Há algumas adaptações importantes de Jane Austen para o cinema e a TV que eu não tinha resenhado ainda. Como estamos comemorando os 250 anos de nascimento da autora, decidi reassistir a Northanger Abbey de 2007 e finalmente fazer a resenha. Acho que de todas as adaptações de Jane Austen é a que eu considero mais fofinha, sim, o termo é esse. Primeiro, porque Catherine Morland, a mocinha da história, é a mais jovem das heroínas de Jane Austen, uma adolescente que está tentando descobrir qual o seu lugar no mundo. E o termo heroína está no livro mesmo. Segundo, porque Felicity Jones e JJ Feild ficam muito bonitinhos juntos. Sei que o filme faz alterações sensíveis em relação ao original, mas tudo flui tão bem que o filme termina sendo muito satisfatório mesmo. Segue um resumo bem resumido, para quem não conhece a história:
Quando Catherine Morland (Felicity Jones) tem a oportunidade de se hospedar com o Mr. e a Mrs. Allen (Desmond Barrit e Sylvestra Le Touzel), seus vizinhos abastados e sem filhos, em Bath, ela espera viver uma aventura como as que lê nos romances. Lé ela é apresentada à alta sociedade e conhece Isabella Thorpe (Carey Mulligan) e seu irmão John (William Beck), filhos de uma amiga da Mrs. Allen dos tempos de escola. Mais tarde, Catherine descobre que Isabella está noiva de seu irmão, James (Hugh O’Conor), e que ele e John são muito amigos. Em seu primeiro baile em Bath, Catherine conhece Henry Tilney (JJ Feild), um jovem bonito de família abastada, muito gentil, bem-humorado e que entende de mussellina. Henry flerta com Catherine e a menina se apaixona por ele, ao mesmo tempo em que é assediada por John Thorpe, que decide criar situações para atrapalhar um possível romance entre os dois, porque ele a quer para si.
Henry apresenta Catherine a sua irmã, Eleanor (Catherine Walker), que simpatiza com a jovem, e mesmo com os obstáculos criados por Thorpe, eles voltam a se encontrar. Catherine também conhece o irmão mais velho de Henry e Eleanor, Frederick (Mark Dymond), um militar arrogante que termina por se envolver com Isabella, que vê no jovem oficial um marido mais interessante do que James. Entre as mentiras que John Thorpe espalha, está a história de que Catherine é herdeira dos Allen e eles são mais ricos do que parecem. Só que por conta disso, o pai de Henry, o soturno General Tilney (Liam Cunningham), convida a jovem a visitar a Abadia de Northanger. E a pobre Catherine começa a delirar com os possíveis mistérios e segredos da Abadia e a curiosidade sobre a morte da mãe de Henry. Sua curiosidade, no entanto, termina por causar certa decepção ao rapaz, o que a leva ao desespero. Além disso, o que fará o General quando descobrir que a jovem não é rica como ele imagina?
Northanger Abbey é um dos romances menos lembrados de Jane Austen. Escrito por volta de 1798-1799, ele parece ter sido menos revisado do que outras obras da autora, como Razão e Sensibilidade (Elinor e Marianne) e Orgulho & Preconceito (Primeiras Impressões), que tiveram seus primeiros rascunhos feitos na mesma época. Northanger Abbey deveria se chamar Susan e foi vendido para um editor em 1803. Nunca publicado, foi comprado de volta em 1816, quando a saúde da escritora já estava declinando. Ela tentou aprimorar o texto, que foi publicado junto com Persuasão, seu último romance completo, em 1817. Mesmo com as modificações, os especialistas em Jane Austen, coisa que eu estou longe de ser, apontam que o livro, uma paródia dos romances góticos, muitos deles escritos por mulheres e que faziam muito sucesso na época, é bem irregular em comparação com outras obras da autora.
A protagonista, que começa a história com 17 anos, é leitora voraz de vários livros que traziam tramas cheias de mistérios, crimes, aventuras e até romances mais picantes do que o seria desejado para jovens solteiras da época. Essa ideia é muito forte no filme de 2007, porque Catherine sonha e tem devaneios se imaginando como a heroína dos romances que lê. Só que sua mente fértil e sua inexperiência dentro da sociedade, afinal, ela vivia uma vida relativamente modesta e retirada com a mãe, o pai e seus nove irmãos e irmãs no interior, ela não tem o traquejo social que os Tilneys e os Thorpes têm, a colocam em algumas situações embaraçosas.
Felicity Jones representou muito bem essa jovem heroína, porque ela dá à personagem a ingenuidade, curiosidade e um ar inocente e um pouco atrapalhado que a personagem pede. A atriz nem era uma adolescente, mas ela consegue convencer de que ainda era. Há quem aponte que Northanger Abbey é menos sobre amor e casamento e mais sobre o crescimento da personagem, que passa de menina a mulher, tratando-se então de um romance de formação (Bildungsroman, em alemão). Nesse aspecto, o roteiro de Andrew Davies coloca mais ênfase na moça aprendendo com os acontecimentos e tira um pouco o peso de Mr. Tilney, que no romance age como alguém que está disposto a aprimorar a educação da heroína, inclusive sugerindo os livros "certos" para a moça.
Ele é homem, mais velho, teve acesso a uma educação muito superior, então, o paternalismo e a condescendência estão de acordo com as expectativas de gênero da época de Jane Austen. O filme não faz como em Emma (2020), que coloca Mr. Knightley e a protagonista em pé de igualdade, como se pudesse haver simetria entre eles. Ainda assim, o roteiro elimina muito daquilo que poderia tirar um pouco da simpatia de Mr. Tilney. Independentemente disso, eu o considero o mocinho mais bem resolvido de todos os romances de Jane Austen. Ele parece compreender seu lugar no mundo, ele protege a irmã, ele busca compreender Catherine, percebendo sua sinceridade, e não se deixa enredar nas armadilhas de Thorpe. Ele sabe se comunicar e gosta da moça. Tudo isso está no livro e permaneceu no filme. Henry Tilney é o anti-Edward Ferrars, só para lembrar do quão vulnerável é o mocinho de Razão e Sensibilidade. Aliás, eles partilham a mesma profissão, ambos são reverendos. E tudo isso no pacotinho do JJ Feild, que é muito simpático, bonito e charmoso. O que eu vou enfatizar sempre é que o Mr. Tilney desse filme é atenuado, mas não a ponto de ser descaracterizado.
O filme Northanger Abbey é curto, mas bem redondinho. Ele fez parte da The Jane Austen Season, que contou com mais duas adaptações no mesmo ano, Persuasão e Mansfield Park, além de uma reexibição de Emma (1996), que também conta com o roteiro do Andrew Davies. Aliás, traduzi um artigo recente no qual ele fala de seus próximos projetos no universo de Jane Austen. Davies tem um currículo absurdamente bom, mas, nos últimos tempos, ele vem colocando cada vez mais sexo e sensualidade em seus trabalhos. É dele, por exemplo, a ideia da camisa molhada de Mr. Darcy (Colin Firth) em Orgulho e Preconceito (1995). Dos três filmes do The Jane Austen Season da ITV, Northanger Abbey é o melhor e deve muito ao elenco afinado e ao roteiro de Davies.
Em Northanger Abbey, ele coloca a sensualidade que o mobiliza tanto, mas ainda sob algum controle, nos sonhos eróticos que a mocinha tem. Tudo muito leve para o que ele anda fazendo e pensando em fazer, mas ele traz para dentro da história um livro gótico mais pesado, O Monge (1796), de Matthew G. Lewis, que não está no original de Austen. Em Northanger Abbey, são citados vários livros, sendo o mais famoso, Os Mistérios de Udolpho de Ann Radcliffe. Encontrei um artigo chamado Seducing the Viewer: Sex, Power and Heightened Drama in Northanger Abbey (2007), de Vanessa E. Cook, na página da JASNA (Jane Austen Society of North America), no qual a autora defende que Andrew Davies usou essas passagens de sonho para dar livre vasão ao seu interesse de colocar passagens sensuais e para marcar a diferença de papéis de gênero entre homens e mulheres, com Tilney sempre em posição de ação, de poder, de intimidação sexual até e Catherine muito mais passiva e vulnerável do que nas interações reais dos dois, sendo mesmo uma passagem de estupro do livro O Monge transformada em excitante pela a imaginação da mocinha (*na verdade, do roteirista*).
Mas a discussão entre os dois, a cena em que os devaneios de Catherine são expostos, quando ela invade a área proibida de Northanger Abbey, os aposentos da falecida mãe de Tilney. A mocinha está convencida pela atmosfera gótica do lugar e pela disposição pouco amigável do General, que é temido pelos filhos, de que a mãe de Henry pode ter sido morta pelo marido. Essa ideia ofende profundamente Tilney e faz com que Catherine cresça, na medida em que percebe que ler é importante, mas não se deve arrastar pelas fantasias dos livros de sua preferência. Só que ela superdimensiona a decepção de Henry, que a ama muito mais do que ela imagina.
Se as interações entre Henry e Catherine são românticas e castas, não se pode dizer o mesmo de Isabella e Frederick. Mesmo antes de conhecer o Capitão Tilney, ela sempre parecia estar flertando com os rapazes e tentando conseguir o melhor partido possível. A moça termina sendo seduzida e abandonada pelo Capitão Tilney, porque, como Eleanor sugere para Catherine, o herdeiro de Northanger Abbey jamais iria se unir a uma mulher que não tivesse posses. Sendo assim, o sujeito nunca esteve disposto a ter nada sério com uma moça de posição tão inferior, economicamente falando, às de sua família, só queria se aproveitar dela e como a jovem é cabeça de vento como Lydia, terminou arruinada, já que não sabemos do seu futuro para além do que o livro e o filme nos contam.
Também falando em dinheiro, Eleanor, que é tiranizada pelo pai, vive um dilema de amar um sujeito (*que é grande amigo de Henry*) que não tem as posses que o General considera ideais para o futuro marido da filha. O próprio General Tilney se casou por dinheiro e é isso que ele espera que Henry faça, daí, seu interesse por Catherine. E o jovem, tanto no livro quanto no filme, deixa claro para a mocinha que sabe disso, que talvez, por ser o caçula, deveria pensar nessas questões ao escolher uma esposa, mas eis que a grosseria do pai, ao mandar Catherine embora sozinha no meio da noite, precipita a tomada de decisão do moço. Só que o filme dá mais capacidades a Henry do que ele tem no livro. Ele se insurge contra o pai, é expulso de casa, até porque ele tem sua própria casa, com gente que trabalha nas suas terras, não sei se é herança da mãe, de um tio, de quem é, o livro não explica. Eu acredito que ele ficava em Northanger, para tentar proteger a irmã da crueldade do pai, mas ele não pode fazer tudo o que lhe der na telha.
Enfim, no livro, Henry pede Catherine em casamento, consegue, inclusive, levá-la para passear a sós em Fullerton, onde ela mora, para se explicar. Pode ter-lhe dado o beijo como no filme, quem sabe? E ele vai voando mesmo, tão logo descobre a cachorrada que o pai fez com ela; no filme parece que a separação dos dois foi mais longa, mas pode ser impressão minha mesmo. No livro, foram míseros três dias. A família da moça aquiesce no passeio, mas não no casamento. Henry teria que ter a aprovação do pai em presença ou por escrito. Ela vem depois do casamento de Eleanor com um visconde, na verdade, o mesmo moço que ela ama, mas que herdara o título. É uma espécie de Deus ex machina, Austen gosta dessas coisas, usou em Razão e Sensibilidade, também.
Trata-se de uma resolução fortuita para que Eleanor seja feliz e possa interceder de cima para que o General ceda e aceite o casamento de Henry com Catherine, mesmo que ela não seja uma rica herdeira. No livro, ele estava tão satisfeito com o casamento da filha que pode permitir que o filho se comporte como um idiota, palavras de Austen. No filme, a família da mocinha aceita o casamento contra a vontade do pai do moço sem problema nenhum e chegamos até a ver o primeiro filho do casal. Somente depois disso, Eleanor se casa com o moço que ela ama e que ficou rico. A inversão, como pontuei, eleva Henry, mas o livro enfatiza o quanto a família de Catherine queria fazer as coisas do jeito certo e tradicional, mesmo acreditando que o pai do moço terminaria cedendo.
Duas curiosidades desse filme: Sylvestra Le Touzel, que faz Mrs. Allen, foi Fanny Price na melhor adaptação de Mansfield Park; e Carey Mulligan faz sua segunda coadjuvante em uma adaptação de Jane Austen, ela foi Kitty Bennet no filme Orgulho e Preconceito. Eu realmente lamento que a excelente Mulligan nunca tenha sido escolhida para ser protagonista de uma obra de Jane Austen, o tempo passou e, agora, não é mais possível. Ah! Outra curiosidade, JJ Feild está em Austenland, nesse filme que mostra uma norte-americana fanática por Austen em um parque temático da autora na Inglaterra, ele faz uma espécie de Mr. Darcy, um dos possíveis interesses românticos das mulheres que pagam para poder viver as suas fantasias. Recomendo muito. 😊
Enfim, Northanger Abbey é a única das obras principais de Austen sem minissérie, mas mesmo cortando e modificando coisas, o filme é muito simpático, bem escrito e bem executado. E Felicity Jones e JJ Feild são um casal muito fofinho e temos sequências muito boas dos dois ou deles com Eleanor. Além disso, Jones cavalga como uma dama e não como um homem. Em muitas produções mais contemporâneas, ninguém parece se importar com isso. E a cena dos dois andando a cavalo é bem romântica e tem uma sensualidade muito delicada, já no seu final. E temos beijo, beijos, na verdade, e mais bonitinhos por serem meio desastrados. Então, recomendo muito para todo mundo que assista a esta adaptação, porque eu duvido que fãs de Austen ou de histórias de época não irão gostar. Agora, meu desafio é assistir à adaptação horrível de 1987. Já está no meu HD esperando.




























































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Entrou p minha lista após esta resenha
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