a internet e vai contando os casos.  Quer um exemplo?  Veja o caso da empresária morta pelo ex com cinco tiros na rua 25 de Março, em São Paulo.  No meio da rua mesmo.  Hoje, há uma matéria no Correio Braziliense com o seguinte título "17 milhões de brasileiras já viveram ou vivem risco de feminicídio".  Duas em cada dez mulheres já foram ameaçadas de morte pelo companheiro.  Somos o quinto país do mundo em número de feminicídios.  Claro, a gente está contando as vítimas, há países que não contam.  Ainda no CB, há outra matéria que diz que "85% das mulheres negras que sofrem violência doméstica convivem com seus agressores".  Com filhos, sem renda ou recebendo muito pouco, essas mulheres não tem para onde ir, nem uma rede de apoio.

Houve um ano em que eu fiz um post por dia, até o dia 10 de dezembro, mostrando como a violência contra mulheres e meninas é algo real.  Não sei se consigo fazer isso de novo, seja por não ter estômago, seja por não ter tempo, mas gostaria de marcar a data e sua importância.  Não pensem que estamos avançando em relação aos direitos das mulheres, na verdade, há uma guerra aberta contra nós e vivemos, sim, um momento de backlash, isto é, de retrocesso.

Shoujocast no Ar! Nina the Starry Bride – Episódio 7: Já estão começando a gostar do Sett?

Continuando a nossa série de reviews do anime Hoshifuru Oukoku no Nina (星降る王国のニナ), ou Nina the Starry Bride, baseada no mangá da mangá-ka Rikachi e que está disponível no Crunchyroll.  Chegamos ao episódio 7.  Sett começa a se aproximar de Nina e permitir que ela se relacione com ele de alguma forma.  A protagonista é levada para a capital do reino de Galgada e conhece os irmãos de Sett: Yoh, Bidoh e Toat.  Já em Fortuna, uma grande reviravolta acontece...  (E acabou entrando depois de meia-noite, porque eu subi o arquivo errado. 😔 Desculpem o letreiramento no final, mas ainda não aprendi a usar o Shot Cut direito.)

domingo, 24 de novembro de 2024

Comentando o livro Ainda Estou Aqui: o valor da memória e da justiça na trajetória de uma Antígona Moderna

Terminei ontem de ler Ainda Estou Aqui, a autobiografia de Marcelo Rubens Paiva, livro que ele escreveu motivado pelos protestos de 2013 e meio que antevendo que coisas ruins poderiam vir daí.  Só li por causa do filme, coisa que sempre foi comum na minha vida desde a minha adolescência.  Já perdi a conta dos livros que li por causa de filmes, séries, desenhos animados e mesmo telenovelas.  Por isso  sou tão defensora das adaptações, mesmo quando elas não fazem justiça ao original.  Afinal, quando uma obra vai para outra mídia, encontra um novo público.  Obviamente, em tempos emburrecidos e embrutecidos como os nossos, há quem ame a adaptação e diga que quer distância do original chato.  Vi isso quando a Netflix patrocinou aquele filme deplorável baseado em Persuasão.

Antes de ir para o livro, vamos a um resumo do drama da família de Rubens Paiva (1929-1971), que deu base ao filme inspirado no livro e que mudou a vida do autor, na época, um menino de 11 anos.  Brasil, 1971, auge da repressão da Ditadura Militar (1964-1985), o AI-5 de 1968 tinha criado um ambiente de total liberdade para que os agentes do regime praticassem toda sorte de violência. A vida de Eunice Paiva (1929-2018) e seus cinco filhos muda abruptamente após o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, que tinha somente 41 anos.  Eunice terá que lutar para manter a memória do marido viva, lutar para que o Estado reconheça o crime cometido por seus agentes, enquanto se desdobra para manter sua família unida e terminar de criar seus filhos.

Ainda Estou Aqui, lançado em 2015, não segue uma cronologia.  Ele vai e volta no tempo, começa quase no presente, com Eunice já sofrendo com Alzheimer, discute a doença, como funciona a memória.  Vai costurando as lembranças de Marcelo Rubens Paiva sobre sua infância mais recuada, fala da fazenda do avô Paiva, avança para sua adolescência e juventude, o fato de ter se tornado o "homem da família" com o desaparecimento do pai.  A mãe o lembrava disso várias e várias vezes, ainda que, a julgar pelo livro, a pressão psicológica não tenha se revertido em uma delegação de poderes por parte da mãe.

Entrelaça suas experiências pessoais, seus dramas com a própria história do país e o drama de sua família: o desaparecimento do pai, a luta da mãe para tê-lo de volta ou que seja reconhecido como morto, o direito negado de enterrar alguém querido que é como nos congela no tempo.  O livro fala da educação e formação de Rubens e Eunice, de como eram pessoas notáveis, brilhantes até, mas representativas de sua classe social e geração.  Eram falhos e limitados, eram humanos.

Agora, é fato que, em condições normais, não leria Ainda Estou Aqui.  Não tenho interesse pelas experiências de adolescente e jovem de classe média nos anos 1970-80 de Marcelo Rubens Paiva.  Seus amores, suas primeiras experiências sexuais, a leniência da mãe em permitir-lhe que consumisse álcool, drogas e dirigisse sem carteira sendo menor de idade, tampouco a cantilena de que eles viviam em condições econômicas difíceis.  Claro, para quem foi classe média alta, de repente virar, talvez, classe média baixa é um choque.  Ainda assim, a vida dele não foi nem de longe difícil no sentido econômico da coisa.

O livro é, portanto, feito de altos e baixos para mim.  Não me interessam as experiências e picardias juvenis do autor, não vou mentir, mas gosto muito quando se fala de Eunice, da família Paiva como um todo, do painel da classe social a qual pertenciam.  Progressistas, sim, membros de uma elite intelectual, mas cheios de (pre)conceitos da sua época.  O autor mostra o quanto sua mãe era forte, lutadora, mas machista na sua permissividade com o filho homem, que as filhas não recebiam.  De como foi tirado de uma escola construtivista moderna e colocado em uma escola pública, porque, nas palavras do autor, os pais não queriam que ele fosse bicha.  

Há toda uma discussão na primeira parte do livro sobre a masculinidade e como Rubens Paiva fez pouco caso da esposa quando ela disse que poderia trabalhar. "Vai abrir uma butique em Ipanema?".  Não, ela acabou se tornando uma jurista respeitada internacionalmente e uma especialista em direitos indígenas, alguém que nunca aceitou ser vista como vítima, ou coitada.  Marcelo Rubens Paiva fala de como a mãe nunca chorou na frente dos filhos, como nunca admitiu publicamente a morte do marido, de como se trancava no quarto e derramava lágrimas sozinha.  Ela poderia ter se casado de novo, recebeu propostas, inclusive de amigos da família, mas ela não queria voltar a ser a dondoca, a dama muito educada, poliglota, que sabia fazer um suflê maravilhoso.  O autor não a descreve como feminista em nenhum momento, mas, nas suas contradições, Eunice encarnou uma série de ideias que eram, sim, defendidas pelas várias vertentes do movimento.

Mais de uma vez, o autor comenta o quanto a mãe culpava o pai por não ter se exilado, por não ter pensado na família primeiro.  Em segredo, Rubens Paiva ajudava perseguidos.  Esse "ajudar" motivou a sua morte. Ele conta que a mãe nunca foi convencional como outras mães, que os mimos e afagos vinham das tias, das avós e, infiro pela leitura, do pai.  Rubens Paiva é descrito pelos filhos e por outros como um homem sempre sorridente.  Sei que alguns acharam a representação de Rubens Paiva feita por Selton Mello meio exagerada, mas, a tomar pelo livro, era aquilo mesmo.

Algo muito importante, pelo menos para mim, é que Eunice nunca defendeu vingança, ela queria justiça.  Quando a Comissão da Verdade desvendou a morte de de Rubens Paiva, esmiuçando os detalhes e os culpados, em 2014, Eunice já estava em estado avançado da doença.  Agora, ela e outros juristas questionavam a Lei de Anistia (1979), porque ela era contra acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.  Crimes contra a humanidade não prescrevem, a prisão, tortura e execução de Rubens Paiva contrariava, inclusive, as leis do próprio regime militar, ou seja, estava tudo fora da lei.

Enfim, estou me estendendo demais. A gente vê dentro do livro o material que foi usado para o filme.  Ela está disperso nos seus vários capítulos, então, o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza e mais que justificado.  O suflê, por exemplo, só aparece bem no final.  A frase "Ainda Estou Aqui" está no último capítulo.  Ela passou a ser repetida por Eunice já quando estava no estágio III do Alzheimer.  Ela nunca entrou no último estágio da doença.  

A descrição de Eunice doente foi perfeitamente encarnada por Fernanda Montenegro.  O autor descreve e eu vejo a atriz nas cenas.  Não a há colocaram alongando os dedos do filho, Marcelo Rubens Paiva ficou tetraplégico, algo que ela fazia mesmo depois de parecer ter se esquecido de tudo.  Eu queria muito essa cena no filme, porque foi uma das descrições mais tocantes do livro.  A angústia do vazio causada pela doença e a ternura de um gesto que a mãe fez por mais de trinta anos permanecendo


Pelo filme, imaginava Vera mais velha, talvez com 18 anos, mas ela tinha somente 16.  Não tinha terminado o colegial quando foi para a Inglaterra.  Não acredito, pelo livro, pela Eunice que temos lá, que sua filha educada no Colégio Sion ficasse solta pela cidade como o filme mostra.  Ainda mais sabendo o risco que ela corria.  No livro, Marcelo fala mais de si e da mãe, o pai é central, claro, mas todas as demais personagens são coadjuvantes, então, não sabemos muito das irmãs.

Quando fala da infância antes do desaparecimento do pai, o autor fala de como o Leblon era diferente, não se parecia com o das novelas do Manoel Carlos.  Havia uma grande favela no bairro, que era mais de casas e sobrados do que de prédios.  Os meninos se misturavam e brincavam juntos.  Só que, um dia, a Favela do Pinto pegou fogo.  Incêndio suspeito.  Destruída, seus moradores foram removidos, assim como os que moravam em outra favela à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas.  No lugar da favela do Leblon, construiu-se um grande condomínio habitado, principalmente, por oficiais do Exército.


O roteiro do filme selecionou pedaços do livro, os reorganizou, simplificou.  Algumas mudanças não me agradaram.  Cortaram os avós, as crianças deixadas trancadas pelos agentes com a empregada.  Eles não tinham chave, os avós maternos vieram com a chave reserva de São Paulo.  A missão de Marcelo, que foi mandado escondido, quando os agentes estavam na casa, pela mãe para avisar uma vizinha de que quem viesse até a casa seria preso.  A cena ficaria ótima no filme, há coisas do livro que mereciam estar lá.  

Trata-se de um desejo, claro, não de uma crítica.  Não vi exclusões que possam ser acusadas de nada para além de simplificação e necessidade de criar impacto emocional.  Na média, o filme resumiu muito bem em imagens e diálogos uma série de questões, como o fato de Eunice não ter acesso aos bens do marido.  Ainda que não a tenha mostrado tendo que ir trabalhar.  Imagino que há mais material gravado, cenas que foram descartadas.  Não me surpreenderia se a Globo colocasse esse material em uma exibição em formato minissérie de Ainda Estou Aqui.

E o livro traz alguns documentos como apêndice, processos, relatórios.  Essa parte ocupa cerca de 15% da obra. A parte inicial muito focada no autor e as discussões sobre o Alzheimer me cansaram um pouco, mas não o suficiente para me fazerem parar de ler, eu simplesmente seguia em frente e terminei até comovida.  Não chorei, como não o fiz quando assisti ao filme, mas as descrições de torturas e outras cruezas da ditadura foram incômodas e tem que ser assim mesmo.  Eunice na sua busca pelo marido, da certeza sobre seu destino, do direito de enterrá-lo, ainda que simbolicamente, a torna uma Antígona moderna.  Negar a alguém o direito de enterrar os seus é algo extremamente cruel, porque trata-se de um direito humano mais básico.

A graça, ou a desgraça, foi que enquanto eu lia algumas das partes mais pesadas, veio à público a grande conspiração que quase nos enfiava em outro período de trevas.  Não tive como ter um afastamento crítico da obra.  Concluindo, o livro é bom e eu nunca li nada de Marcelo Rubens Paiva.  Nadinha.  Nem nunca assisti Feliz Ano Velho, o filme.  Para quem quiser o livro Ainda Estou Aqui, a versão Kindle, a que eu comprei, está em promoção no Amazon.

sábado, 23 de novembro de 2024

Shoujocast no Ar! Mais um Trailer da Rosa de Versalhes: Decepção e Ansiedade (Estou assim, que nem Oscar. 😆)

 

O novo filme animado da Rosa de Versalhes será lançado em 31 de janeiro de 2025, no Japão.  Esta semana, saiu mais um trailer, um bem completo e que nos dá ideia de como será o resultado final, ou será enganação? Este vídeo é uma análise-comentário desse conjunto de séries que nos deram.  Vamos assistir?

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Atualização do caso das Luminárias (tori) da Rua dos Aflitos, Afroturismo e Reparação Histórica

Encontrei uma matéria no G1 melhor que esta da Folha de São Paulo falando da retirada das luminárias (tori) da rua dos Aflitos, no Bairro da Liberdade. No fundo da rua, fica a Capela dos Aflitos e encontrei uma foto antiga do lugar, não tenho a data. Ela fala de Afroturismo, que é o turismo de rua com grupos guiados focado exclusivamente nos lugares importantes para a história dos negros e negras.  Há Afroturismo em várias capitais brasileiras, além do turismo de rua comum, mas, no caso de São Paulo, existe um projeto do governo do estado que visa promover rotas em várias cidades paulistas.  

A retirada dos tori, as luminárias, e eu não vejo como correto, não mudei de ideia, faz parte do projeto de revitalização chamado "Ruas Abertas Liberdade".   É projeto do Município de São Paulo, não é da iniciativa privada.  Assim como não é da iniciativa privada o Memorial que se pretende construir atrás da Capela dos Aflitos, onde era o antigo cemitério dos escravizados.  Aliás, segundo matéria da Veja de um ano atrás, a verba, que é de 4 milhões de reais, já está garantida e é estadual.  Vejam bem, um ano se passou e o que foi feito?  Somente a retirada das luminárias.

A História de uma cidade, de um bairro, de um país, é complexa e dinâmica.  Ela é feita em camadas.  O apagamento dos negros e indígenas precisa ser questionado, porém a ideia de reparação histórica que vi nos comentários de algumas pessoas, parece mirar a comunidade japonesa, que não escravizou, matou, ou apagou essa história negra local.  Há racismos, criou-se a ideia de que a Liberdade é o bairro japonês, ou oriental, o que seria mais correto hoje, mas a reparação histórica, e eu não gosto desse termo, não é responsabilidade do japoneses e seus descendentes, não é culpa dos tori, mas responsabilidade do ESTADO e SEUS AGENTES, que tentaram construir uma cidade negando suas raízes negras.  E os japoneses no Brasil sofreram um tanto por causa do racismo, por causa da 2ª Guerra, não é uma história fácil, também.

Aliás, se a Lei Feijó (1831), que proibia o tráfico, tivesse sido cumprida, se o Estado não fosse conivente, a escravidão teria terminado muito antes e milhares de pessoas não teriam sido feitas escravas, quando deveriam ser livres, tampouco seus filhos e filhas, netos e netas.  Tivemos que fazer uma segunda lei proibindo o tráfico negreiro, a Eusébio de Queirós (1850), e ainda uma outra, a Lei Nabuco de Araújo (1854), prevendo sanções para as autoridades que encobrissem o contrabando de escravos. 

Enfim, eu sou historiadora e não gosto de ficar brincando de palavras de ordem e discurso fácil por aí.  Tenho mais o que fazer e estou velha para isso, não tenho mais meus vinte anos.  Agora, quem quiser ficar atrás da história verdadeira do Bairro da Liberdade, como se as outras fossem falsas e não fruto de disputas e camadas, que corra atrás desse engodo.  Espero não ter que voltar a isso e desejo que o memorial fique pronto logo e a rua dos Aflitos seja revitalizada.  O vídeo do G1 está abaixo: