domingo, 27 de abril de 2025

Comentando o Conclave (EUA/Inglaterra/2024): um filme primoroso e que guarda incômodas semelhanças com o momento em que vivemos

O melhor filme que eu assisti este ano foi Conclave. Comentei no Facebook, no Instagram, em algum Shoujocast (*da morte do papa, falei neste aqui*), mas faltava a resenha do filme e não posso deixar de fazê-la.  Conclave parecia um filme antecipando o que estava por vir, bom lembrar, no entanto, que o livro de origem é de 2016, cedo demais para afirmar que o autor estava se pautando pelos acontecimentos da época, afinal, Francisco tinha sido eleito em 2013, no entanto, as facções político-teológicas mostradas na película antecedem a eleição do falecido papa.  Muito bem, mas eis que Conclave parece um filme histórico e, não, uma ficção.  Quer ver só?   

Um papa progressista e marcado pela humildade, pobreza e acolhimento das minorias acabou de morrer.  Seu carmelengo, o cardeal britânico Thomas Lawrence (Ralph Fiennes), tem que gerenciar o conclave, mediando as tensões entre as várias facções e resolvendo alguns mistérios que podem inviabilizar a eleição de algum candidato.  Lawrence, ele mesmo um progressista, gostaria de ver eleito um papa liberal, mas seu candidato preferencial, o norte-americano Aldo Bellini (Stanley Tucci), não se mostra viável e o nome do carmelengo, que só quer se retirar da vida pública, começa a aparecer entre os mais votados.

Conforme progridem as votações, alguns segredos são revelados e cardeais favoritos são descartados um a um.  Enquanto isso, apesar da proibição de contato com o mundo exterior, os cardeais ficam sabendo de uma série de atentados que estão ocorrendo na Europa.  No meio da confusão e do medo, o nome do tradicionalista Goffredo Tedesco (Sergio Castellitto) se fortalece.  Ele está disposto a arrastar a Igreja Católica de volta aos tempos pré Concílio Vaticano II (1962-1965).  No meio da crise, no entanto, um cardeal misterioso, escolhido in pectore pelo papa para a Diocese de Cabul (Afeganistão) aparece como outra possibilidade. Vincent Benitez (Carlos Diehz) é uma incógnita, assim como o futuro da Igreja Católica que emergirá do Conclave.

Conclave é um filme que dá gosto assistir.  Visualmente, ele é primoroso, jogando por terra qualquer possibilidade de monotonia, mesmo com tantos homens vestidos de forma muito semelhante.  O cuidado com as minúcias das roupas, a forma harmônica com a qual os cardeais se deslocam, com ênfase na direção de arte e fotografia da cena com os guarda-chuvas, tudo é de encher os olhos.  E, hoje, tomei ciência de outro detalhe visual que me escapara.  Os crucifixos.  Os cardeais progressistas-liberais usam prata, os conservadores e reacionários usam ouro, já Benitez traz um crucifixo que imita madeira.  Ainda assim, cada uma das joias tem algo de particular, umas são mais elaboradas que outras, refletindo a personalidade de cada uma das personagens.  Lamento muito que Conclave não tenha recebido os prêmios que merecia no Oscar, deveria ter levado vários, roteiro adaptado não fez justiça a um trabalho tão meticuloso.  O trabalho de elenco impecável, a premiação do SAG é mais do que justa.  Quanto às injustiças do Oscar, o diretor de Conclave, Edward Berger sequer foi indicado.

Ralph Fiennes é central para o sucesso do filme.  Lawrence é o carmelengo, uma espécie de gerente-geral do Vaticano, por assim dizer, o posto é derivado de um cargo comum nas monarquias medievais, o prefeito do paço francês, quando morre o papa, é ele que fica como chefe interino da instituição.  É um peso enorme do qual Lawrence queria ter abdicado antes da morte do papa, que não aceitou sua decisão.  Vejam as coincidências, o atual carmelengo também é britânico.  Só que Lawrence tem alguns mistérios a resolver, ele recebe denúncia contra um dos principais candidatos, ele percebe que outro dos que estão na disputa tem algo a esconder, fora isso, seu auxiliar, o arcebispo  Raymond O'Malley (Brían F. O'Byrne), age como detetive, lhe mantendo inclusive informado dos atentados que estão ocorrendo pela Europa.  Lawrence só queria se retirar para uma comunidade monástica, mas tem que ser a consciência do Conclave e impedir que qualquer mácula caia sobre a instituição a qual dedicou sua vida.

E o trabalho de Fiennes foi minucioso e emocionante, ainda que seu papel fosse de contenção, afinal, o carmelengo não poderia surtar em nenhum momento do filme.  Lamento imensamente que o Oscar tenha ido para as mãos de um ator que aceitou que sua atuação fosse corrigida por inteligência artificial, enquanto um Ralph Fiennes se revezou em vários idiomas ao longo do filme.  Ele fala inglês, espanhol, latim e italiano.  Conclave me mostrou o quanto meu italiano ainda funciona, porque eu não precisei das legendas para compreender as conversas.  Quando Fiennes terá outro papel tão importante e de tanta qualidade?  Não sei.  Só sei que foi uma injustiça com ele e com os outros competidores.  Se o sujeito do Brutalista foi elogiado pelo seu domínio do húngaro, um dos fatores da sua aclamação, saber que ele foi ajudado deveria ser fator de desclassificação.

Há quatro papáveis no início do filme, de todos eles, Goffredo Tedesco é o mais pitoresco.  Tedesco é um tradicionalista, gostaria de restaurar o latim e, em determinado momento do filme, clama por uma cruzada contra os muçulmanos.  Ele é quase uma caricatura de italiano e vilão, ao mesmo tempo.  A sua entrada é triunfal com capa esvoaçante e toda a pompa que, na opinião dele, um cardeal precisa ter.  E ele trata mal seus subordinados, agride um dos padres que é seu secretário na frente de todos.  Ninguém gosta dele.  NINGUÉM, mas ele representa o discurso de volta ao passado, mesmo que imaginário, um lugar de segurança para aqueles que temem o futuro.  

Tedesco rende cenas muito boas, como quando ele reclama que antes (*décadas antes, na verdade*) todos os cardeais estariam se comunicando na mesma língua, o Latim, mas que, depois do Vaticano II, cada mesa se tornou uma ilha com cada grupo nacional, ou continente,  como no caso da América Latina (*espanhol*), meio que imerso em seus próprios assuntos. A abolição do Latim, pelo menos entre o clero, enfraqueceu a Igreja Católica; não é nenhum problema reconhecer isso. Quando Bento XVI permitiu o retorno do uso do latim nas missas, eu realmente me surpreendei que os padres, boa parte deles pelo menos, não soubesse latim e a maioria não fosse fluente no idioma.   Com tantos anos de estudo e preparação (*não se faz um sacerdote da noite para o dia*), acreditava que era a segunda língua de todo mundo, mas não é uma realidade.  Agora, a volta da missa tridentina (*do Concílio de Trento*) gerou outro problema, especialmente, em relação aos judeus, mas reacionários, na média, são antissemitas, então, é só a imagem da Igreja que é manchada mesmo.

O outro candidato importante é o que vem do continente africano, Joshua Adeyemi (Lucian Msamati).  É na África subsaariana que o catolicismo mais cresce e floresce, por isso, a ideia de um papa africano se torna cada vez mais aceitável, desde o concílio passado, aliás.  O nigeriano é um conservador, eu o chamaria de ultaortodoxo e cabe explicação.  A ortodoxia é o que a maioria dos fiéis de uma dada religião considera como correto e que deve ser cumprido.  Um ortodoxo joga dentro das regras, segue as doutrinas, tenta caminhar dentro daquilo que é aceito pela maioria.  Um ultraortodoxo por outro lado é um rigorista, ele vai além do que está prescrito.  Por exemplo, se o comum é fazer um dia de jejum por semana, um ultraortodoxo irá fazer dois ou três.  Adeyemi é particularmente apegado à questões morais, rejeita o acolhimento de LGBT+ e divorciados, além da participação das mulheres, claro, mas nenhum dos grupos quer falar das mulheres, nem os liberais.  Mais uma vez, Conclave caminha junto com a realidade, os candidatos africanos atuais são todos dessa linha.  Recomendo o excelente vídeo do canal Caçador de Histórias sobre esse assunto, ele é novinho.  

Adeyemi, no entanto, não será o primeiro papa negro.  Ele será derrubado por um segredo do passado.  É Lawrence que terá a dura missão de chamá-lo a um exame de consciência pelo bem da instituição.  Ao fazer isso, ele acaba puxando outro fio da teia que foi urdida por outro candidato, o canadense (*achava que era norte-americano*) Joseph Tremblay (John Lithgow).  Temblay é um conservador de conveniência e um sujeito muito rico e que usa seu poder político e econômico para se promover.  Lawrence sabe que há alguma coisa muito séria contra ele, porque O'Malley  o alerta que o arcebispo polonês Janusz Woźniak (Jacek Koman), que era muito próximo do papa, está sendo atormentado por algum segredo.  Só que Woźniak tem problemas com alcoolismo e Tembley poderia desqualificar sua palavra sem problemas.  

Lawrence, então, terá que quebrar algumas regras para conseguir resolver a charada e apresentar as provas necessárias para obstruir Tremblay.  Conforme as eleições progridem, e  depois da queda de Adeyemi, Trembley parecia ser destinado a ser o novo papa.  Para derrubar Trembley, Lawence conta com a preciosa ajuda da Irmã Agnes (Isabella Rosselini), a superiora da Casa Santa Marta, onde os cardeais estão hospedados.  Ela observa tudo, ela sabe mais do que muitos dos homens poderosos que acreditam decidir os destinos da Igreja e voltarei a falar dela daqui a pouco.  

Eu acreditava que o escândalo que desqualificaria Trembley seria sexual, mas, no fim das contas, ele também tem seu contraparte no mundo real.  Há um cardeal foi exonerado de suas funções pelo Papa Francisco por conta de um escândalo financeiro, ele tentou inclusive cooptar o Papa (*A audácia do meliante!*) e fracassou.  Agora, o picareta apareceu no Vaticano e reivindica direito de votação no conclave que elegerá o próximo Papa.  Como comentou um amigo, se colocassem uma personagem assim em qualquer filme, certamente diriam que a ficção estava exagerando demais. 😃 Trembley tem algo desse sujeito.  Conforme Lawrence e a Irmã Agnes expõem os podres dele, suas chances viram fumaça. 

E chegamos ao quarto papável, Aldo Bellini (Stanley Tucci), o norte-americano progressista e com ideias muito liberais para a maioria.  Ele era amigo do falecido Papa e de Lawrence.  No início, Stanley Tucci constrói a personagem como alguém que sofre com a perda e parece ser compassivo e gentil.  Quer ser papa para salvar o legado do antigo pontífice e não parece ter ambições pessoais.  É excelente a cena da reunião dele com outros cardeais progressistas, porque ele defende os LGBT+ e todas as minorias possíveis.  Agora, quando ele fala em dar mais espaço às mulheres, a maioria dos machos berra.  Dar poder às mulheres dentro da ICAR já seria demais!  O fato é que a candidatura de Bellini não decola e ele chega a culpar Lawrence, porque o carmelengo começa a aparecer, contra a sua vontade, é verdade, como um possível candidato da ala progressista e de quem quer evitar a eleição de Tedesco.  Ameaçado, Bellini começa a mostrar que não é tão virtuoso quanto Lawrence imaginava, mas que, assim como a maioria dos cardeais, é um político e tem seu preço.

E temos o azarão, o cardeal Vincent Benitez.  Quando ele chega ao conclave, ele surpreende todos.  Ninguém sabe quem ele é, mas o mexicano traz uma carta do finado Papa com a sua ordenação como Cardeal em Cabul.  Lawrence e Bellini ficam perplexos que a Igreja tenha uma diocese em Cabul, só que os documentos são verdadeiros.  Como consagrar abertamente um arcebispo para Cabul seria perigoso, Benitez é um cardeal in pectore, isto é, em secreto.  Segundo uma nota da Wikipedia, o que é decidido in pectore por um Papa se extingue com sua morte, salvo se tornado público antes.  O livro explica a situação, o Papa mudou a regra, mas o filme ignora e Benitez é aceito com estranheza por todos.

O fato é que Benitez representa todas as virtudes de um verdadeiro cristão, ele é humilde, compassivo, moderado em suas palavras.  Ele também é o único dos cardeais que sabe o que é uma guerra de verdade, pois, antes de servir em Cabul, ele esteve no Congo e em Bagdá.  Benitez se projeta, contra sua vontade, como uma alternativa ao belicoso Tedesco, depois que todos os outros candidatos perdem força.  Já entreguei quem será o papa, mas não entregarei o segredo mais importante em relação ao cardeal.  Aliás, eu gosto quando filmes me surpreendem e Conclave me surpreendeu em vários momentos.  Apostei que ele ia por um caminho e seguiu outro percurso.

E vamos falar das mulheres, porque há duas no filme que têm nome e alguma importância na trama. A Irmã Shanumi (Balkissa Maiga) está ligada à queda de Adeyemi, mas a personagem feminina de destaque é a Irmã Agnes.  Não contabilizei se Isabella Rossellini tem somente 8 minutos em tela, porque ela está em muitas cenas de forma silenciosa, o que é uma metáfora para o papel que muitos desejam que as mulheres ocupem na história do cristianismo.  Coloquei CRISTIANISMO, porque vale não somente para a ICAR, mas para a maioria das igrejas cristãs.  O silêncio tem muito significado e, às vezes, ela grita.  Agnes está na Casa Santa Marta para servir, garantindo o bem-estar dos membros do Conclave, mas ela vê e ouve tudo.  Quando forçada a se posicionar, ela é capaz de mudar os rumos do Conclave.  Negar isso é admitir que não prestou atenção ao filme.

Na época do Oscar, essa história de 8 minutos virou argumento para desqualificar Isabella Rossellini, como se coadjuvante precisasse de mais que uma única cena para merecer premiação.  O problema é que o ano foi de fraude de categoria, isto é, um monte de co-protagonistas sendo indicados como coadjuvante e levando prêmios.    Zoe Saldaña, vencedora do Oscar e de todas as premiações de coadjuvante da temporada, não era coadjuvante de Emilia Perez.  Ariana Grande, e eu a adorei em Wicked, também estava mais para co-protagonista.  Rossellini era de fato coadjuvante em um filme de homens e servindo de metáfora para a forma como a Igreja Católica segrega as mulheres à papéis menores, ainda que elas possam, como no caso do filme, exercer micro-poderes.  E, sim, onde há poder, há resistência.

De resto, Conclave é um filme político, porque para além de qualquer papel espiritual, a ICAR é uma organização política com muita influência no mundo e o papa é um chefe de estado.  As disputas retratadas no filme, as estratégias para vencer a eleição, as falcatruas até, são coisa que acontecem faz séculos.  Faltou, claro, as ameaças de morte, mas até chamamento para guerra santa rolou.  E se quiserem um filme com o mesmo nome, Conclave, e que eu acho tão bom quanto, procurem pelo de 2006.  É  uma produção alemã, se passa depois da morte do primeiro papa Borgia, Calixto III, e o conclave é  presidido por Rodrigo Borgia, futuro Alexandre VI, que foi carmelengo com apenas 27 anos.  Comparativamente, muito mais pobre de recursos, mas que entrega sua mensagem muito bem.  A resenha está aqui.

Concluindo, Conclave estreou no Amazon Prime exatamente no fim de semana da morte do Papa Francisco.  Foi uma coincidência chocante, que assustou algumas pessoas.  Agora, como uma forma de lucrar em cima do Conclave real que está para começar, o filme voltou aos cinemas.  E é um filme que merece ser assistido na tela grande, porque é de uma beleza visual impactante.  Como pontuei, foi um prazer assisti-lo, em especial, por falar de Cristianismo na sua essência em um momento no qual as pessoas parecem estar tão perdidas em torno daquilo que dizem ser o fundamento de sua fé.  eu colocaria Conclave junto com outros dois filmes brilhantes sobre a questão, A Última Tentação de CristoSilêncio.  É isso.  Você assistiu Conclave?  O que achou do filme?  O que espera do Conclave real que está para começar?

1 pessoas comentaram:

Eu AMEI Conclave. Talvez pela trilha sonora, cinematografia e rasteiras políticas, o filme me lembrou muito a série Succession. É muito bem sucedido em evocar um tom imperioso, austero e muito, muito elegante. Adoro produções que tratam dos bastidores da Igreja Católica - vide O Nome da Rosa.

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