domingo, 31 de julho de 2022

Comentando mais uma vez Além da Ilusão: E é só para reclamar mesmo!

Além da Ilusão está na reta final, a novela termina em 19 de agosto, e eu gostaria de registrar algumas coisas no que deve ser meu penúltimo texto sobre a trama.  Eu queria ter escrito mais sobre a novela de Alessandra Poggi, mas conforme o tempo foi passando, fui ficando meio desgostosa e mesmo assistindo religiosamente, talvez, mais criticasse do que elogiasse.  Comento no Twitter, mas só fiz cinco textos para o blog (*1 - 2 - 3 - 4 - 5*), sendo um deles focado no estupro que nunca foi tratado como tal e outro na proibição da prática de alguns esportes pelas mulheres.  No início, por contraste com a tragédia que foi Nos Tempos do Imperador, Além da Ilusão parecia melhor do que ela era de verdade.  O elenco é muito competente, mas as tramas foram se desgastando, especialmente, a envolvendo os protagonistas (Isadora, Rafael/Davi, Joaquim) e há questões muito complicadas e que são levadas ao ar sem nenhum senso crítico.  

O que me empurrou a escrever foi uma delas, a prisão de Emília (Gaby Amarantos), mulher preta, pobre, que  ousou sonhar demais e que cometeu crimes, como 80% do elenco da novela, mas foi ofendida em uma cena horrorosa ontem que enfatizou que ela estava presa por tentar dar um golpe em "gente de bem".  Se o termo "gente de bem" fosse usado com ironia, seria fácil de digerir, mas não é o caso, uma mulher rica e socialmente branca que no exato momento em que acusa Emília está enganando parte de sua família, tripudia sobre a outra como se fosse, como seu próprio nome diz, Santa (Arlete Salles).  De qualquer forma, o problema de Emília é ter a cor de pele errada.

Desde o início, me incomodou um tanto que a autora montasse um casal formado por uma mulher negra que tem sonhos, ela quer ser uma estrela, e que é lembrada o tempo inteiro que não saber o seu lugar, casada com um homem branco (Cláudio Gabriel), cujas virtudes, começando por se casar com alguém abaixo dele (*isso nunca é dito, mas branquitude é capital simbólico*), eram sempre exaltadas.  Eu entenderia se a autora construísse uma trama que confrontasse um homem conservador e conformado com seu lugar na sociedade e uma mulher que poderia viver com a cabeça nas nuvens, mas tinha um grande talento musical.  No entanto, ao longo de capítulos vimos Emília ser transformada em adúltera,  estelionatária e mãe relapsa para os padrões da época.  E, quando o marido finalmente se entrega a outra mulher, Giovanna (Roberta Gualda), ele acaba sendo visto como uma vítima das circunstâncias, afinal, ele foi traído e humilhado publicamente.  Agora, nas últimas três semanas, a autora vai nos dar uma redenção de Emília, mas que não irá reconstituir sua vida familiar, tampouco, apagar toda essa trajetória desastrada.  

Enquanto Emília, a mulher preta e pobre é punida, o mocinho da trama usa de identidade falsa para cometer uma série de delitos, como registrar filho, casar-se, entre outros, sem que em nenhum momento o próprio faça uma autocrítica.  Ele está fazendo isso "por amor".  Vejam bem, se Davi (Rafael Vitti) fosse apresentado como alguém que luta desesperadamente para provar sua inocência desde o início, palavra que eu comprava os crimes colaterais como uma necessidade estratégica, mas ao longo de mais de cem capítulos ele praticamente não se mexeu para provar que foi vítima de uma grande armação. Além disso, ele deixou de usar as provas que tinha para derrotar definitivamente seu inimigo, Joaquim (Danilo Mesquita), revelando seus crimes por motivos meramente egoístas e burros, logo ele, que é tão astuto.  Aliás, criaram-se outras situações nas quais o inteligente Davi agiu de forma tola, como ao não esconder os negativos no fundo falso do baú, simplesmente para atender aos interesses do roteiro.

É muito complicado, também, acreditar que Dorinha (Larissa Manoela) não ficaria abalada de verdade depois de saber da identidade do rapaz, que as suas dúvidas tenham sido rapidamente anuladas e, mais ainda, nunca tenha se questionado sobre a moralidade de Davi, que se deitou com sua irmã e com ela, que mentiu e cometeu crimes e não aprece ter se mexido para provar sua inocência.  Sim, há casos vários de viúvos ao longo da história que se casam com a irmã da esposa, mas os ingredientes de Além da Ilusão são um tanto indigestos, a começar com Dorinha sendo criança na primeira fase e todos repetirem a todo momento que ela é muito parecida com a falecida.  Estarei me repetindo, porque já escrevi isso em outros textos, mas Davi deveria ter ficado abalado ao conhecer Isadora, lutado contra o sentimento, mesmo sucumbindo depois, e não se apaixonado à primeira vista pelo duplo da morta e se jogando neste romance como um adolescente que, pelo menos na novela, ele está longe de ser.

Dorinha, como agravante, parece ter múltiplas personalidades.  Quando Joaquim falou que ela pode ter a doença do pai, eu até compro isso, porque ela vai de um liberalismo de costumes de fazer corar a maioria das feministas de sua época a um moralismo tacanha de abandonar o noivo no altar por ele ter se deitado com uma vedete, quando ela, que transou alegremente antes do casamento, estava brigada com ele e brincando de ser juventude transviada quase dez anos antes do fenômeno se tornar popular.  E a culpa não é de Larissa Manoela, que defende bem a personagem e recebe alguns dos textos mais cafonas da novela.  E ainda se casa com o vilão, que já tinha gritado com ela, falado contra seu desejo de ter profissão, a agarrado pelo braço, destratado pessoas mais humildes diante dela etc. etc. etc., e depois me vem com a história de que "ele mudou".  COMO ASSIM?  Por essas e outras que eu acredito que a personagem tenha algum transtorno.

Falando em transtorno, nas últimas semanas, a autora investiu pesado na redenção de Matias, personagem interpretado magistralmente por Antonio Calloni.  E este é outro ponto muito incômodo, porque Matias já tinha um caráter muito ruim antes de manifestar os sintomas de esquizofrenia e acabar perdendo a razão.  Eu achei um exagero acrescentar o estupro de Heloísa (Paloma Duarte), porque foi o que ocorreu, algo ao melhor estilo da sedução de Cécile por Valmont em Ligações Perigosas sem, muito provavelmente, o prazer que o libertino deveria saber dividir com suas vítimas, porque não deixavam de ser coagidas por chantagens e ceder.  Mas vai, ele foi o responsável pela desgraça de Heloísa com a perda de sua filha.  De uma hora para outra, Matias passou a admirar e mesmo amar a "criança que ninguém queria" e que o levou quase a matar a irmã de Inácio (Ricky Tavares), a bebê Clara (*que sumiu da novela*), em um surto em que acreditou que a menina era a filha de Heloísa.

A revelação da paternidade de Olívia, a excelente Débora Ozório, algo que iria ser feito de qualquer maneira, ainda teve a terrível forçação de barra de afirmar que uma pessoa deve receber doação de sangue de um parente direto.  Olha, poderia ser naquele momento mesmo, mas sem esse tipo de informação equivocada, bastava Matias berrar que queria salvar sua filha e que iria doar seu sangue.  E mais, da mesma forma que somos forçados a receber doses diárias sobre como a legislação ligada ao casamento era machista no caso Isadora-Joaquim, quando este casamento sequer deveria ter ocorrido, ainda temos a necessidade de tentar fazer analogias e links entre o momento político atual e o governo Vargas.  Em 1945, em plena abertura política, toda uma ênfase em luta contra a ditadura e gente, que deveria amar Vargas por conta das leis trabalhistas, indo para a rua protestar.  Nem irei falar de Tenório (Jayme Matarazzo), porque eu gosto desses rolos de padre angustiado porque se apaixonou, mas o cara demorar uma semana, pouco mais que isso, para tomar a decisão de largar a batina, e, depois, ir trabalhar de peão quando deveria ser o sujeito com a maior escolaridade da trama, me desgastam muito.  

Eu não me importo com redenção de personagens, mas Matias era tão perverso que a complacência com que ele é tratado nos últimos tempos e mesmo a relutância de Violeta (Malu Galli) em tomar providências contra ele são angustiantes.  Violeta não o crê capaz de ter feito o que faz com Heloísa, quando ela mesma desconfiou que ele havia matado Elisa, calando-se depois de uma ameaça, e quase sofreu um feminicídio.  E que ninguém me venha falar em "moral da época", porque a novela a dobra o tempo inteiro, fora que Violeta era chamada de feminista em 1934 e continua muito moderna para quase tudo, menos quando interessa ao roteiro.  Compreendo que as pessoas são complexas e contraditórias, mas há personagens nessa novela que oscilam ao sabor do vento.

Ninguém entende os motivos de Margôt (Marisa Orth) se associar à Úrsula (Bárbara Paz), ou a necessidade de transformar Iolanda (Duda Brack) em uma vilã.  Ainda temos excelentes personagens vivendo de esquetes cômicas, porque a autora não sabe bem o que fazer com elas.  Mariana (Carol Romano), por exemplo, que depois de ajudar Plínio (Nikolas Antunes) e Leopoldo (Michel Blois) continuou sendo tratada como pária, ou o núcleo de Arminda (Caroline Dallarosa), uma das melhores personagens da novela, mas que parece viver em uma novela em separado.  A trama do sheik, por exemplo, é algo muito indigente, fora o uso de estereótipos saídos direto da Arabland e que a gente não precisava ver em uma novela em 2022.  E isso nada tem a ver com o talento de gente como Paulo Betti, mas as escolhas feitas pela autora.  Fora isso, é incompreensível que não tenhamos mais radionovela, mas ela só tinha sido criada para construir um casal de homens que tinha a única função de mostrar que a novela era inclusiva, sem ser.

A novela continua gerando grandes momentos, há cenas que conseguem mobilizar a gente, como a volta de Bento (Matheus Dias), ou Heloísa finalmente revelando a verdade para Violeta e se culpando do que não é sua culpa, mas Além da Ilusão, pelo menos sua trama principal, andou em círculos.  A aparição de Nise da Silveira foi bonita, porque ver Glória Pires em cena é sempre bom, e pode ser importante para a trama de Leônidas (Eriberto Leão), mas, ao mesmo tempo, serve para tentar humanizar Matias.  Ele pode ser vítima de uma doença e do tratamento cruel que era a regra na época, mas ele é mau e cruel.  De resto, teremos mais três semanas de armações sem fim de Joaquim, Úrsula e Iolanda, com direito a roubo de criança, além da pobre Silvana (Thayla Luz) voltando para catar os cacos de Bento. 

 

Aliás, me pergunto se o fato de Lorenzo (Guilherme Prates) ter mentido que foi convocado para a guerra quando, na verdade, se alistou, vai ficar esquecido como o estupro sofrido por Davi.  E foi muito engraçado ver a pobre Manoela (Mariah da Penha), que é o membro número 1 do fã-clube de Joaquim, ser a criatura de bom senso a se espantar com a aceitação de qualquer coisa que Davi-Rafael fale ou faça por parte de boa parte do elenco.  Realmente, é preciso voar e voar muito para não se enervar com os rumos dessa novela, mas confesso que Paloma Duarte com o bacamarte ontem salvaria o capítulo inteiro.

Comentando Koko Kara wa Otona no Jikan Desu。outra vez: Finalmente, saíram mais capítulos! (+18/NSFW)

Em dezembro do ano passado, fiz uma resenha sobre o mangá Koko Kara wa Otona no Jikan Desu。(ここからはオトナの時間です。) de Tsukino Omame.  Como tinha tentado ler outros dois mangás dela e não tinha gostado, só fui dar uma olhada, porque a autora estava fazendo muito propaganda da série no Twitter.  Ela posta muitas ilustrações, agradecimentos, enfim.  Para quem não leu a primeira resenha, vou reproduzir a que está no Bakaupdates, como fiz da última vez:

""Eu gostaria que você dormisse comigo." No dia seguinte ao meu aniversário, o chefe que admiro me fez um pedido chocante. Eu concordei em querer ser útil a ele, mas... de repente ele me empurrou para baixo, e não se parecia em nada com ele!! Mikan Sasaki, uma office lady que pode ver espíritos, está muito preocupada com todos os espíritos malignos ligados ao Chefe Akutsu, por quem ela é unilateralmente apaixonado. Além disso, ela tem sentido uma presença verdadeiramente perversa entre eles ultimamente... Naquela mesma noite, quando ela estava bebendo no parque enquanto festejava seu aniversário sozinha, ele simplesmente passou e a trouxe de volta para sua casa... Ela então acordou sem nenhuma lembrança da noite anterior e seu chefe lindo dormindo ao lado dela!! Estou ferida e tem um curativo no meu joelho, o que significa que eu causei problemas para ele, certo...? Eu perguntei a ele o que eu poderia fazer para retribuí-lo, mas por algum motivo ele me pediu para dormir com ele!? Em seu quarto, em sua cama cheia de seu perfume, meu coração está prestes a explodir só de deitar ao lado de quem eu amo há muito tempo. Não acredito que estou tão perto dele, a quem sempre só observei de longe... Uma história de amor na hora de dormir sobre como um casal estranho que se aproxima um pouco mais a cada noite que passa."

Trata-se de uma série TL, de teen love, isto é, material erótico-pornográfico para mulheres.  TL é outra demografia, porque ainda que você possa ter sexo nos josei, e em alguns há muito, neste tipo de mangá, o sexo é central.  Por isso mesmo, Koko Kara wa Otona no Jikan Desu。é curioso, porque estamos no capítulo 16 e sexo não houve ainda.  A autora desenha muito bem, usa ângulos pornográficos, o casal protagonista chegou quase lá algumas vezes, mas nossa mocinha continua virgem, ainda que o capítulo 16, o último traduzido, termine com o mocinho, que é uma criatura que preza pelo consentimento, algo que deveria ser mais frequente shoujo, josei, TL, whatever, diz que não consegue mais se controlar e que deseja fazer amor com ela.

Bem, mas o que aconteceu nesses três míseros capítulos?  Muita coisa, na verdade.  Mikan e Akutsu tiveram que ir para a cidade natal da mocinha para restaurar o amuleto quebrado e o fantasma vai junto, claro.  Eles terminam hospedados na casa dos pais dela e toda a família da moça fica eufórica de vê-la com um namorado, que é bonito, gentil e todo mundo já está chamando o sujeito pelo primeiro nome, enquanto ela não consegue.  Inclusive, um dos nossos avanços é Akutsu conseguindo fazer com que ela finalmente o chame pelo primeiro nome e, não, pelo seu cargo no trabalho.  Olha, e é difícil e ela tropeça volta e meia.  Nessa estadia na casa da família da mocinha, eles são colocados para dormir no mesmo quarto e o irmão mais velho de Mikan lhe dá bebida alcoólica sem que ela saiba.  Ela fica meio doida por causa disso.

A velha sacerdotisa pede um dia (24 horas) para consertar o amuleto e fazer outro para Akutsu, além de dar uma bronca em Mikan.  Quando eles retornam para buscá-lo, fica evidente que a idosa não consegue ver o fantasma, nem ouvi-lo, nem sentir sua presença apesar de Mikan insistir que ele está na sala.  O que descobrimos, então, é que não é um fantasma, mas uma alma extraviada.  Ele está vivo!!!!  Mais tarde, Akutsu para para lembrar do acidente da esposa e se recorda de que ela não estava só, que um homem tinha tentado ajudá-la e fora atingido pelo carro.  O rapaz entrara em coma.  Estaria ainda nessa situação quatro anos depois?

Neste momento, quando Akutsu compreende finalmente a situação, ele se sente culpado, e se envergonha de parecer fraco aos olhos de Mikan.  O mangá, a maioria dos mangás TL, aliás, reproduz esses papéis de gênero tradicionais, Akutsu é homem e se vê como fraco aos olhos da mulher que ama, Mikan então diz que não vai abandoná-lo e que estará ao lado dele.  O rapaz se sente pior ainda, mais vulnerável e ninguém gosta de se sentir assim, e se você é homem em uma sociedade patriarcal, você se diminui se se coloca nesse tipo de posição pacificamente, fora isso, ele ainda é mais velho que ela.  Neste momento, Mikan diz que ele não a veja como metida, ou algo assim, que ela sabe que não é tão forte (*quanto ele, ou quanto um homem*), que é somente um empréstimo, ela vai apoiá-lo agora e, quando tudo passar, ele poderá protegê-la e lhe dar suporte.  

Eu poderia tecer uma série de comentários feministas a respeito, mas a cena ficou tão fofinha, que eu deixo passar.  Acho que é um dos casais mais simpáticos que eu já vi em um mangá e mesmo que esses papéis tradicionais de gênero estejam na obra, Akutsu se mostra sempre um sujeito muito correto no seu relacionamento com Mikan.  Ele nunca é abusivo em sentido nenhum, eles se complementam e Mikan é muito mais um suporte para Akutsu do que o inverso.  

Bem, Mikan ouve o fantasma, mas não consegue vê-lo.  Seu irmão caçula vê o espírito e não consegue ouvi-lo.  Ele já havia dito que se tratava de um ikemen (*um jovem bonito*).  Eles insistem que o rapaz desenhe o moço, mas ele é muito mau desenhista. De qualquer forma, ele coloca detalhes que Akutsu lembra de ter visto no homem que ajudou sua esposa, como um ferimento na cabeça.  O que Mikan assume como sua missão agora é fazer com que a alma extraviada volte para o seu corpo de origem.  Como?  Não sabemos.  A nossa outra questão, claro, é quando Akutsu e Mikan vão transar.  Tamanho o autocontrole do moço, que eu fico imaginando que ele tenha medo de virar uma fera, ou algo do gênero, quando fizer sexo com ela.  Sabe-se lá, esse tipo de mangá é meio louco.

O problema é que a série segue sendo traduzida muito lentamente e eu acredito que a própria autora faça um monte de oneshots e a série mesmo siga meio devagar, mas é uma imagem de Koko Kara wa Otona no Jikan Desu。que ela usa no seu perfil no Twitter.  Consta com dois volumes e só achei nos sites japoneses até o capítulo 17, as scanlations seguiram até o 16, quando escrevi a primeira resenha, nós tínhamos até o capítulo 13.  Resumindo, a autora lança capítulos a cada dois meses, eu acho, só pode.  Agora, como a autora tem postado imagens de um moço louro (*de mangá*), acho que é o fantasma e a história está seguindo.  Pergunto-me se quando o sujeito acordar, ele vai querer disputar Mikan com Akutsu.  É uma possibilidade.  Enfim, é isso.  Recomendo a série.  É fofinha, gostosa de ler, e reduzindo um tiquinho o erotismo, dava para virar um dorama muito simpático.

Turma da Mônica do Globoplay é bem simpático, mas, ao que parece, mal começou e já vai acabar...

Dia desses, estreou a série da Turma da Mônica no Globoplay, sexta passada, o primeiro episódio, de oito, entrou na grade da TV aberta.  Usando o mesmo elenco base dos dois filmes para o cinema, Laços (*resenha aqui*) e Lições (*que eu não assisti ainda*), a série introduz novas personagens e apresenta um história que mostra o drama da turminha que já não é criança, mas ainda não é adolescente, e a chegada de Carminha Fru-Fru  (Luiza Gattai) e o conflito que se estabelece entre a menina rica e esnobe e Mônica (Giulia Benite).  Toda a história se passa durante as férias escolares e a estreia no Globoplay foi exatamente no mês de julho.

Eu realmente gostei da série da Turma da Mônica, assisti seis dos oito episódios e achei deliciosa a forma como eles discutiram questões típicas da faixa etária 12-13 anos do elenco sem perder de vista as características das personagens dos quadrinhos.  Cebolinha (Kevin Vechiatto) não troca as letras o tempo inteiro, mas quando fica nervoso ele volta a falar como nos HQs; Mônica tem dificuldades em controlar sua super força; Magali (Laura Rauseo) não consegue dizer "não", especialmente, quando a proposta envolve comida e Cascão (Gabriel Moreira) tem que superar seu trauma com a água, porque seu cheiro começa a incomodar os colegas.

A série segue a chegada de Fru-Fru e um "crime" que ocorre durante a festa que a menina promove para esvaziar a comemoração que Mônica tinha marcado no mesmo dia e na mesma hora.  Cada episódio é narrado sob o ponto de vista de uma das personagens em uma investigação que é guiada por Denise  (Becca Guerra).  Há um episódio focado em Milena (Emilly Nayara) e eu entendo a importância da representatividade, mas o foco é na turminha original, o quarteto Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali.  Com o andar dos episódios, descobrimos que mesmo a nojentíssima Carminha Fur-Fru tem seus traumas e um coração.  Aliás, Mariana Ximenes interpreta a mãe da menina e é terrível com suas exigências de perfeição que sufocam a filha.  E o Leandro Ramos, o Julinho do Choque de Cultura, faz uma participação no filme, explicando para Magali que mudara de profissão.

Assim, eu não sei de quem gostei mais na série, mas achei que a Magali teve mais espaço para brilhar do que no filme, o primeiro, e a sua interação com o Quinzinho, o filho do dono da padaria, e lembrei que o ator, Pedro Henriques Motta, já tinha feito um dos Detetives do Prédio Azul.  Eu conhecia o rosto de algum lugar... Teria que elogiar todos, pelo menos os que receberam destaque na trama, estavam ótimos.  Eu realmente achei um produto infanto-juvenil muito bem feitinho e agradável de assistir.  Júlia chega hoje das férias e vou tentar colocá-la para ver os episódios e saber a opinião dela.  O fato é que eu acreditava que seria a primeira de pelo menos umas três temporadas.

Por conta disso, foi realmente surpreendente saber que o elenco será dispensado, porque eles não tem idade ainda para ser a Turma da Mônica Jovem (!!!!) e não são pequenos para continuarem sendo a turminha.  Assim, nesta faixa etária, eles crescem rápido, eu colocaria esses meninos e meninas para começarem já a Turma da Mônica Jovem, eles estão prontos, conhecem as personagens.  Raramente, vi uma decisão tão errada em um produto midiático.  Triste, sabe?  Eu ainda espero que a coisa seja revertida.  Espero mesmo, pois, mesmo não sendo público alvo, consegui apreciar as boas qualidades do material.  Se não for o caso, que o elenco seja aproveitado em outras produções, porque eles e elas são muito talentosos.

Dois canais (Coisas de TV e O  Brasil que Deu Certo) que eu sigo fizeram vídeos sobre a série da Turma da Mônica e eu recomendo que assistam.  Eles estão incorporados abaixo.

sábado, 30 de julho de 2022

Comentando Frozen Flower (Coreia do Sul/2008): Uma tragédia anunciada e muito bem executada

Dia desses vi uma cena isolada do filme Frozen Flower (쌍화점/Ssanghwajeom/Flor Congelada) e fiquei curiosa.  Fui até o verbete do filme na Wikipedia e vi que ele era inspirado em eventos reais, fui seguindo os links para as personagens históricas envolvidas e pensei "Bem, duvido que o filme consiga ser tão doido quanto essa tragédia que esse rei criou.".  De fato, o filme faz algumas alterações, mas o básico da história está lá e com um bônus delicioso, que foi ver um coadjuvante humilde virando a mesa no final e pegando o protagonismo para si.  Raramente, vi um personagem tão inteligente e com tanto senso de preservação em cena.  Mas vamos lá, vou dar as linhas gerais do início da trama.

O rei  (Joo Jin-mo) de Goryeo é casado com uma princesa da dinastia Yuan (Song Ji-hyo), que reina na China e impôs o seu à Coreia.  Eles não têm filhos, porque o rei não tem interesse por mulheres e mantém um romance de muitos anos com o chefe de sua guarda pessoal, Hong-rim (Jo In-sung).  Depois de quase perder a vida em um atentado promovido pelos japoneses e pressionado pela China, que exige que o rei tenha um herdeiro, ou reconheça como seu sucessor alguém escolhido pela dinastia Yuan, o monarca tem uma ideia desesperada.  Depois de reafirmar para a rainha que é incapaz de se deitar com uma mulher, ele propõe que ela aceite Hong-rim como um substituto e que o filho que eles gerarem, será seu.  Hong-rim fica chocado com a ordem do rei, escolhido para servir ao monarca ainda menino, ele nunca havia se deitado com uma mulher, mas se submete.  Já a rainha, acreditava odiar o jovem, porque o rei o preferia em sua cama e era a razão da sua infelicidade.  Hong-rim e a rainha terminam cumprindo com as determinações e, depois de muito constrangimento, acabam se entendendo na cama e se apaixonando.  Quando o rei percebe que eles estão cruzando a linha do dever, já é tarde demais, e a história caminha para uma grande tragédia.

Antes de seguir para a discussão do filme, deixo claro que não sei quase nada de História da Coreia que não esteja do final do século XIX para cá.  Antes disso, a gente mal fala da região em aulas de História, na época que eu fiz a faculdade, nem de oriente se falava na UFRJ fora do contexto da dominação imperialista.  Mas o fato é que a região nem sempre esteve unificada e sofreu a ingerência da China e a cobiça do Japão por vários séculos.  O filme se inspira na vida do rei Gongmin (1330-1374) e o fato de, após perder sua amada esposa de parto, ter decidido que não tocaria mais em nenhuma mulher e obrigado um grupo de guardas selecionados a se deitarem com suas esposas secundárias e gerarem um herdeiro que ele assumiria como seu.  Nem todas as suas esposas secundárias aceitaram, mas uma de nome Han Ik-Bi se submeteu e engravidou de um guarda chamado Hong-Ryun.  A partir daí, ele decide eliminar Hong-Ryun e todos que sabiam do seu plano.  Só que Han Ik-Bi foi mais rápida e conseguiu armar um contra-ataque junto com Hong-Ryun e outras vítimas da lista do monarca.  O rei foi morto, os demais parecem ter seguido com suas vidas.  

O filme não é fiel aos eventos históricos, mas se mantém perto.  Acrescenta um pouco de drama, ou muito, porque o rei é humilhado pelos chineses o tempo inteiro e o pobre Hong-rim sofre horrores, um ataque de japoneses que quase mata o rei e a rainha, uma tentativa de golpe promovida por cortesãos que queria se livrar do monarca e outros ingrediente que tornam o filme muito animado.  Há, também, uma boa dose de cenas de sexo a ponto do filme estar rotulado em alguns lugares de drama histórico erótico, ou algo assim, mas eu não diria que é para tanto, não, mas a censura deve ser 16 anos.  E são cenas bonitas, por assim dizer.  Seja porque o trio de protagonistas é lindo, seja pela forma como as sequências são filmadas.  Temos tanto cenas do rei com Hong-rim, quanto do guarda com a rainha.  

Quando me propus a assistir este filme, imaginei que iria odiar o rei desde o início, mas, não, as coisas não foram tão fáceis, tampouco o filme se concentra somente na tragédia amorosa, há uma boa dose de intriga política e outros ingredientes que tornam o filme de duas horas e vinte três minutos muito intensos.  Como a coisa foi me angustiando, acabei interrompendo o filme mais do que gostaria.  O fato é que o trio de protagonistas é movido por sentimentos bem complexos.  O rei e a rainha são bem mais falhos que Hong-rim, mas todos são demasiado humanos, por assim dizer.  O rei erra mais que todos, verdade, como senhor da vida de seus súditos, ele constrange Hong-rim e a rainha Han Ik-Bi a fazerem o que ele deseja e, quando a coisa vai além, ele decide se vingar de forma cruel contra todos que sabem do arranjo que ele mesmo criou.  Que os dois iriam se apaixonar, era um clichê, mas é o desdobramento da história que conta.

O rei pode até amar Hong-rim, mas o rapaz nunca teve escolha.  Ainda que o rei não seja tão mais velho que o amante, nunca vi um caso mais exemplar de grooming em um filme.  Hong-rim aparece criança com um rei adolescente.  Ele é um dos meninos que está em treinamento para se tornar parte da guarda do rei.  O monarca pergunta qual seria a função deles.  Há uma série de respostas diferentes, mas o rei fica encantado pelo fato de Hong-rim responder que é morrer pelo rei.  A partir dali, ele é convidado para visitar os aposentos do rei e compartilhar com ele de momentos de intimidade, como partilhar uma refeição, ou aprender a tocar um instrumento.  Com o tempo, o garoto passa a frequentar a cama do monarca.  Quando a rainha chega da China, o jovem rei se recusa a ir receber a noiva nos portões, porque está com Hong-rim. 

Ao mesmo tempo em que rejeita qualquer contato sexual com a esposa, o que é de certa forma um absurdo, porque a primeira função de um rei é gerar descendência, o monarca a trata com grande deferência.  é uma gentileza que parece genuína, mas que desapareceu rapidamente quando a rainha o confronta.  No fim das contas, o rei era um tirano ciumento e usou o amante e a esposa.  Ambos não tem escolha, não é uma relação igualitária e tanto Hong-rim, quanto a rainha são vítimas das circunstâncias.  Já o rei, o único que tem escolha, terminou punido ambos por terem sido obedientes, por assim dizer.  Fosse alguém mais ajustado, eles formariam um trisal e viveriam felizes no palácio.  Mas temos que ter tragédia, não é?  

O fato é que passado o constrangimento de terem que manter relações com o rei na sala ao lado, Hong-rim e a rainha acabam realmente sentindo prazer em estarem nos braços um do outro.  O rei chega a perguntar para Hong-rim como ele se sentia tendo se tornado homem de verdade e não sei se interpreto a coisa como piada, e não sei como funciona o humor coreano, ou desdém.  Quando o rei se apercebe que os dois estão tendo prazer, e não somente cumprindo um dever, ele decide suspender os encontros dos dois e esperar mais um tempo.  Só que Hong-rim e a rainha começam a se encontrar às escondidas, ele conta mentiras para despistar o rei e desaparece vez por outra, além disso, trocam pequenos presentes e a moça chega a cozinha um bolo especial para o comandante da guarda e explicar que na China uma moça faz esta receita para presentear o homem que ama.

Hong-rim tenta resistir, se oferece para uma missão perigosa que o afaste da corte, mas o próprio rei o traz de volta.  Ele o quer em sua cama.  E Hong-rim tem um segundo em comando (Ji-ho Shim) que cobiça o seu lugar.  Logo no início do filme, eles tiveram uma altercação, porque Hong-rim conseguira a clemência do rei para um dos guardas que fugira com uma das damas da rainha.  A pena era de morte.  O segundo em comando insinua que Hong-rim conseguiu que o rei fosse contra a lei usando de sedução.  A questão é que ele queria estar na cama do rei, que o rejeita, e, por isso, ele entrega o caso secreto de Hong-rim com a rainha.  O rei o coloca para vigiar Hong-rim e quando o rapaz desobedece o soberano (*e, aqui, foi a única traição de fato do jovem*) e não mata o irmão da rainha envolvido em uma conspiração, ele consegue a confiança do monarca.

O rei consegue perdoar Hong-rim, porque o rapaz jura que seu envolvimento com a rainha era movido pela luxúria, ainda assim, decide afastá-lo da corte e punir a rainha introduzindo outro homem em sua cama.  Desesperada, ela tenta se matar.  Só que a rainha está grávida e teme que o rei decida se vingar na criança.  Hong-rim não acredita nisso, o rei é um homem bom e gentil, ela quer fugir com ele para longe, ele tenta acalmá-la, mas termina cedendo mais uma vez, apesar de sua disposição em não ter mais nenhum contato com a rainha.  Quando o monarca confirma que ele ama sua esposa, a tragédia se acelera.  O rei surpreende a rainha e Hong-rim em pleno ato.  Eles costumavam se encontrar na biblioteca, na seção de livros de estratégia militar.  O rapaz havia se justificado sua ausência mais de uma vez dizendo que estava lendo naquela seção.  A reação do rei é mandar que o segundo em comando da guarda castre Hong-rim.  É uma cena bem violenta e o rapaz recebe a punição de seus próprios companheiros.

O rei decide se livrar de todo mundo que sabe da história e a rainha toma a decisão de tentar salvar Hong-rim.  Para fazer isso, ela manda uma de suas damas de companhia avisar os guardas que são mais chegados a Hong-rim.  Resultado?  Mais gente sabendo da história, mais gente para morrer.  E o rei já tinha mostrado que era capaz de grandes crueldades antes, porque ele havia descoberto uma conspiração para colocar no trono o sujeito que os chineses queriam que ele aceitasse como herdeiro e promovido um banho de sangue com requintes de crueldade.  Enfim, Hong-rim está muito fraco, perdeu bastante sangue, está deprimido, porque foi castrado, mas consegue ser levado da prisão pelos amigos.  Eles seguem ordens da rainha, o levam para um mosteiro budista, mas ele quer voltar e resgatar a amada.  Um dos sujeitos lhe diz que ele nada tem a oferecer para a rainha e por nada a gente tem que compreender desde proteção, riqueza, até sexo.  

Ele sai a cavalo, pensei que iria para o castelo e fazer uma bobagem, mas ele volta e encontra o mosteiro semi-destroçado.  O rei mandara torturar as damas da rainha, é o que eu acho, afinal, Han Ik-Bi não iria confessar o paradeiro do rapaz e a gente vê cenas bem desagradáveis do monarca torturando os amigos de Hong-rim, que, agora, planeja se vingar do rei pessoalmente e morrer no processo.  De volta à capital, ele vê as cabeças dos amigos e das damas da rainha em estacas.  Para se infiltrar no castelo, ele se disfarça como um dos soldados que estavam voltando da China, onde lutaram em uma guerra que não era sua.  Dentro do palácio, ele consegue chegar até a câmara do rei e os dois duelam.  Hong-rim nunca vencera o rei em uma luta, mas, agora, ele precisa conseguir.  De resto, ele ainda cospe umas verdades na cara do rei, ele nunca o amou, sempre foi dever.  Até acredito que seja mentira, mas o jovem nunca teve escolha.

Não vou comentar o duelo, mas  a graça foi ver o coadjuvante humilde, o segundo em comando, conseguir se dar muito bem no final.  Eu esperava que ele morresse, talvez, pela própria espada de Hong-rim, mas ele usa de toda a sua astúcia para sobreviver e terminar muito bem a trama.  Quando a rainha o avisa que ele será o próximo a morrer, porque, agora, é o único que sabe do plano do rei para conceber um herdeiro, ele, assim como quem não quer nada, conta o segredo para mais uns quinze caras da guarda real, que, ou o ajudavam a dar um golpe, ou iriam morrer, também.  Ele não mexe uma palha para impedir que Hong-rim mate o rei e impede que os companheiros o façam e termina pleníssimo no final do filme, provavelmente, se tornando o regente do reino.  E a rainha só não rodou também por ser uma princesa chinesa. O filme não era sobre esse sujeito, mas é o tipo de personagem que merece aplausos pela sua astúcia, porque quando foi necessário, ele se virou muito bem para preservar sua vida.  

Gostaria de poder comentar figurino, mas não entendo nada de vestimentas coreanas e chinesas.  O filme fez questão de marcar a diferença dos chineses para os coreanos pelas roupas.  Os emissários do imperador se vestem de forma diferente e falam em chinês, pois, nesta cena, aparecem as legendas em coreano.  Para se ter uma ideia, a condição de submissão do rei era tamanha que ele tem que se prostrar, mesmo que sem curvar a cabeça, diante dos emissários do imperador.  Já os japoneses que aparecem no atentado, vestem-se como ninjas.  De resto, o que temos, pelo menos no elenco principal, é gente bonita com roupas vistosas.  Os rapazes da guarda alternam cores, mas, na maioria do tempo, vestem púrpura.  O rei sempre usa roupas muito bonitas e ele tem um grande senso artístico e isso foi inspirado no monarca histórico que lhe serviu de base.  Os cenários também são bem interessantes, seja o palácio, ou o exterior.  A fotografia do filme é muito bonita.  Agora, o que eu destacaria é a trilha sonora.  Há o uso de instrumentos tradicionais, tanto o rei quanto a rainha cantam e a música que encerra o filme, que mostra um flashback do rei cavalgando com Hong-rim é belíssima.

É isso.  Frozen Flower é um belíssimo filme, no qual todo mundo é vítima de alguma forma, porém, há um indivíduo, o rei, que desencadeia toda a tragédia.  Mesmo que se possa sentir pena dele, é necessário não esquecer que ele estava em posição dominante sobre os demais, seja por motivos de classe/status, seja por questões de gênero.  Assim sendo, de todos os envolvidos, o pobre Hong-rim e os que sabiam do segredo são os que realmente sofreram com o egoísmo do rei, que independentemente de sua orientação sexual (*e ela está clara no filme*) deveria ter cumprido o seu dever, porque é um dos deveres de todo o monarca deixar descendência, os afetos, neste caso, precisam ficar em segundo plano.  E sempre que um rei foge disso, podem procurar, teremos uma tragédia que se não vier durante a sua vida, vem logo depois, com a guerra de sucessão. 

 

Pacto Brutal (HBO MAX/2022) precisa ser assistido e, sim, você vai se sentir muito mal quando terminar

Este post é uma resenha bem geral da série documental da HBO MAX chamada Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez (A Brutal Pact: The Murder of Daniella Perez).  Em cinco episódios, os dois primeiros lançados no dia 21 de julho e os demais no dia 28, temos uma visão geral do crime, das investigações, do julgamento e do que aconteceu a seguir ao assassinato da jovem atriz Daniella Perez (1970-1992), filha da novelista Glória Perez, que é a voz mais ouvida durante os documentários e guia a narrativa externando sua dor, suas reflexões sobre os criminosos e a justiça e apresentando fotos tanto da moça viva e feliz, quanto do seu corpo destroçado, o que chocou muita gente que assistiu, mas um recurso que foi fundamental para dimensionar a covardia e crueldade do crime.

O assassinato de Daniella Perez foi um dos crimes de maior repercussão midiática da história do nosso país.  Eu era adolescente quando ocorreu, eu acompanhava a novela (De Corpo e Alma) e segui mal e mal os acontecimentos.  1992 foi um ano agitado, Caras Pintadas, Impeachment de Collor, eu me preparando para o vestibular.  O que me vem na cabeça sobre o crime era o fato dos assassinos serem muito jovens, assim como a vítima, que poderia ser minha amiga pela proximidade de idade, e da imprensa sensacionalista explorar ao máximo a suposta ligação com ritual religioso demonizando as religiões de matriz africana e as ilações sobre a sexualidade de Guilherme e, também, de Daniella.  

Acompanhei de longe o desenrolar dos acontecimentos até que Pádua passou a reaparecer na mídia como pastor e explorando ao máximo discursos que me são familiares, pois sou batista desde o ventre materno e cresci e vivi boa parte da minha vida dentro da igreja e circulando em círculos afins, para se promover.  Aliás, os documentários o ajudarão a continuar fazendo isso e, não, não estou dizendo que Pacto Brutal não seja necessário.  Pádua já fazia isso antes e continuará fazendo, enquanto for lucrativo para ele. Inclusive, saiu um texto de opinião na Folha de São Paulo, que eu não irei linkar, porque não quero colocar mais azeitonas na empadinha do autor, que está para lançar livro sobre o crime, acusando Pacto Brutal de não ser justo por não ter dado espaço para os assassinos e seus defensores.  

Quem assistiu todos os episódios, este texto foi feito em cima dos dois primeiros, sabe que os assassinos foram ouvidos, suas palavras estavam lá, PORÉM, Pacto Brutal tinha como objetivo dar voz à mãe, Glória Perez.  Hoje, com 46 anos, eu consigo imaginar a dor dela como mãe, que abraçava integralmente o seu papel, e teve sua filha roubada, uma vida interrompida com todas as possibilidades.  Ela iria se tornar uma grande atriz? Optaria pela dança? Teria filhos?  Quantos?  Em 28 de dezembro de 1992 mataram Daniella Perez, ela não volta mais.  Os assassinos terminaram sendo favorecidos pelo sistema judicial brasileiro e conseguiram seguir com suas vidas.  A única vida que acabou foi a de Daniella e seus familiares, viúvo, amigos e amigas seguem sofrendo.  E não esperem de mim qualquer simpatia por Pádua, que é quem mais aparece na mídia, porque nunca consegui detectar em suas falas ao longo de muitos anos nenhum vestígio sequer de arrependimento, nenhuma empatia pela vítima.  Quanto à Paula Thomaz, pouco sabemos do que ela pensa ou sente, é tudo muito mais fragmentado e fica um grande espaço para preenchimento de lacunas, algo que eu não pretendo fazer neste texto.

Estabelecidos esses pontos, vou comentar rapidamente os cinco episódios a partir daqui.  O primeiro episódio mostra a noite do crime e a descoberta de que Guilherme de Pádua era o assassino.  Temos as falas de vários familiares de Daniella, em especial, sua mãe, seu marido, Raul Gazolla, e seu tio médico, o primeiro a chegar ao lugar onde estava o corpo.  É o episódio mais impactante, acredito, porque há uma unidade narrativa, um assunto só.  Daniella sumiu, será que foi sequestrada?  O desespero vai crescendo e eu consegui sentir também, porque o desfecho é conhecido e a gente imaigna o quão terrível era a situação dos envolvidos.  Quem a viu pela última vez?  Ah, ela tirou fotos com umas crianças na porta do estúdio.  Guilherme de Pádua estava lá, também.  Marilu Bueno, atriz que faleceu recentemente e fazia sua mãe na novela, é procurada, ela não teria saído com Daniella do estúdio.  Os amigos falam do que sentiram, do que viram, de Guilherme de Pádua indo até a delegacia prestar solidariedade.  O enterro, que virou atração para um público enorme, é algo que gera angústia.  Há gente rindo, tentando fotografar, em cima dos muros do cemitério, é um espetáculo.  

Quando chegamos ao final do capítulo, o delegado, graças a um sujeito que tinha anotado as placas de dois carros parados na borda de um matagal na Barra da Tijuca, já sabem que Pádua está envolvido no crime e pedem silêncio para Glória Perez, pois ele poderia fugir.  Este capítulo foi o que mais me impactou.  Eu chorei em vários momentos.  Neste episódio é comentado que Daniella estaria com 6 mil dólares emprestados pela mãe na bolsa para pagar um carro que estaria comprando.  A bolsa sumiu, assim como os bilhetes que Pádua teria lhe enviado e este assunto não volta a aparecer em momento algum do documentário.  Além de homicídio, teria ocorrido roubo.  Achei realmente estranho que em nenhum outro momento esta questão tenha voltado a ser discutida.

O segundo capítulo é a prisão e confissão de Guilherme de Pádua e a tentativa, inclusive do delegado do caso, de deixar Paula Thomaz fora do caso, apesar dos indícios de sua participação.  Há destaque para o papel da imprensa tanto para forçar o indiciamento (*nem sei se é o termo correto*) de Paula Thomaz, quanto para romantizar o ocorrido.  Guilherme teria matado para parar o assédio que sofria por parte de Daniella, sendo um homem casado e com esposa grávida, além de temeroso quanto a sua carreira, ou ele teria cometido o crime por ter sido recusado por ela que se negou a ter um caso com ele, ou queria terminá-lo.  De qualquer forma, o comportamento da vítima passou a ser escrutinado e as capas das revistas e jornais apontam para a confusão que foi feita entre a ficção, a novela, e a realidade.  Aqui, temos o depoimento de funcionários do estúdio (maquiadoras, camareiras, coreógrafa etc.), além de colegas de elenco, apontando que Guilherme de Pádua parecia preocupado com a diminuição do seu papel na novela, algo que seria fruto de sua imaginação, e como ele perseguia insistentemente Daniella Perez.  Aqui, a tese de que Pádua teria matado Daniella Perez para atingir sua mãe é reforçada a todo momento e que ele teria manipulado o ciúme da esposa para que ela fosse coautora do crime.

O episódio três foi outro que me comoveu muito, e reconheço que foi o que teve mais ritmo de novela mesmo, e mostra a luta de Glória Perez para conseguir tanto que os frentistas que testemunharam o crime se apresentassem, quanto para mudar a lei de crimes hediondos aprovada em 1990.  Esta lei incluía como crimes os crimes de sequestro, estupro e latrocínio, negando aos seus autores o direito à liberdade provisória e progressão de regime.  O homicídio qualificado não era arrolado, o que aponta que o estado burguês se preocupa mais com os bens, vide o latrocínio, do que a vida.  Obviamente, não se discute isso no capítulo, mas abre-se o leque para falar da dor de outras mães que tiveram seus filhos mortos, como as Mães de AcariJocélia de Castro, que teve sua filha Miriam, de cinco anos, assassinada brutalmente no mesmo ano de 1992.  Perez se empenha junto com um monte de gente para colher as assinaturas, que precisavam ser milhões e de todo o país, para uma lei de iniciativa popular.  Ela quase não passou e o objetivo era para o futuro, para outras mães, já que a lei não pode retroagir.

E há a questão das testemunhas.  Glória Perez passou a receber ligações anônimas dizendo que procurasse informações sobre a morte de sua filha em um posto de combustíveis perto do estúdio onde ela tinha feito as últimas gravações.  Guilherme e Paula tinham interceptado Daniella ali, na saída do posto, ela foi agredida e colocada dentro de um dos carros.  Os donos do posto e o gerente não quiserem contribuir e os frentistas estavam muito assustados para falar.  O difícil de digerir foi a recusa e a demissão dos rapazes, o fato de terem mandado o cheque usado por Daniella para pagar o combustível para outra filial, enfim, não houve colaboração.  Glória Perez, no entanto, conseguiu o endereço de um dos frentistas, um rapaz de 19 anos e teve que insistir muito para ser recebida, para que a mãe do moço, muito assustada, permitisse que ele falasse. Se mataram a filha de uma mulher famosa, o que não fariam com seu filho? As fotos do corpo dilacerado de Daniella foram utilizadas para demovê-la.  

Outra informação conduziu ao homem que tinha lavado o carro ensanguentado de Guilherme de Pádua.  Este senhor, negro e pobre, evangélico (assembleiano) e profundamente religioso, sequer via novela, mas ao ver a foto de Pádua no jornal, se desesperou.  Aqui, foi fundamental a intercessão da deputada Benedita da Silva, que acionou o pastor Manoel Ferreira, o líder do maior ramo das Assembleias de Deus no Brasil, o de Madureira.  Para convencer o lavador de carros, tiveram que usar do arsenal discursivo religioso mesmo, porque ele acreditava que poderia ser a próxima vítima de gente poderosa.  O que ficamos sabendo é que Daniella Perez tinha começado a ser apunhalada no carro.  Com o depoimento do porteiro do prédio de Guilherme de Pádua, dizendo que Paula teria saído com o marido carregando lençóis e travesseiro, começa a ser desmontado o álibi de que ela teria passado horas e horas no Barra Shopping, quando, na verdade, estava escondida no carro esperando pela chance de cometer o crime.  Viram que escrevi um monte sobe o capítulo três?  Sim, ele talvez seja o mais importante, ainda que muito comovente.

O capítulo quatro é o mais complicado, irregular até.  Ele se dedica tanto a falar da personalidade dos assassinos usando, sempre que possível, as suas próprias palavras, quanto a discutir as motivações do crime e tocar no espinhoso tema do ritual macabro.  Aqui, acredito que acertaram ao mostrar a personalidade de Guilherme e Paula, especialmente ele, porque ele sempre falou, se expôs, escreveu sobre o tema, tornou-se uma celebridade dentro da cadeia.  Ele chegou até a dizer que estar na prisão, uma das piores do Rio, era uma experiência interessante.  Agora, para falar de Paula tiveram que recorrer a testemunhos de ex-noivo, pessoa que ia visitar outra presa e ouviu coisas.  Aí, complica um tanto.  E o ritual macabro apareceu, poderia nem ser referenciado, aliás, porque não conduziu a nada que enriquecesse a narrativa.  De importante fala-se que a arma do crime foi um punhal, que desapareceu, e não uma tesoura recorrendo-se à perícia.  O maior esforço aqui foi tentar desvencilhar a suposta crença de Paula e Guilherme de quaisquer religiões de matriz africana. 

Para falar da personalidade de Guilherme e Paula é preciso mergulhar no passado dele, seu começo como ator, que ele negou ter participado de um espetáculo erótico chamado de Leopardos e como Paula, com então 18 anos, foi proibida de entrar na Galeria Alaska por seus ataques de ciúme.  Se houve machismo na abordagem do crime na época e até hoje, nos anos 1990, houve muita homofobia, também.  Para degradar ainda mais Guilherme de Pádua era utilizado o fato dele ser um "pervertido sexual".  Para escapar dessa armadilha, o documentário investiu em duas linhas, a de que ele era capaz de fazer tudo, inclusive transar com quem quer que fosse, para subir na carreira, e que Pádua se ofendia mais por ser chamado de gay do que de assassino, sendo que neste ponto, usaram falas dele mesmo.  No episódio quatro é mostrado, também, a forma como o túmulo de Daniella foi seguidas vezes profanado, frases desconexas eram pichadas, a ponto de seus restos mortais estarem em um cofre e, não, no jazigo bonito que a família mandou construir.

O último capítulo foca no julgamento e o que veio depois. Paula e Guilherme já tinham se separado, quando ela rompe o que parecia ser um acordo, ele a coloca na cena do crime, que ela nega até hoje ter cometido. Julgamento é teatro e teremos dois, o de Guilherme, com um defensor bem midiático e que tentou desqualificar as testemunhas, os frentistas em especial, inclusive desqualificando a gagueira de um deles; o de Paula, muito caro, afinal, ela era de uma boa família e dinheiro nunca foi um problema.  Raul Gazolla, que participara pouco dos capítulos 3 e 4, volta a aparecer bastante.  Ele era o viúvo, fala de seus sentimentos, que não conseguiu assistir aos julgamentos.  O de Paula, ele ainda tentou, mas acabou saindo.  Ambos foram condenados ao máximo possível para que, pela legislação da época, não tivessem direito automático a um novo julgamento.  Pegaram 19 anos e meses e cumpriram o mínimo da pena necessário por bom comportamento.  Guilherme, ao ser solto, virou pastor.  Paula mudou de nome, casou-se de novo, teve outros filhos, mas foi fazer Direito.  E, aqui, algo fala sobre a personalidade dela.  Ela vai cursar Direito na mesma faculdade onde Daniella e o irmão estudaram.  Ela vai fazer uma disciplina dada pelo promotor do caso que ficava em outra unidade e em turno que não era o seu.  Não quero entrar em questões de psicopatia e coisas do gênero, mas é um comportamento tão esquisito quanto o exibicionismo de Pádua.

Em suas falas neste e em outros episódios, Glória Perez clama por leis melhores, ela não prega o "bandido bom é bandido morto" ou coisas do gênero, ela diz acreditar em mudança de vida e tudo mais. Isso é importante, mas ela destaca que nunca viu arrependimento da parte de Pádua e da ex-esposa.  Como pontuei, ela é meio uma incógnita, agora, ele é um livro aberto.  Mesmo agora, e não vou colocar o link, ele veio à público para dizer que não ia comentar os documentários, sua fala, na verdade, já coloca uma série de pontos a respeito do que ele diz pensar e sentir.  Enfim, o nosso sistema de justiça precisa ser aperfeiçoado, não para que ele amplie as punições por encarceramento de forma homogênea, mas para que penas mais duras sejam aplicadas aos crimes graves e outras opções sejam impostas aos que cometeram crimes de menor agressividade.  Mas eu não sou jurista, nem entendida do assunto eu sou.

O capítulo cinco termina com Glória e Gazolla vendo um álbum de fotos de Daniella falando do que ela foi e do que poderia ter sido.  De como ela se casou com Gazolla aos 19 anos mesmo sem o consentimento da mãe, que achava que ele era muito mais velho que Daniella e que eles poderiam esperar, mas para acalmar seu coração e o dos avós que não aceitariam que ela fosse morar junto somente.  É uma sequência tocante e que aponta para os objetivos da série que não é somente rever o crime de forma fria, mas chocar, fazer refletir e emocionar mesmo.  Comigo conseguiu. E há um trecho de entrevista com Daniella que é apesentado, também.  Mostrá-la viva, cheia de alegria é um contraste perfeito com suas fotos morta.  É uma forma indiscutível de mostrar a brutalidade. 

Como apontei lá em cima, os episódios 1 e 3 foram os mais impactantes para mim.  O 4 foi o mais desconexo e problemático.  E o "pacto" do título não ficou lá muito bem explicado, exatamente, porque era algo que deveria ser aprofundado no episódio 4, que pisa o tempo inteiro é ovos por conta da suposta conexão ritualística-religiosa do crime. Os episódios 2 e 5 foram muito bons, mais frios que o 1 e o 3, mas muito importantes.  Há inúmeras participações de gente de várias áreas, próximos de Daniella, ou não.  A maioria absoluta são pertinentes, só não vi função em Roberto Carlos ser chamado para dizer que ama as novelas de Glória Perez, porque, bem, não colaborou em nada para os episódios.  Vi gente reclamando de Sônia Abrão e ninguém falando dele.  E, gente, por favor, De Corpo e Alma nunca será reexibido, não tem como, seria muito dolorido para um número enorme de pessoas.  É uma novela que, graças ao Sr. Guilherme de Pádua, se tornou maldita.  

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Apertar a mão de um estranho todos os dias para viver mais 60 anos: Este é o ponto de partida de um mangá que estreou na revista Cookie

Um mangá com uma premissa muito estranha estreou na revista Cookie.  Segundo o Comic Natalie, Tetotetote (テトテトテ) de Rikako Iketani conta a história de três estranhos que vão ser atingidos por um caminhão, de repente, eles ouvem uma voz que lhes diz que se aceitarem apertar as mãos um do outro pelo menos uma vez por dia, eles irão viver pelo menos mais sessenta anos.  Enfim, o trio acaba se tornando uma comunidade.  É o que a gente sabe da história até agora.  Tetotetote estará na capa da próxima edição, com um capítulo com 60 páginas, a abertura em cores.

Além deste novo mangá, a revista traz um clearfile de NANA para comemorar a exposição ALL TIME BEST Ai Yazawa Exhibition, a série é publicada na Cookie, ou era.

Comentando Lovespell (Irlanda/EUA/1981): Uma modesta, mas convincente versão para a história de Tristão & Isolda

Dois domingos atrás, finalmente assisti um filme que procurei por mais de vinte anos, Lovespell, uma das várias adaptações para o cinema da história de Tristão e Isolda, um dos meus romances favoritos.  Descobri o filme na época em que Star Trek Voyager (1994-2001) estava sendo exibida, porque o papel de Isolda é interpretado por Kate Mulgrew, a Capitã Janeway, na verdade, foi o primeiro papel dela no cinema.  Já tinha tentado encontrar torrents, mas acabei achando meio que por acaso no Youtube.  Qualidade ruim, mas eu precisava matar a minha curiosidade.  Achei até bem decente, porque é visivelmente um filme de baixo orçamento e acabou saindo no mesmo ano de dois épicos que foram super produções, A Fúria de Titãs e Excalibur, apesar de ter sido gravado em 1979.

Para quem quiser ler o meu resumo da história, que tem inúmeras versões (*e eu estou longe de ter lido todas*) desde o século XII, fiz um post sobre ela muito tempo atrás, está aqui.  Lá, eu conto a história de amor dos dois, coisa que não irei fazer nesta resenha, porque a coisa pode se esticar demais.  Aliás, um ano e pouco atrás, eu reli duas das três versões de Tristão e Isolda que tenho aqui em casa (*1 - 2 - 3*).  Ia resenhar e acabei não fazendo isso, um dia, quem sabe?  Enfim, o tal post foi em preparação para a estreia de Tristan + Isolde, que foi uma das primeiras resenhas que fiz de filme que fiz para o canal.  

Retornando, em uma boa sacada, Lovespell inicia com um texto explicando que a história de Tristão & Isolda foi contada muitas vezes desde o século VI, quando supostamente os eventos aconteceram, e que o filme contará a sua versão do amor dos dois.  Isso é uma forma de neutralizar as críticas a uma falta de fidelidade ao original, que não existe, marquem bem isso, porque há várias versões de Tristão & Isolda, ao mesmo tempo em que se dá ao direito de criar em cima das narrativas medievais.  No caso do filme, o foco fica muito mais sobre o rei Mark, marido de Isolda e tio de Tristão, do que sobre os amantes e é fácil entender esta opção, porque Richard Burton é o nome mais importante do elenco. Já Kate Mulgrew oferece uma Isolda que não é loura, detalhe importante nas narrativas sobre ela, mas é forte e ardilosa como as das primeiras versões da história. Então, como começa o filme?

O rei Marc da Cornualha (Richard Burton) está na Irlanda buscando fazer as pazes com o lorde (Cyril Cusack) cujo cunhado, Morholt, atacou o seu reino e foi derrotado e morto por seu sobrinho, Tristão (Nicholas Clay).  O objetivo maior era conseguir descobrir uma cura para a ferida mágica que o inimigo deixou em Tristão e que não sara nunca.  Marc e seu escudeiro (Niall Toibin) acabam encontrando uma adolescente (Kate Mulgrew) e seu falcão caçando, o acompanhante do rei a confunde com uma camponesa, a trata com desdém, e acaba sendo humilhado por ela.  A jovem se chama Isolda e é filha do tal lorde.  Marc se encanta por ela e o pai da jovem diz que o cunhado era um problema, que não guarda rancor, e oferece os cuidados de Isolda ao sobrinho do rei, porque ela herdou da mãe o conhecimento de ervas e o dom de cura.  Marc parte prometendo à Isolda que iria lhe mostrar a sua corte, afinal, a menina vivia em um castelo depauperado com um pai idoso e uma ama, Bronwyn (Geraldine Fitzgerald) igualmente velha.  Mal sabia a menina, que o velho rei a pretendia apresentar a sua corte como sua rainha.

Tristão segue para a Irlanda para ser curado e levando, também, um pedido de casamento do velho rei para Isolda.  Ele não se sente ofendido pelo tio querer se casar, algo que colocaria em risco sua condição de herdeiro do trono, mas Isolda se mostra incrédula com o pedido.  Marc é um velho com cerca de sessenta anos, ela uma adolescente, ela o via como amigo, não como possível marido.  Tristão defende a causa do tio, mas os dias passam, Isolda cuida dele e ambos se apaixonam, apesar de nada falarem sobre isso.  Bronwyn adverte o pai de Isolda sobre o que está acontecendo e insiste que Isolda deve se casar com o rei, alguém que pode lhe dar proteção.  Ela pede permissão ao seu senhor para recorrer às velhas artes pagãs e preparar um filtro do amor que faça com que Isolda e o marido se apaixonem.  Isolda resiste, mas cede e parte com Tristão para a Cornualha.

Na maioria das versões de Tristão e Isolda, a moça tem uma dama de companhia, Brangaine, que se confunde e dá a poção de amor para os jovens durante a travessia de barco para a Cornualha.  Como Brangaine não existe neste filme, Isolda está informada sobre o filtro e o que deveria fazer.  Curiosamente, o filme opta por unir Tristão e Isolda sem a ação do filtro, ideia que foi acompanhada pelo filme de 2006, mas o herói jamais sucumbiria ao desejo sem um agente mágico o obrigando. Enfim, Isolda parece triste e abatida durante a travessia, Tristão se compadece dela e não consegue resistir mais quando ela lhe declara o seu amor.  O Tristão deste filme, mesmo com este desvio, é muito semelhante ao das versões do poema que li.  Ele é honrado e se vê corroído pela culpa por trair o tio.  O problema é que, nos poemas, ele conhece Isolda antes de Marc, ele a ama primeiro, mesmo só descobrindo seus sentimentos bem mais tarde.

O único problema para mim é que Nicholas Clay interpretou Lancelot e o tom que ele deu para Tristão, e acredito que Lovespell tenha sido filmado antes de Excalibur, é o mesmo.  Sim, sim, o drama de dos dois cavaleiros é semelhante, ambos amam a esposa de seu senhor, mas salvo pelo orgulho que Lancelot demonstra no início de Excalibur, não vejo grande diferença na forma como Clay os interpreta.  Talvez, tenha sido uma escolha, porque nas versões mais tardias, quando Tristão aparece incorporado aos romances arturianos, ele é meio que um duplo de Lancelote.  Enfim, ao chegarem à Cornualha, Tristão se retrai, ele sabe que não deve se aproximar mais de Isolda e é aí que ela lhe dá o filtro sem que ele saiba.  

Nas versões do poema, Isolda sempre teve mais iniciativa mesmo, Tristão é quem mais sofre, pois se sente irremediavelmente preso à rainha e, portanto, cometendo a maior traição contra o tio.  Isolda é capaz de muitos ardis, algo que é reduzido neste filme, para conseguir enganar o rei e a corte e ter Tristão em sua cama.  Já o cavaleiro, faz de tudo para resistir, mas o filtro o impele a agir contra a honra.  Em um filme com mais vinte minutos, essas tensões poderiam ter sido melhor desenvolvidas. Como é um filme de baixo orçamento, há menção a outros sobrinhos de Marc, mas eles não aparecem, quem percebe que há algo entre Tristão e Isolda é o escudeiro do rei, o mesmo que foi humilhado pela mocinha e quer vingança.  Isto fica mais do que claro na forma como ele conduz o rei a descobrir o adultério.

Quem ajuda Tristão e Isolda é Governal (Niall O'Brien), que, nos poemas, tinha cuidado da educação de Tristão desde a infância e o acompanha de seu reino natal, Lionesse, até a Cornualha.  É ele que consegue levar Isolda para ver Tristão antes que ele seja executado e que dá fuga ao cavaleiro.  Achei interessante que o filme tenha colocado a cena da floresta, quando Marc surpreende os amantes fugitivos dormindo juntos floresta, mas separados por uma espada nua, sinal de castidade.  O problema é tudo ter sido muito corrido e enxugado, porque essa parte da floresta demora algum tempo e o efeito do filtro começa a se desfazer, fazendo com que Tristão, ele antes dela, recupere a razão.

Quem tem a personalidade muito vem desenvolvida no filme é o rei Marc e a gente consegue ir da pena à profunda raiva por ele.  Marc não é cruel o suficiente para entregar Isolda aos leprosos, como em algumas versões do poema, ainda que ela fuja para viver entre eles quando descobre que Tristão será morto, tampouco, tolo o suficiente para trocar a esposa por uma canção (*isso não está no filme*), o que, no poema, enfurece Tristão, mas ele se mostra explosivo e capaz de grandes violências.  O filme usa Marc para discutir relações desiguais entre homens e mulheres, não somente no passado, mas no presente.  

Marc, um homem experiente, interpreta a gentileza de uma menina como interesse romântico por ele e a deseja como esposa por acreditar que sendo uma dama-criança (*é o termo usado por ele no filme*), ela será fácil de moldar.  Casamentos com grande diferença de idade entre o homem e a mulher não eram incomuns em tempos passados, mas continuavam não sendo em 1979, ou, hoje.  Não espantava ninguém durante muito tempo ver a modelo de 15 anos "namorando" um homem que poderia ser seu avô, ou casando com ele.  Filmes como O Profissional (1994), de Luc Besson, tornado cult por muita gente, exploraram a tensão erótica entre uma menina de 12 anos (Natalie Portman) e um homem com mais de três vezes a sua idade dela (Jean Reno) e muita gente acha isso lindo até hoje. Portman, assim como outras damas-criança antes dela, tornou-se um símbolo sexual talvez antes mesmo de menstruar.  

O que o filme faz muito bem, e eu o chamaria de feminista neste ponto, é deixar muito claro a violência implícita neste tipo de relação.  Um homem rico acredita ser capaz de comprar uma menina pobre, ainda que nobre, ainda que seu pai e sua velha ama interpretam isso como proteção.  Ao mesmo tempo, ele deseja que ela lhe pague com um corpo submisso, com sorrisos e sua vitalidade.  Isolda não está disposta a aceitar isso, ela ama Tristão, um parceiro que está muito mais próximo dela do que o rei que poderia ser seu avô.  Marc a força e precipita a tragédia.  

Aqui, cabe esticar mais um pouco, Marc não forçou Isolda na noite de núpcias, mostrou-se paciente, porque projetava nela a inocência que despertava o seu desejo, ele poderia esperar mais e seduzi-la, porque ele se achava o mais espetacular dos homens, porém, ao descobrir que ela o estava rejeitando por amar Tristão e já ter se deitado com ele, ele a agride e, muito provavelmente, a violentou, ainda que não vejamos a cena.  O filme mostra muito bem a relação de dominação, a violência de Marc contra Isolda e, em nenhum momento, a coloca tendo dúvidas em relação aos seus sentimentos, ou se sentindo seduzida pelo homem mais velho.  Isolda mente, ela engana, mas ela é fiel aos seus sentimentos por Tristão. Ela resiste, ela quer, e é no filme, senhora também de seu próprio corpo.

Como Lovespell é curto, a passagem de Tristão pela Bretanha, para onde ele foge da ira do tio, é muito corrida.  Assim como Brangaine foi eliminada, o mesmo é feito com Kaherdin, melhor amigo de Tristão.  No filme, o cavaleiro é ferido de morte em uma emboscada feita por salteadores, aqui, achei que o filme foi bem perigoso, e termina sendo acolhido e cuidado por uma dama, a outra Isolda, a das mãos brancas (Kathryn Dowling), que deveria ser a irmã de Kaherdin e sua mãe.  Descobre-se que ele é sobrinho do rei Marc e Tristão diz que somente Isolda, rainha da Cornualha, poderá curá-lo.  Ele manda buscá-la, mas quem vai ao encontro do rapaz é Marc, porque Richard Burton é o verdadeiro protagonista do filme e porque Isolda estava fraca e quase à morte por estar presa em um casamento infeliz.  Sem Tristão, Isolda quer morrer.

Aqui, Lovespell faz uma invertida curiosa, porque nas versões do poema, Tristão pede que Kaherdin erga a vela negra do barco, caso Isolda não venha, pois, assim, ele estará livre para morrer e fica mirando o mar através da janela deitado em sua cama de moribundo.  O filme coloca o pedido nos lábios de Isolda e é ela quem fica observando o mar.  Marc traz Tristão, parece perdoá-lo, mas, tomado pelo ciúme, por vingança, ele exibe a vela negra quando já está próximo da Cornualha e provoca a morte de ambos os amantes.  É muito diferente do poema, porque tira, também, o peso das costas da outra Isolda, que teria mentido ao marido que a vela era negra para se vingar da sua rejeição.  Melhor assim.  A Isolda das mãos brancas deste filme até se apaixona por Tristão, deseja ser amada por ele, mas age movida pela bondade e, claro, Tristão não se casou com ela como nos poemas e a ofendeu.  Aliás, nos poemas esta é a única cachorrada que Tristão faz, casar com outra acreditando que poderia esquecer Isolda e acaba trazendo sobre si mais desgraça.

Enfim, demorei muito tempo para concluir esta resenha.  Estou meio triste esses dias e tenho publicado pouco no blog, porque minha filhinha está de férias e longe de mim, mas precisava terminar o texto.  Eu realmente ainda acredito que é necessário que Tristão e Isolda recebam uma adaptação a altura, mas Lovespell me impressionou na sua simplicidade.  No geral, ele respeitou as personalidades das personagens originais, mesmo alterando e enxugando a história.  Algumas opções, como eliminar Kaherdin e Brangaine ou colocar Tristão cedendo e fazendo amor com Isolda antes do filtro do amor, não me agradaram.  O cavaleiro precisava desse catalisador, no entanto, na lógica do filme, o amor dele já era grande demais para que ele resistisse.  

O figurino do filme, mesmo pobre, é interessante.  No início, as roupas sem forma da Isolda adolescente me pareceram visualmente desagradáveis, mas, como o passar do tempo, e o amadurecimento da personagem, ela ganhou alguns bons vestidos.  As roupas masculinas optaram por passar a ideia de transição de um mundo romano para a Idade Média.  O que não dá muito para aceitar é Nicholas Clay sempre de pernas de fora naquele frio.  Ele deveria usar meias, ou algo que parecesse com isso.  De qualquer forma, a proposta do filme é ser o mais realista possível.  Fala-se de mágica, há o filtro, mas é o único elemento realmente fantástico da história.  Já a corte de Marc, ainda que muito melhor que a do pai de Isolda, é bem modesta.  Nada do brilho e do recurso aos mitos que seria visto em Excalibur.  

Bem, acho que é isso.  O que mais escrever?  Sim, sim, o filme cumpre a Bechdel Rule, porque Isolda e Bronwyn conversam sobre magia, filtros e a mãe de Isolda.  Fora isso, o filme tenta colocar que Isolda, sua mãe, Bronwyn, teriam sido pagãs até algum tempo e que a princesa curandeira não abandonara de todo as tradições de seus ancestrais.  Deixar a Irlanda, casar-se com Marc iria domesticá-la ainda mais.  Aliás, é o amor possessivo do rei, um homem poderoso que não aceita um não e que se apaixona por uma menina, que termina por destruir Isolda e, claro, Tristão.   Há muito pouca informação sobre este filme na internet, talvez, por não saber quais o título que este filme teve no Brasil.  Encontrei em um site o título de Pecado Mortal, que não faz muito sentido com o que é narrado, em outro, além deste nome, Magia do Amor, tradução direta do título em inglês.  Coloquei o filme abaixo, para quem quiser.