segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O fenômeno Kimetsu no Yaiba se impõe na lista das séries e volumes mais vendidos do ano

Kimetsu no Yaiba (鬼滅の刃) é um fenômeno, você já deve ter lido isso em vários lugares.  Crítica, público, vendagem, tudo está corroborando isso.  É até chato publicar mo ranking Oricon e ver a ocupação de praticamente todas as colocações do ranking com volumes da série semana a semana.  Só clarificando, há mangás que vendem bem, há mangás que vendem muito bem e há aqueles arrasa-quarteirões que estão além da escala.  

Uma série que vende bem, é um sucesso, mas se um arrasa-quarteirão consegue ocupar praticamente todas as posições do ranking, coisa que One Piece nunca fez, fica complicado mapear, por exemplo, quais os shoujo e josei que estão se saindo bem no mercado japonês.  Ano passado, já não havia mangás femininos entre os 50 volumes mais vendidos da Oricon, agora, bem, não há quase nada além de Kimetsu no Yaiba na lista de 30 que o ANN publicou, não sobrou espaço nem para os shounen e seinen.  Deveriam publicar os 50 mais vendidos, como era antes.  

Eu acompanho esses mapeamentos faz muito tempo e realmente é algo de cair o queixo.  Kimetsu no Yaiba vendeu 82,345,447 de cópias entre 18 de novembro do ano passado e 22 de novembro deste ano, praticamente o dobro do ano passado.  Para efeito de comparação, os segundo colocado, Kingdom, que não tem um volume sequer entre os mais vendidos, 8,251,058.  Isso é o normal para um arrasa-quarteirã.  E One Piece aparece somente em terceiro lugar, vendendo muito menos do que costumava vender.  É o fim do reinado de One Piece?  Acredito que não, mas Kimetsu no Yaiba alavancou a indústria de mangás este ano de uma forma nunca vista.  

Antes, os mangás mais vendidos, os cinco primeiros do ranking vendiam entre 3 milhões e 500 mil e 2 milhões de exemplares, este ano, os 23 primeiros colocados venderam acima de 2 milhões de exemplares, é realmente surpreendente.  Ano passado, o volume de Kimetsu no Yaiba melhor colocado tinha vendido somente 926,446 exemplares.  O salto foi muito grande mesmo.  Resta saber o quanto isso dura e se a autora vai conseguir superar esse seu primeiro grande sucesso, porque, sinceramente, mesmo que ela realmente termine o mangá, acho que ele vai continuar grudado nela para sempre.

Campanha pela Eliminação da Violência contra as Mulheres (Dia 6): Tráfico de Mulheres não diminui com a pandemia

 

Prostituição é um tema polêmico entre as feministas.  Há quem defenda que não somente a prática, algo permitido pela lei brasileira, mas, também, o agenciamento, a cafetinagem, seja liberada.  Normalmente, quem assume essa posição quer proteger as mulheres, porque elas são a maioria das pessoas envolvidas nessa atividade, acaba tentando diminuir ou negar que a própria ideia da prostituição parte da ideia de que os corpos das mulheres podem ser apropriados pelos homens, precificados, porque eles são os principais consumidores.  E para esses que usam os corpos das mulheres, normalmente, pouco importa se elas estão ali por desejo próprio, por falta de opção, se são adultas, menores de idade, ou ainda, se são escravas.

Esta matéria na qual tropecei comenta que quase 100 mulheres foram traficadas para a Escócia, mesmo com as fronteiras fechadas, porque a demanda não diminuiu por causa da pandemia. Talvez, elas fossem prostitutas que acreditavam que iriam "trabalhar" legalmente, mas acabaram sendo transformadas em escravas modernas.  A polícia da Escócia identificou 84 vítimas de exploração sexual nos últimos nove meses, mas alertou que a verdadeira escala do problema será muito pior.  A polícia ressalta que essas são as mulheres identificadas, deve existir outras.  “As pessoas devem entender isso aqui e agora. A escravidão não é coisa do passado, está acontecendo em todos os lugares da Escócia.”, dia o inspetor Fil Capaldi.

Nem todas as 84 mulheres foram exploradas na Escócia, mas a maioria estava no Reino Unido e estava sendo transferida para o outro lado do país. Em 2019, 114 mulheres traficadas para sexo foram identificadas.  Capaldi disse: “Quando as fronteiras internacionais se abrirem novamente, veremos um aumento no tráfico. As rotas se abrirão novamente e veremos um fluxo de pessoas chamando nossa atenção como resultado.”  Ele notou que as regras de confinamento impostas em alguns países pode ter facilitado os traficantes, restringido ainda mais a possibilidade de ir e vir das vítimas e, claro, suas chances de buscar socorro.

Investigações recentes da polícia documentam centenas de milhares de libras movimentando-se entre contas bancárias, com mulheres sendo vendidas a apostadores por cerca de £ 120 a hora. Mas as mulheres verão uma pequena fração desse dinheiro, se é que receberão.  Quatro pessoas foram presas por um total de mais de 36 anos em 2018 pelo tráfico e exploração de 10 vítimas de exploração sexual e casamentos simulados na Escócia. Uma vítima foi vendida em uma rua de Glasgow por cerca de £ 10.000.  Na semana passada, duas pessoas foram presas que exploravam sexualmente cerca de uma dúzia de mulheres traficadas.


Capaldi disse que os sites de serviços para adultos continuam lucrando com a miséria das mulheres.  Ele disse: “Ainda havia homens comprando sexo online e não vimos uma queda nisso.  Os sites são os facilitadores mais significativos da exploração sexual ligada ao tráfico no Reino Unido.”  

Nos seis meses até outubro, a Trafficking Awareness Raising Alliance (Tara) estava apoiando 73 vítimas de tráfico sexual, 38 das quais haviam sido encaminhadas desde abril.  A organização, que apoia as vítimas, estava preparada para uma diminuição do trabalho durante a Covid, isso não aconteceu, porque os “consumidores” ignoram os riscos.  O serviço foi acessado por 59 novas vítimas até março de 2020, contra 44 no ano passado, e apoiou 114 mulheres em comparação com 83 em 2018/19.  Ela acontece em meio à campanha nacional de 16 dias pelo fim da violência contra as mulheres, que começou na última quarta-feira, Dia Internacional da ONU pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres.  A matéria termina explicando que qualquer pessoa preocupada com a escravidão moderna deve denunciar e dá os números de referência na Escócia.

Campanha pela Eliminação da Violência contra as Mulheres (Dia 5): Candidatas são alvo de grande violência durante as eleições

Hoje, tivemos o segundo turno, nenhuma mulher venceu, somente uma mulher irá governar uma capital do paísPalmas elegeu Cinthia Ribeiro (PSDB) no 1º turno.  Havia mulheres disputando as eleições em várias cidades, algumas foram eleitas, outras, não. Parece que as condições são de igualdade, mas a política ainda é encarada como um terreno masculino e as mulheres são pressionadas de várias formas a deixarem o terreno livre para os homens.  Isso vale para a esquerda e a direita com poucas diferenças.  Elas têm filhos para cuidar e as reuniões políticas podem entrar noite a dentro.  Eles são vistos como mais confiáveis e são estimulados a serem agressivos e competitivos desde a infância.  Já elas, devem ser doces e cuidar dos outros, por isso, é muito comum que sejam relegadas a um segundo plano, escolhidas como vices simbólicas, vide o caso da chapa derrotada para a prefeitura do Rio de Janeiro.  A legislação eleitoral tem pressionado os partidos a cumprirem cotas de mulheres, mas, em vários casos, é somente isso mesmo, cotas.

Agora, quando as mulheres se lançam como candidatas realmente competitivas, elas são alvo de intimidação, difamação e violência que os homens normalmente não costumam sofrer no mesmo grau.  Eu somente soube hoje, mas a deputada estadual Adriana Accorsi (PT), candidata à prefeitura de Goiânia, teve suas filhas ameaçadas de morte durante o primeiro turno.  O celerado, que usava a foto de um jovem norte-americano com um fuzil, é pescador, tem 27 anos e é morador do Acre.  Sim, ele não mora em Goiás, ele só quer destilar seu ódio às esquerdas, aos nordestinos e tentar intimidar uma mulher, porque mesmo policial, ela é uma mulher. 

Vejam, não estou entrando em discussões sobre a competência da candidata, mas como é comum esse tipo de tentativa de intimidação e que usar as filhas da candidata "Comunista já comprou o caixão da Verônica e da Helena?".  É preciso ter estômago para entrar na política, serve para homens e mulheres, mas as mulheres são particularmente atacadas, especialmente, em ambientes nos quais a extrema-direita, que é misógina por princípio, tem liberdade para atuar.

Em Porto Alegre, a candidata Manuela D'Ávila foi particularmente alvo desses ataques que buscaram atingi-la não somente por ser de esquerda, mas por ser mulher.  Ela já havia entrado em desvantagem no segundo turno e seguiu assim até ser derrotada hoje.  E, não, não vou comentar Recife, briga de família mais que qualquer coisa, mas a candidata Marília Arraes (PT) sofreu vários ataques misóginos, por exemplo, seus adversários deram o seu nome a uma cadela de rua (*vadia, portanto*).  

É um modus operandi comum e não somente contra candidatas de esquerda, é comum contra mulheres candidatas.  Elas são atacadas não somente, ou principalmente, por suas ideias, partidos, mas por serem mulheres.  Enfim, precisamos de mais mulheres na política, representatividade.  Eu defendo que nenhuma representatividade é vazia, nem que seja para derrubar na cabeça de certos delirantes a ideia de que as mulheres são sempre vítimas do sistema e não cúmplices dele.

domingo, 29 de novembro de 2020

Comentando Gambito da Rainha (Queen's Gambit/Netflix/2020): Nunca o Xadrez foi tão bonito e a Relação entre Homens e Mulheres tão mentirosa

Na sexta-feira me envolvi em uma série de discussões sobre The Queen's Gambit sem ter assistido a série, somente tendo como referência aquilo que tinha lido de bom e de crítico em relação ao seriado que já criou um fandom apaixonado todo seu.  Tão apaixonado e agressivo que convenceu até autodeclaradas feministas de que é correto falar de um ambiente hostil às mulheres sem tocar nessa questão e que isso seria OK.  Na série, a jovem prodígio do xadrez Beth Harmon é somente mais um dos caras, ser mulher não teve impacto significativo na sua trajetória.

Ainda assim, eu preciso dizer que The Queen's Gambit é muito bom, mas muito perigoso por ter ido além de obras anteriores de menor repercussão ou alcance, como o novo Emma, baseado em um livro de Jane Austen, e estrelado pela mesma e excelente Anya Taylor-Joy.  E aviso de pronto que esta resenha terá spoilers, ainda que eles sejam atinentes somente ao ponto principal daquilo que quero pontuar, isto é, como o seriado cria uma ideia totalmente fantasiosa a respeito das relações entre homens e mulheres, negando-se, inclusive, a abrir uma janelinha para o que estava acontecendo no mundo durante a década de 1960.  Aviso logo que se você acredita que Queen's Gambit é perfeito, ou que é só sobre xadrez, o texto não irá lhe agradar e nem é a minha intenção agradar ninguém, aliás.

Nossa história começa em  Lexington, Kentucky, estado rural dos Estados Unidos, nos anos 1950.  Beth Harmon (Isla Johnston) tem oito anos, sua mãe acabou de morrer em um acidente de carro.  Ninguém sabe quem é seu pai.  Ela é enviada para um orfanato cuja proposta é criar menininhas dóceis e que possam ser adotadas.  Dentro dessa proposta, as meninas recebem diariamente uma dose de vitaminas e tranquilizantes, algo comum nos EUA da época, o que dará início ao ciclo de dependência química da protagonista.

Beth se sente isolada, salvo pela amizade com uma garota mais velha e negra que também mora no orfanato, Jolene (Moses Ingram).  Para mim foi uma surpresa o orfanato não ser segregado, mas a série segue o livro.  As coisas mudam, quando Beth descobre que Mr. Shaibel (Bill Camp), o zelador, joga xadrez.  Ela fica fascinada pelo jogo e, apesar de ouvir dele que "Meninas não jogam xadrez", ela insiste e o velho decide lhe ensinar.  A garota, que herdou o talento matemático da mãe e tem seus sentidos aguçados pelos tranquilizantes, vê as peças se movendo no teto do quarto.  

Beth se mostra um prodígio, isto é, uma criança capaz de enfrentar e vencer oponentes que deveriam lhe ser muito superiores, e Shaibel decide fazer o possível, dentro das suas poucas possibilidades, para que a menina possa se desenvolver no xadrez.  Lhe ensina tudo o que sabe, lhe dá livros e ela absorve tudo o que pode, até ser obstruída pela diretora do orfanato, a Sr.ª Fergusson (Akemnji Ndifornyen).

Quando já não tinha esperanças de adoção, Beth acaba sendo escolhida por um casal, Allston e Alma Wheatley (Patrick Kennedy e Marielle Heller).  Só que a jovem, agora com 15 anos, se não me perdi nas idades, cai em um lar disfuncional e, logo, terá que conviver somente com Alma, uma dona de casa frustrada e dependente dos mesmos remédios que Beth tomava no orfanato.  Sorte, não?  A menina parece meio perdida, sem conseguir se relacionar com os adolescentes de seu novo colégio até que redescobre o xadrez.  Primeiro, nos livros da biblioteca, depois, quando consegue, graças à ajuda financeira do Sr. Shaibel, se inscrever em um torneio local de xadrez.

Beth, aos quinze anos, vence o campeão estadual, Harry Beltik (Harry Melling), e conhece um rapaz por quem alimentará uma paixão não correspondida ao longo de toda a série, Townes (Jacob Fortune-Lloyd), além dos gêmeos Matt e Mike (Matthew e Russell Dennis Lewis), que trabalham registrando os participantes.  O prêmio de 100 dólares chama a atenção de sua mãe, que estava reduzida a uma situação econômica muito difícil depois de abandonada pelo marido.  Assim, ela decide investir na carreira de Beth.  A partir desse momento, vemos Beth galgar os degraus do mundo do xadrez profissional e competitivo, enfrentando e destruindo seguidamente seus oponentes, todos homens, e suportando mal seus poucos reveses, como quando não consegue vencer outro prodígio do xadrez, Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster), ou nos seus frustrados enfrentamentos com o soviético Vasily Borgov (Marcin Dorociński).  Mas, sim, no final, depois de muitos altos e baixos, nossa Beth triunfará.

Não descobri o xadrez com o Gambito da Rainha.  Jogo xadrez de forma muito amadora desde o final da adolescência.  Conheci o relógio, ao qual Beth foi apresentada no seu primeiro torneio, na época da faculdade.  Como medievalista, já li bastante sobre as origens do jogo e seus possíveis antecessores, como o Senet egípcio.  Por ter assistido a um documentário sobre as irmãs Polgar, Susan, Sofia e Judit, todas três grandes mestres do xadrez, Judit a pessoa mais jovem a receber o título até então (*e já foi superada*), ensinei o que sabia do jogo par a minha filha quando ela completou 4 anos.  Ela gosta de xadrez, espero que consiga jogar de verdade e, não, ficar somente no estágio ridículo no qual parei.

Curiosamente, só me prontifiquei a assistir o seriado, porque tive discussões no Facebook com gente que dizia que as críticas de uma das irmãs Polgar ao apagamento do machismo da série seriam absurdas.  Afinal, é uma série sobre xadrez, não sobre machismo, e Susan Polgar nada entendia sobre roteiro e construção de personagens. Quer dizer, o fato dela, uma grande mestre do xadrez, apontar que, apesar de ter amado o seriado, Beth não seria recebida com afagos e gentilezas por todos os seus oponentes masculinos, que sofreria assédio de várias formas, não conta por você ter achado a série muito legal?  Não.  E concordo com este artigo que diz que Queen's Gambit é ideal para quem procura escapismo e glamour.  

Sim, glamour, afinal, o figurino da série, que comentarei mais lá no final, é espetacular, as locações, também.  Fica parecendo, e é assim que a mãe adotiva da personagem pensa, que o mundo do xadrez é ideal para quem gosta de viajar e ficar em hotéis luxuosos. quando uma dona de casa americana média poderia sonhar em conhecer Vegas, Cidade do México, Paris, Moscou?  E justiça seja feita, os primeiros capítulos de Queen's Gambit são melhores na discussão do machismo do que os demais, mas, obviamente, não há menção ao que acontecia nos EUA naquele momento nesse campo, por exemplo, A Mística Feminina de  Betty Friedan, uma crítica a essa vida pouco compensatória que Alma tem, foi lançado em 1963, por acaso, o ano do primeiro torneio de Beth, ou o que vem logo em seguida.

Alma é prisioneira de um casamento infeliz, de um papel que não deseja, o de dona de casa convencional.  A personagem não tem compensação alguma, nem sexual, nem social e se refugia no álcool e nas drogas lícitas, assim como uma colega de colégio que Beth reencontra anos depois já mostrando os mesmos sintomas de frustração.  Casara-se logo depois de sair do colégio, tinha roupas e casa suburbana, um marido provedor, uma filha, o que poderia querer além disso?  Enfim, para Alma, o universo do xadrez é uma chance de conhecer o mundo e se divertir.  Para Beth é sua vida, o que dá razão para a sua existência, e ela precisa estudar e muito.  

Nesse aspecto, Queen's Gambit é perfeito ao mostrar que um enxadrista profissional precisa se dedicar a horas e horas de estudo.  Ainda na fase do orfanato, a menina Beth diz que somente sobre a Defesa Siciliana há 57 páginas no livro que o Sr. Shaibel lhe deu.  Mesmo talentosa, e a série enfatiza isso o tempo inteiro, Beth precisa estudar e treinar e, claro, aprender a lidar com a derrota.

Retornando, se não queriam falar que o mundo do xadrez é machista, bastava colocar um homem no papel de Beth e o protagonista só teria que enfrentar a questão geracional.  Um garotinho enfrentando homens mais velhos e os vencendo um a um, apesar de suas inseguranças.  E é interessante, porque a própria Beth no seriado, que eu vi sendo descrita como "alguém muito foda que não está nem aí para o fato de ser mulher", o que poderia até ser, mas não teria impacto algum sobre os homens ao seu redor, foi bem desdenhosa com um oponente soviético de 13 anos.  

A atitude dela foi tão ruim, ou até pior, do que a imposta a ela quando novata (*não por ser mulher*) com sujeitos bocejando, ou se atrasando para as partidas. Claro, no final, ela dá um afago no garoto, que comportara-se como um cavalheiro, mas eu fiquei torcendo para que o menino a derrotasse.  Essas sequências de Queen's Gambit só se prestam a reforçar que Beth, salvo pela sua juventude é somente um dos caras, o que ela nunca seria se a série tivesse uma abordagem minimamente realista sobre a situação das mulheres no xadrez, ainda mais na década de 1960.

Queen's Gambit teve como fonte um livro de 1983 e o autor, Walter Tevis, baseou-se para criar a personagem de Beth em Bobby Fischer (1943-2008), o mais jovem grande mestre do xadrez antes de Judit Polgar e um símbolo dos EUA durante a Guerra Fria.  Afinal, ele foi usado na propaganda contra a União Soviética nos seus vários confrontos com os soviéticos (*russos, georgianos, ucranianos etc.*), que dominavam as competições internacionais.  Talvez, Tevis tenha sido irônico ao criar Beth, porque Fischer era conhecido por sua misoginia (*além de racismo, antissemitismo e a lista continua*).  

Vejam só esse trecho de entrevista de Fischer em 1963, contemporâneo ao seriado, portanto, mas deixo destacada esta frase "Elas são péssimas jogadoras de xadrez... Acho que não são tão inteligentes... Não acho que elas devam mexer com assuntos intelectuais, elas devem se manter estritamente em casa".  Por aí vocês já podem imaginar o quanto o seriado da Netflix foi omisso.  E a culpa não foi do livro, porque encontrei artigos comparando as versões e todos eles pontuaram que o seriado de TV retirou situações que sugeriam lesbianismo, racismo e, claro, limpou as personagens masculinas do seu machismo, algo que seria comum na época, tornando a situação de Beth nessa área bem tranquila.  Fica até parecendo que ser mulher a ajudou no mundo do xadrez, afinal, ela estava cercada de homens querendo ajudá-la, lhe abrindo a porta, oferecendo flores, orientando e estimulando.  

Curiosamente, há um artigo do The Guardian que elogia esse aspecto de Queen's Gambit, ele tem o título de "Sem abuso, sem assédio, sem sexismo - os homens decentes que fazem de The Queen's Gambit uma verdadeira raridade na TV".  A autora, uma mulher, sim, dá mais legitimidade quando é uma de nós a escrever essas coisas, ressalta como está cansada de ver seriados mostrando as agruras impostas às mulheres pelos homens, e cita Mad Men, que é realista em relação ao sexismo e o racismo e se passa exatamente na mesma época de Queen's Gambit.  Para pessoas como a autora do texto do The Guardian, é melhor reinventar o passado e apresentá-lo como menos agressivo com as minorias.  Aliás, as meninas do colégio são bem mais agressivas com Beth, fisicamente, inclusive, do que os homens da série.  Curiosa essa escolha.

Se você não entendeu ainda o problema disso tudo, deixa a tia professora de História tentar explicar.  A imagem que muita gente tem do passado é moldada pelo que ela consome, filmes, seriados, animações tem grande importância na forma como nós montamos um retrato das décadas passadas, dos séculos e milênios distantes.  Por exemplo, o público internacional que consome novelas brasileiras, tende a acreditar que somos mais brancos do que realmente somos, graças às produções da Globo, principalmente.  

Você viu o seriado, depois assistiu um youtuber com sabe-se lá quantos mil ou milhões de seguidores elogiando a série, ou um especialista em xadrez mostrando como a série é precisa, que teve como consultor o grande mestre Garry Kasparov, você gostou de Queen's Gambit, logo, aquilo é verdade.  Você é homem e se sente incomodado com a forma como alguns produtos culturais apresentam o grupo ao qual pertence. Assiste Queen's Gambit e se sente feliz, porque os homens da série são todos legais com Beth.  Você já acreditava que as feministas mentiam, agora, você tem certeza.  Você vê um negro em posição de poder no orfanato e zero comentário sobre a luta de direitos civis ou sobre segregação. Está vendo que essa história de racismo é uma bobagem inventada pelos ativistas de nossos dias?  

Curiosamente, tenho percebido que esse tipo de reinvenção do passado pode ser uma tendência nas produções norte americanas atuais.  O novo Emma (*resenha*) mostra uma relação horizontal entre homens e mulheres da mesma classe social no início do século XIX, em Enola Holmes (*resenha*), mesmo pesando a mão de forma caricatural ao falar das questões das mulheres, temos montes de homens bonzinhos e uma Inglaterra vitoriana que parece não ser racista.  E os elogios aos silêncios de Queen's Gambit são ainda mais perigosos dada a repercussão e qualidade do seriado, porque podem ajudar nesse terraplanismo histórico. A série é muito, muito boa, esse mundo que ela apresenta é muito legal para não ser verdadeiro.  Que tal produzirmos montes de séries e filmes assim?

Resumindo, Queen's Gambit poderia continuar sendo sobre xadrez e evidenciar as dificuldades de Beth por ser mulher sem atrapalhar o desenvolvimento do roteiro.  Foi uma opção silenciar sobre isso, ou enfatizar uma atitude positiva dos homens em relação à protagonista o TEMPO TODO.  Aliás, eu acredito que só se comenta superficialmente de Guerra Fria no seriado, porque é preciso falar dos soviéticos, pois não temos nada de citação de contexto histórico, nem assassinato de Kennedy, nem Guerra do Vietnã, nem da morte de Martin Luther King, nem movimento Flower Power, nem nada.  ZERO.  

Eu sei que alguém vai repetir que a série era sobre xadrez e eu vou insistir que isso não justifica os silêncios.  E eu vou dar um exemplo, em Minha Mãe é uma Sereia, um filme que não era político, o trauma do assassinato de Kennedy é introduzido na narrativa com grande competência e termina por valorizar o roteiro.  Olha, se você pode colocar esse tipo de informação em um filme de menos de duas horas, em sete capítulos de 50 minutos, ou mais, vide o último episódio, você tem obrigação de fazê-lo.


Sigamos, vamos falar de um aspecto curioso de Queen's Gambit e conectado  a esse momento em que vivemos, a obsessão pela dessexualização das personagens femininas, mesmo que a série seja dúbia em relação a isso.  Eu não sei como a coisa é apresentada no livro, mas a Beth criança tem grande curiosidade pelo sexo.  Há uma cena que aparece mais de uma vez, acho que três, na fase do orfanato, em que Beth observa casais de adolescentes namorando além da cerca.  Jolene, a menina negra mais velha, lhe orienta sobre algumas coisas quando ela lhe pergunta sobre o tema e há os filmetes educativos/terroristas no orfanato.  

Mais tarde, no colégio, ela vê uma das garotas populares, a que eu citei lá em cima, se agarrando com um rapaz na biblioteca.  Beth fica curiosa e excitada.  Pouco depois, a menina se apaixona perdidamente por Townes em uma partida que provou que o xadrez pode ser muito sensual.  Eu adorei essa parte e o ator em questão é o homem mais bonito do seriado para mim.  Mas é isso, temos sensualidade, algo potencializado pela beleza de seu figurino depois desse primeiro triunfo de Beth, mas sexo, ou amor, não é discutido de forma mínima no seriado.


Apesar disso tudo e de estarmos nos anos 1960, e de Beth não sofrer nenhuma castração por parte de Alma, desde que ela não engravide, sua vida sexual é bem limitada e sem graça.  Na verdade, a série meio que dessexualiza os anos 1960 como um todo da mesma forma que ameniza a misoginia do período.  Beth não sofre assédio sexual em um meio masculino, os meninos com quem transa precisam quase receber um ultimatum da parte dela para tomarem alguma atitude, enfim, tudo isso faz parte do pacote colorido do seriado.  

Beth aparentemente perdeu a virgindade com um colega, um cara mais velho, do curso de russo em uma sequência que parece mais indicar que gente sobre efeito de drogas não consegue transar direito do que qualquer libido da parte dela.  O núcleo da faculdade, onde Beth estuda russo, comporta-se de forma mais aberta em relação ao sexo e drogas, além de vestir um figurino mais moderno e muito diferente da mãe suburbana de Beth e dela mesma.  Eles estão mais perto dos anos 1970, elas, dos anos 1950.  Depois, quando seus jovens rivais no xadrez, e que foram humilhados por ela, Beltik e Watts, eventualmente passam por sua cama, nada se vê de toques e carícias, os meninos não tomam a iniciativa, e a cara de insatisfação de Beth é evidência de que a coisa não é tão boa assim.  O xadrez, o álcool e os tranquilizantes são mais interessantes.


Com Watts, Beth chega a murmurar que tinha sido bom, mas quando o rapaz começa a falar de xadrez na cama, ela se ressente.  A atitude dele é pintada como egoísta e narcisista, mas Beth fizera quase a mesma coisa depois de transar com Beltik.  Antes disso, ela passara semanas na casa de Watts, estudando e treinando.  Quando ele a convidou para ficar hospedada lá, tinha-lhe dito que não haveria sexo entre eles.  Watts é o bad boy da série e com um grupo de amigos envolvido em uma relação poliamorosa, mas ele não tem nenhum impulso de sequer beijar Beth, só lá pelas tantas ele pergunta se ela ainda acha o cabelo dele bonito e a cosia acontece.

Acho que é no artigo do The Guardian que eu citei que a autora fala que Queen's Gambit prova que é possível mostrar que existe amizade platônica entre homens e mulheres.  A graça é que todos os homens jovens da série com nome e alguma importância na história são fascinados por Beth e, salvo talvez pelos gêmeos, a desejam.  Da parte deles, nunca foi só amizade, muito menos algo platônico.  Mas vamos para Townes, porque aqui a coisa fica um tiquinho mais séria.


Em qualquer resenha do livro, ou da série com spoilers, é dito que o Townes é gay e tem um companheiro.  Ele conhece Beth no primeiro torneio, a câmera age como se fosse o olhar da protagonista, concentrando-se nos lábios do moço, o traço mais marcante do rosto do rapaz.  Ele era do time da universidade.  Mais tarde, e eu realmente fiquei perdida com a idade da protagonista, no último episódio em 1968 é dito que ela ainda tem 20 anos, ela reencontra Townes em Vegas.  Eu me preocupo com a idade, porque é complicado até tentar precisar quão mais velhos que ela eram os moços que eu estou citando.  Enfim, Townes agora é repórter para a principal publicação de xadrez do país e quer entrevistá-la.  

Ele a leva até seu quarto, a moça fica nervosa e excitada, há um clima inegável de sedução entre os dois, ele está tomando a iniciativa e aparece o namorado.  O rapaz entende o que está ocorrendo, o que pode sugerir que não foi bem a primeira vez que Townes o traiu.  A adolescente Beth fica confusa e frustrada, não poderia ser diferente.  Imaginem que estávamos em meados dos anos 1960, antes de Stone Wall e ela era uma moça do interior e sua primeira experiência sexual tinha sido muito esquisita, mas, agora, ela estava sozinha com o sujeito de quem gostava fazia vários anos e, bem, acontece isso. 


O tempo passa e Townes e Beth se reencontram em Moscou, se reaproximam, ele se desculpa por não ter explicado as coisas.  Perguntei-me como se poderia fazer isso naquele contexto.  Ser abertamente homossexual não era algo aceitável na maioria dos lugares e Beth era jovem demais para entender e apaixonada ainda por cima.  A cereja do bolo, ela se desculpa por não ter compreendido a situação do moço e rompido uma amizade que o seriado nem consegue mostrar que existia.  

Repito, eles estavam na década de 1960, não no século XXI.  Homossexualidade era vista como doença, ou crime.  Agora, se quisessem ser mais modernos, Townes poderia ter falado de fidelidade ao companheiro e não que quase tinha cedido à tentação. Ora, como homem gay ele não teria desejo sexual por Beth, ou teria?  A meu ver ele é bissexual, ele está construído dessa forma na séria, e seria mais interessante investir nessa seara, mas não foi a escolha da série.  


Além de Townes, temos tanto Beltik quanto Watts, que tinham sido escorraçados por Beth, mais os amigos do segundo e os gêmeos, ajudando Beth a vencer Borgov no episódio final.  Eles estão nos EUA, na casa de Watts, o que significa que os gêmeos e Beltik se deslocaram para Nova York e agindo como seu time de apoio, assim como agiam os soviéticos.  É bonito de se ver, é emocionante, mas é aquilo, uma situação das mais irreais.  Quando os homens se tornaram tão cruéis com as mulheres?  Quando passaram a se ofender por pouca coisa, como serem serem derrotados por uma adolescente?  Será que a culpa é nossa?  E se os homens não se importavam de Beth ser uma mulher, por qual motivo há tão poucas mulheres no xadrez competitivo? Ah, se elas se esforçassem um pouquinho mais, quem sabe?

Falando das mulheres na série além de Beth.  Elas existem, há várias com nomes.  Temos a mãe de Beth, Alice, que é uma personagem nebulosa.  Ela aparece em quase todos os capítulos com Beth se recordando de acontecimentos da sua infância, dos conselhos da mãe e de como ela sempre parecia no limite. Sabemos que ela nasceu rica, casou-se bem, mas como seu casamento se desfez, não somos informados.   


Sabemos, também, que ela estudara matemática em Cornell, uma importante universidade dos EUA, que tinha doutorado e lecionara lá.  Em uma cena, Alice descreve a filha como um "glitch", um erro, uma falha.  A menina não compreende bem, mas leva essa informação consigo.  Mas vemos essa mãe se recusando a falar com o ex-marido, que parece um homem mais velho, quando ele quer ver Beth, depois, quando ela lhe pede ajuda, ele a recusa. Tem outra família, esposa e um filho. Alice é meio que um fantasma, porque pode sugerir que Beth tinha alguma patologia psiquiátrica herdade da mãe, assim como seu pendor para a matemática.  E há muito de matemático no xadrez.

A esposa de Borgov (Janina Elkin) é a intérprete do marido, não se referem a ela pelo seu nome próprio. Ela está na série como um válido elemento de humanização do principal oponente de Beth, um homem que ama a família, que mostra compaixão por Beth, inclusive a defendendo diante dos colegas russos jogadores que a criticam.  Já Jolene (Chloe Pirrie) participa de três episódios, sempre a mesma atriz, aliás, o que me incomodou, porque ela sempre parecia uma mulher adulta, mesmo tendo 13 anos.  


Ela está na fase do orfanato e no último capítulo, quando Jolene reaparece na vida de Beth empoderada, formada na faculdade, com planos de carreira muito claros e disposta a ajudar a amiga.  No livro, pelo que li, ainda que as duas não se falem, Beth vê em Jolene um modelo.  O seriado simplesmente não faz essa ponte.  Aliás, não sei se está no livro, mas fica difícil imaginar Jolene, a menina boca suja e candidata à marginal, se esforçando nos estudos e conseguindo uma bolsa na universidade. De novo, silêncio sobre obstáculos que seriam colocados para meninas, neste caso, além de pobres, negras.

A outra personagem feminina que tem algum destaque inclusive para mostrar como o roteiro escorrega é Annette Packer (Eloise Webb).  A moça foi colocada como primeira oponente de Beth em seu torneio de estreia menos por ser mulher e principalmente porque a protagonista não tem pontuação na associação de xadrez.  Packer tinha experiência nos campeonatos, Beth era uma novata.  Além dos gêmeos e Towse, ela é a única que acolhe Beth, apesar da moça tímida e sem traquejo social não conseguir retribuir-lhe com gentileza.


Packer retorna já no penúltimo capítulo, estudante de medicina, tendo largado o xadrez.  Ela agradece Beth pelo que ela fez por todas as mulheres.  A cara da protagonista, que estava meio chapada, é interessante, porque, efetivamente, deveria ser parecida com a minha assistindo essa cena.  Beth nada fez pelas mulheres.  Não há sequer uma cena mostrando meninas jogando xadrez, ou uma referência a isso, mesmo na pracinha em Moscou não aparecem mulheres jogadoras.  Veja, se não quer falar do que tinha que ser falado, melhor não fazer esse tipo de coisa.  

Lembrei na hora do filme A Dama de Ferro (*resenha*), quando uma mulher se aproxima de Margaret Thatcher e diz que se inspirou nela e agradece e a primeira-ministra diz que não fez nada pelas mulheres, fez por si mesma.  Do jeito que Queen's Gambit apresenta as coisas, se você não chegou lá, culpa sua, porque os homens são super cordiais e não se sentem nem um pouco ameaçados pela presença das mulheres competindo com eles por espaço e reconhecimento público.


As professoras do orfanato tem nome, mas são a caricatura da feminilidade domesticada e estéril, afundadas em uma religiosidade formal e sem nenhuma engajamento emocional, sem perspectivas de vida, talvez viúvas, ou solteironas, e tentando formatar meninas, não lhes inspirar de alguma forma. Temos Cleo (Millie Brady), a modelo namorada dos amigos de Watt, que serve como estereótipo da francesa sexualmente liberada em uma década de 1960 super casta.  Cleo aparece em Paris e ajuda Beth a ter uma recaída com  a bebida que a lança quase no abismo.  

Cleo também acorda ao lado da protagonista, mas acredito que elas estavam dividindo a cama depois da bebedeira.  De qualquer forma, a série nada mostra, ou sugere, de qualquer relação sexual com Beth.  As meninas do colégio, destaque para Margaret (Dolores Carbonari) a moça que eu citei lá em cima, a rainha da escola que casa e se torna nova candidata a Alma, são apresentadas como agressivas com a protagonista (*tão diferente dos meninos!*), vazias e sem nenhuma conexão com Beth, salvo pelo interesse por roupas bonitas.  E, sim, vamos falar do figurino.


Se você gosta de observar a cenografia e o figurino de séries e filmes, Queen's Gambit é para você.  A marcação do tempo é feita pelas roupas.  Começamos com os anos 1950, o orfanato com as meninas roubadas da sua individualidade, mas as professoras nem tanto, e seguimos para a vida fora dos muros da instituição onde  Beth aprendeu a jogar xadrez.  A série é fiel em não colocar as meninas com calças compridas na escola, mas as usando em casa.  Já li relatos de mulheres que viveram aquela época nos EUA, início dos anos 1960, final dos anos 1950, e que os filmes normalmente não são fiéis nesse aspecto, que elas tinham que seguir um código de vestimenta que impunha o uso de saias.

Beth começa usando roupas muito humildes, fora de moda, e contraposição com as colegas de escola. As roupas de Beth e seu cabelo feio, também, servem para marcar sua estranheza, o fato de ser um peixe fora d'água. A seguir, conforme ganha dinheiro, suas roupas ganham beleza e qualidade, mas continuam bem conservadoras.  Enquanto Alma está viva, reparem que Beth se veste de forma bem comportada e com um pé nessa virada dos anos 1950-60.  Ao redor dela, especialmente em Vegas, vemos mulheres já com um pé nos final dos anos 1960, mas ela continua com saias godê na altura dos joelhos.  Quando fica sozinha e tem que cuidar de si, Beth começa a usar minissaia e calças compridas, a maquiagem se torna mais agressiva.  Ela deixa de ser criança e tutelada e se torna uma mulher só que cada vez mais sozinha e perdida.  Quando ela sai do fundo do poço, temos uma nova mudança.


E são muitas roupas.  A vaidade de Beth, que no seriado é associada deliberadamente ao feminino, se manifesta no seu gosto por roupas bonitas e pela necessidade de estar na moda.  Há uma conversa sobre isso com Cleo, que é modelo internacional.  É Jolene, com seu jeito prático, que coloca uma trava em Beth, quando a está ajudando a se livrar de drogas, álcool e outras práticas ruins.  Mas vamos nos encaminhando para o fim, porque esse texto ficou monstruoso e minha mão machucada está doendo.

No seriado é mostrado o papel da organização chamada Christian Crusade, um grupo fundado por um pastor picareta chamado Billy James Hargis.  O objetivo desse pessoal era patrocinar ações contra o avanço das ideias comunistas, eles querem bancar a ida de Beth para Moscou, desde que ela aceite fazer um pronunciamento contra o comunismo.  Benny Watts quer convencê-la a aceitar, ele iria junto com ela para Moscou com as despesas pagas para lhe dar apoio, mas a moça recusa e os dois rompem por causa disso.  Já o nome da série vem de uma jogada de abertura do xadrez chamada de Gambito da Dama, ou da Rainha, no qual o jogador que está com as brancas e, portanto, inicia a partida, avança o peão da Rainha que pode, ou não, ser sacrificado para levar adiante as estratégias no jogo.


A série pode ser muito fiel ao retratar o xadrez como jogo, quase equiparando o que os japoneses conseguem fazer em suas séries de esporte (*mangá e anime*), dando um aspecto dramático para esportes aparentemente sem emoção.  Nesse aspecto a série pontua muito alto, mas não me venham com essa história de "parece shounen de esportes", porque só se for na baixa qualidade da vida sexual da protagonista. Agora, algo fundamental é não deixar de mostrar a carga de estudo e dedicação requerida de um jogador um profissional de xadrez.  Da mesma forma, Queen's Gambit é muito competente em apresentar o drama do vício em remédios e alcoolismo, assim como a trajetória da heroína na superação de grandes traumas.  O esforço da protagonista e o apoio que ela recebe são fundamentais para seu sucesso.

Eu gostei da série, acreditem, ou nem me daria ao trabalho de passar do primeiro capítulo, ou escrever este texto, mas quando o assunto é a questão das mulheres nos anos 1960, ou das mulheres no xadrez, desculpem, a série é muito ruim.  E, pior, não sei se errou tentando acertar, isto é, atrair uma audiência que não quer ver mulheres maltratadas, ou de propósito, reinventando o passado para amenizar a culpa da classe dos homens.  


Qualquer uma das duas opções, é lamentável e, bem, se você acredita que isso não é importante mesmo ciente do machismo e da misoginia que obstruem as mulheres nas mais diferentes áreas, você é cúmplice, você é parte do problema.  Queen's Gambit poderia falar de xadrez e, ainda assim, mostrar que ser mulher era um fator que prejudicava Beth. Isso não precisava ser o centro da série, mas não poderia ser apagado da história.  Aliás, termina a série e ela não é Grande Mestre do Xadrez.  A coisa era tão tranquila, que a federação internacional só abriu essa possibilidade em 1976 e a primeira mulher a receber o título foi  Nona Gaprindashvili em 1978.

Não queria falar de nada disso?  De anos 1960 e suas mudanças?  De discriminação às mulheres?  Colocasse um homem branco como protagonista e estaria tudo muito bom.  Por isso, quando vejo esse tipo de material fazendo tanto sucesso e as críticas, inclusive de quem sofreu na pele a discriminação por ser mulher no xadrez sendo tratadas como se nada fossem, eu passo a ver Queen's Gambit como um belo cavalo de Tróia.  Bastaria ligar o foda-se e teríamos mais mulheres grandes mestres, é tudo uma questão de vontade, porque o patriarcado não é um problema, quando você tem talento.  E este, com certeza, deve ser o post mais importante do blog este ano.  Se será lido, ou não, se receberá ódio do fandom, ou provocará a reflexão, não sei.  Só sei que eu precisava escrever e estou com o "foda-se" ligado, também.

sábado, 28 de novembro de 2020

Campanha pela Eliminação da Violência contra as Mulheres (Dia 4): Onde estavam os atiradores de elite?

Como me comprometi, estou comentando mais uma notícia que atesta a violência contra as mulheres no Brasil e no mundo.  Ontem, um policial militar de Resende de nome Janitom Celso Rosa Amorim, alguém que deveria cumprir e fazer cumprir as leis, tomou a namorada, a cirurgiã-dentista Mayara Pereira de Oliveira Fernandes, de 31 anos, como refém e a manteve em seu próprio carro durante cerca de 2h30 minutos.  Ela fazia uma pós-graduação e tudo aconteceu no estacionamento da faculdade em Valença, no interior do Estado do Rio de Janeiro.

Durante todo o tempo de cativeiro e negociação, o criminoso ficou várias vezes bem visível.  Poderia ter sido alvejado por um atirador de elite, o que salvaria Mayara.  Não foi.  Quando parecia estar para se entregar, ele deu um tiro no rosto da moça que veio à óbito.  Mayara deixou um filhinho de 5 anos de idade, outra vítima desse crime.  O criminoso tinha outros casos de agressão em sua ficha, pelo menos um deles contra uma ex-namorada.  

A questão é até quando homens vão se considerar donos das mulheres e com o direito de tirar-lhes a vida? O feminicida não disse suas motivações, mas, normalmente, temos suspeita de traição e o desejo da vítima de acabar com o relacionamento.  Os últimos dados sobre feminicídio no Brasil, isto é, assassinatos de mulheres por elas serem mulheres, que eu encontrei apontavam para um crescimento de 22% nos casos, com um boom em São Paulo.  Agora, são dados do início da pandemia, precisamos ver qual será o saldo final disso tudo.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Graphic Novel celebra as "Heroínas" brasileiras do século XX

Guilherme Smee e Eduardo Ribas fizeram um quadrinho sobre mulheres brasileiras no século XX. D.I.V.A.S Brasileiras traz a biografia de mulheres como Nair de Teffé, Anita Malfatti, Carolina Maria de Jesus, Maria da Penha, Leila Diniz e até Roberta Close.  As notas biográficas são da minha amiga Natania, doutoranda em História e especialista em mulheres nos quadrinhos.   Pelo pouco que vi, o traço parece ser interessante.

Segundo o site Literaturarts, "O livro terá lançamento oficial durante a CCXP Worlds, um dos maiores eventos de cultura pop do mundo, que acontece de 4 a 6 de dezembro, pelo site  www.ccxp.com.br (link externo). A obra está à venda por R$ 30 no site www.epicdoo.com (link externo) e foi um dos projetos selecionados pelo Prêmio Funarte Descentrarte 2020. Parte da tiragem será doada para o Sistema Estadual de Bibliotecas do Rio Grande do Sul, que conta com quase 600 bibliotecas no estado."

Campanha pela Eliminação da Violência contra as Mulheres (Dia 3): Muitas vítimas de violência sexual no Japão não denunciam agressões à polícia ou grupos de apoio

Continuando a jornada dos dezesseis dias, vou comentar uma matéria do jornal japonês Mainichi sobre a subnotificação dos casos de violência sexual contra as mulheres.  o texto já abre apontando que somente 30% das vítimas denuncia e que a maioria não é capaz de compreender que sofreu uma violência.  Atentem para isso aqui, porque é cultural.  Há países que tem baixos índices de violência contra as mulheres, porque existe uma permissividade muito grande em relação ao que um homem pode fazer com uma mulher, seja ela a esposa, a namorada, ou uma desconhecida.  por outro lado, estatísticas como as da Suécia assustam, porque a percepção da violência contra as mulheres é mais aguçada e as vítimas são estimuladas a denunciar.  Já vi macho escroto de internet afirmando que a Arábia Saudita era mais segura para as mulheres do que os países nórdicos por causa das estatísticas públicas.

Segundo a matéria: "A pesquisa, conduzida online entre agosto e setembro pela organização de sobreviventes de agressão sexual Spring, questionou 5.899 vítimas de abuso sexual. O grupo pretende submeter os resultados a um painel de peritos do Ministério da Justiça, que tem vindo a discutir as revisões do Código Penal para punir as relações sexuais não consensuais. O debate sobre as disposições do Código Penal sobre crimes sexuais baseou-se principalmente em processos judiciais reais. O movimento do Spring é significativo porque proporcionará uma oportunidade para que vozes que não chegaram à esfera judicial sejam levadas para discussão."

96,4% das pessoas que responderam à pesquisa eram mulheres. A forma mais comum de agressão sexual, alegada por 63,9% das entrevistadas, foi "ser apalpada por cima de roupas", seguida por "ser apalpada por baixo das roupas" (34,6%), "ver órgãos genitais e outras partes à mostra" (31,3%).  Imagino que sejam as agressões mais comuns perpetradas pelos chikan  (痴漢), aquele tarado muito comum em certos mangás e animes e, ao que parece, também comum nos trens e metrôs japoneses.  .  A seguir, veio o "abuso envolvendo inserção na boca, ânus ou vagina" (21,5%). Os casos incluindo o perpetrador ejaculando, beijando ou se masturbando perto da vítima foram relatados na categoria "outros" e representaram 14,7% do total.  Esse outro grupo também deve envolver chikan.

Um total de 34% das entrevistadas responderam que foram assediados por "pais, parceiros dos pais, parentes ou outros conhecidos".  Os dados vão ficando piores.  , quando limitado a agressão sexual envolvendo inserção, a proporção de casos com os assediadores acima aumentou para 59%. Piora mais, porque mais de 80% das entrevistadas que alegaram ter sofrido abuso sexual por meio da inserção de órgãos corporais (*imagino que pênis, dedos, língua, enfim*) pelos pais, parceiros dos pais ou parentes tinham 12 anos ou menos - destacando a gravidade do abuso sexual de crianças.  E o silêncio, claro, é fruto da ignorância e da vergonha.  

Lembro de uma entrevista com a Takemiya Keiko, em que ela comentou  que recebeu uma carta de uma leitora quando estava publicando Kaze to Ki no Uta  (風と木の詩) agradecendo pelo mangá.  Motivo? A moça tinha descoberto que não estava sozinha e que a culpa não era dela, porque assim como a protagonista da história, ela fora, ou ainda era, sexualmente abusada pelo pai.  E a autora foi alé, ela argumentou que deixar de falar da violência não fará com que ela desapareça e que seu objetivo era mostrar como suas personagens conseguiam se fortalecer e seguir em frente apesar do que tinham sofrido.

Ainda segundo a pesquisa, 47,9% das entrevistadas foram capazes de reconhecer que os atos infligidos a elas foram abuso sexual imediatamente após a agressão. Já 52% responderam que não foram capazes de reconhecer a agressão imediatamente após sua ocorrência. Nesse grupo, as entrevistadas levaram em média sete anos para reconhecer o abuso. O reconhecimento da agressão sexual demorou oito ou mais anos para 34,8% das entrevistadas.  A pesquisa aponta que a situação é mais grave quando a vítima e o agressor se conhecem e há uma relação desigual de poder entre eles, como pai e filha, ou quando a situação envolve álcool ou ingredientes que possam fazer com que a vítima se veja como culpada.

"Azusa Saito, professora da Universidade de Mejiro que participou de uma conferência em 20 de novembro na Câmara dos Deputados, onde os resultados da pesquisa foram anunciados, comentou: "Principalmente no caso das crianças, leva tempo para que reconheçam o que aconteceu com elas.  Além disso, existe uma concepção popular de que o abuso sexual é algo que acontece de repente um dia na rua. Portanto, quando alguém que você conhece está por trás do abuso, não se conforma com essa concepção, dando origem a casos em que o o abuso permanece não reconhecido. ""  E isso não é somente no Japão, aqui, no Brasil, é prevalente a ideia de que o abusador é preferencialmente um desconhecido, uma figura sem rosto, e, não, alguém que faz parte do círculo de afetos da vítima e que pode ser, inclusive, um dos seus cuidadores.

De acordo com o Código Penal do Japão, as acusações podem ser feitas por crimes envolvendo relação sexual forçada até 10 anos depois de terem ocorrido, enquanto crimes de indecência forçada têm um limite de sete anos.  Mantive os termos que estão na matéria em inglês, mas "relação sexual forçada", ou "estupro consentido", são categorias absurdas, estupro é estupro.  Segundo a matéria, quando muitas vítimas conseguem entender que sofreram violência, o prazo expirou, ou não existem mais provas.  Fora isso, a lei japonesa exige que seja comprovada a violência, ou forte coerção, que a pessoa foi ameaçada com arma, surrada, enfim, no enquanto muitas vítimas relatam que ficaram paralisadas, sem ação, incapazes sequer de gritar.  

Lembrei do livro A História do Estupro de Georges Vigarello, um dos meus historiadores favoritos, e que acompanha como o conceito de estupro vai se transformando principalmente entre o século XVI e XX na Europa e em particular na França.  Ele mostra que a lei francesa pós Código Napoleônico, por exemplo, só considerava estupro caso uma mulher fosse agredida por mais de um homem, se fosse um só, não era estupro, ela poderia se defender, ou se colocou ativamente em situação de risco.  Fora isso, o conceito de estupro sempre dependia de quem era o estuprador e quem era a vítima e que um casamento poderia resolver um problema como esse.   O fato é que mesmo quando podem fugir, ou resistir, muitas mulheres, não estou falando de crianças aqui, não conseguem.  Elas foram adestradas desde a infância para se verem como mais fracas que os homens, incapazes de resistir, ou culpadas dos males que recaem sobre elas.  Que roupa você estava vestindo?  Será que você não insinuou qualquer coisa? Ele é homem, tem suas necessidades!

A pesquisa também descobriu que apenas um punhado de casos de abuso sexual são denunciados à polícia ou levados a tribunal.  Apenas 10,9% de todas as entrevistadas consultaram especialistas ou grupos de apoio sobre o abuso e apenas 15,1% contataram a polícia. Além disso, os relatos das vítimas foram aceitos pela polícia em apenas 7% dos casos, enquanto apenas 0,7% relataram que seus agressores foram indiciados e considerados culpados em processos judiciais.  Daí, vocês podem tirar o problema.  Leis machistas e operadores do direito e policiais que, não raro, se sentem irmanados com o agressor, outro homem, como eles, ou alguém que poderia ser um filho, ou um irmão.

Concluindo, "Jun Yamamoto, diretor representante da associação Spring, sublinhou: “Queremos que seja criada uma lei que dirija a sua atenção para a realidade dos casos de abusos sexuais que estão sepultados e não chegam à esfera judicial. Gostaria que a promovêssemos uma sociedade que confia nas vozes das vítimas ”."