sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Este não é um post de "Feliz Ano Novo", mas eu torço para que você faça diferença em 2022

AVISO: Este é um post abertamente político, os demais também são, porque sempre me coloco, mas este é conscientemente direcionado.  Se você não quiser ler, pule, há centenas de outros no Shoujo Café que podem ser do seu agrado.

Neste exato momento, o Sul da Bahia e outras regiões, particularmente na região Nordeste, estão debaixo d'água.  Há mais de duas dezenas de mortos no momento, fora os milhares de desabrigados.  O governo do Estado da Bahia abriu um canal para doações, mas existem outras vias para ajudar, recomendo acompanharem o trabalho que o Carlito Neto, do canal O Historiador, está fazendo.  A família dele é de Itabuna. 

Enquanto isso, nosso presidente está de férias, ainda que não tenha passado o poder ao vice-presidente, conforme a lei exige, e suas redes sociais postam diariamente seus passeios e interações com populares.  Ontem mesmo, ele foi ao Beto Carreiro, um grande parque de diversões, brincou de drift com um carrinho enfeitado como um Hot Wheels, como se fosse um menininho.  Depois, passou em uma das lojas da Havan e recebeu o kit patriota que trazia uma bola de futebol, toalha de praia, cooler para bebidas e uma bandeira do Brasil de funcionários (aparentemente) bem empolgados.  

Tente agora imaginar qualquer líder de um país, de Biden à Putin, passando pela Rainha Elizabeth II, ou um de seus parentes na linha de sucessão ao trono, ou o primeiro-ministro de Israel, fazendo algo do tipo.  É inimaginável.  É monstruoso.  Ainda assim, há quem o defenda, quem justifique a falta total de empatia, além de gasto de dinheiro público, isto é, do nosso dinheiro..

O professor Michel Gherman, que foi meu calouro no curso de História da UFRJ, comentou no Twitter ontem que a falta de interesse do presidente pelo drama na Bahia, era uma mensagem sobre quais brasileiros realmente importam. Estar em Santa Catarina neste momento e, não, em outro estado qualquer da federação, é um código para seus apoiadores. São os brasileiros que contam, os que se consideram brancos e trabalhadores. Já os baianos, os nordestinos em geral, são brasileiros sem importância. Lembrando que há material suficiente apontando para ligações antigas entre sites neonazistas e o apoio à Bolsonaro e recomendo a entrevista da antropóloga Adriana Dias ao The Intercept para maiores detalhes.

Outro analista, infelizmente não me recordo quem agora, mas que não trabalha com questões ideológicas diretamente, apontou que a Bahia seria território absolutamente perdido para Bolsonaro nas próximas eleições, logo, nas estratégias do presidente, não seria interessante nem tentar recuperar o território.  Que a Bahia seja varrida pelas águas, então.

Ao ler isso, eu só lembro que, caso tenhamos eleições em 2022, a Bahia é um dos cinco colégios eleitorais estratégicos para levar o Brasil, os outros são Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro e, citando matéria do Globo de hoje: "Juntos, São Paulo, Minas, Rio, Bahia e Rio Grande do Sul concentram 53,5% (78,4 milhões) do total de eleitores do país. São esses locais que os presidenciáveis devem priorizar nos próximos meses para construir a rede de sustentação que os permita chegar ao Palácio do Planalto."  Em 2010, Dilma ganhou, porque levou o Rio, os votos dos evangélicos migraram de Marina para ela no segundo turno. Em 2014, Aécio perdeu em Minas Gerais, estado que ele próprio governara.  Perdeu, porque é isso, ele perdeu as eleições prsidenciais e Dilma não ganhou, pois o golpe já estava em andamento, sendo Aécio figura central nessa tragédia, ao não garantir Minas Gerais. 


Será que Bolsonaro pode abrir mão da Bahia?  Será?  E o Norte de Minas, ao lado do Sul da Bahia, também está sendo castigado pelas chuvas e precisando de ajuda.  Será que Minas também pode ser descartada?  Subestimar Minas Gerais é sempre um erro.  A não ser, claro, que exista alguma carta na manga, ou expectativa que não está no radar da maioria da imprensa no momento.  E recomendo o texto do Prof. Vinicius Vieira chamado Ao ignorar enchentes, Bolsonaro indica que golpe ainda é carta na manga.  Leiam e guardem com carinho, porque ele pode ser assustadoramente lúcido à respeito do futuro que nos espera.

Todas essas análises são válidas. Já o Portal do José bate todo o dia que na TV aberta, em especial no Jornal Nacional, não se dá destaque a esse desprezo do presidente pelo seu próprio povo, a esta falta de empatia. A tragédia no Sul da Bahia é amplamente divulgada, assim como foram os picos de contaminações e mortes do COVID-19, mas sem fazer um link direto e abertamente c´ritico ao presidente.  É como se ele não existisse.  Mostrar na Globo News, que tem uma base de audiência muito pequena e selecionada, ou nos jornais impressos, não repercute como colocar na TV aberta para todos verem. 


O que isso indica? Que o projeto econômico por trás de Bolsonaro ainda é o projeto da grande imprensa. Eles até poderão abrir mão do mito, caso tenham alguém melhor, mas, caso não seja possível, caso não tenham um candidato mais civilizado, eles vão continuar acobertando Bolsonaro, batendo leve nele, até o fim.  2022 será infernal, não tenham grandes esperanças.

Enfim, se você está lendo este post, você sobreviveu ao segundo ano de pandemia.  Teremos um terceiro e, espero, não um quarto.  Neste exato momento, continuam tentando sabotar a vacinação, eu tenho uma filha de 8 anos e me sinto particularmente atingida por esse desejo governamental de atrasar a imunização do grupo entre 5 e 11 anos.  O problema é que a COVID-19 não é o único mal que assola nosso país.  2022 é um ano chave para tentar mudar a situação, começar a colocar as coisas em um eixo melhor.  

Se você tem idade para tirar o título, tire.  Se você tem o título, vote.  Não estou sugerindo em quem votar, mas que o faça conscientemente.  Agora, sou muito clara em dizer que temos, sim, o pior dos governos, porque nunca se viu gente tão competente em destruir a economia e agredir os valores mais básicos daquilo que nos torna humanos.  Repito, 2022 será um ano fundamental para o futuro do Brasil e você pode fazer diferença para que a barbárie seja contida.

Shoujocast: Retrospectiva 2021

Acabei de postar no Youtube o último Shoujocast do ano.  O programa voltou, não como podcast, mas com vídeos mesmo.  Acho que o formato podcast é melhor, mas acho que gravar vídeos sozinha é menos chato do que gravar áudio, não sei, podem opinar a respeito.  De qualquer forma, agradeço a todos que me acompanharam durante este ano de 2021, aqui, no Facebook, no Twitter, no Instagram, no Youtube.  Vocês são parte da minha vida e uma das razões para que este blog continue existindo por todos esses anos.  O vídeo está aí embaixo e pode ser acessado também no Youtube, o meu comentário com os links sumiu, irei colocá-lo novamente, fui uma boba de não ter deixado salvo, porque deu muito trabalho organizar.


quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Primeiro capítulo de Sailor Moon completou 30 anos esta semana

As comemorações em torno de Sailor Moon ( 美少女戦士セーラームーン), uma das séries shoujo mais importantes de todos os tempos, não param nunca, porque uma data parece entrar na outra.  Quando começaram a lançar o novo anime, nos vinte anos do quadrinho, a coisa acabou se estendendo para os vinte e cinco anos com mais anime e produtos e eis que o clássico de Naoko Takeuchi completa os trinta.  Não conheço outra série em que os lançamentos se entrelacem uns nos outros desse jeito.

Enfim, Sailor Moon teve seu primeiro capítulo publicado em um dia 28 de dezembro de 1991 e permaneceu em publicação na revista Nakayoshi até 1997.  Foram 18 volumes cobrindo a história de Usagi, que recebe da gatinha Luna o poder de se transformar em Sailor Moon, e das outras guerreiras da lua.  O anime, que já estava previsto desde antes da estreia do mangá, teve seu primeiro episódio exibido em 7 de março de 1992.  Vejam que teremos outra comemoração de trinta anos, não é mesmo?

Sailor Moon teve um papel importante em revigorar o gênero garota mágica dentro do shoujo mangá e anime, introduzindo a ideia de uma equipe de guerreiras lutando pelo amor e a justiça.  A série animada foi exportada para vários países e foi fundamental para a difusão da cultura pop japonesa influenciando uma geração de crianças e adolescentes nos anos 1990.  A série foi exibida primeiro na Rede Manchete, junto com outros sucessos da época, como Cavaleiros do Zodíaco, e o mangá só foi lançado no Brasil muitos anos depois pela JBC.  E que venham as comemorações, porque com certeza muita coisa deve sair em 2022 relacionado a série.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Ranking da Oricon - Semana 13-19/12


Saiu o novo ranking da Oricon e temos seis mangás shoujo e josei no top 30.  Destaque para Mystery to Iunakar, que terá dorama em janeiro, e conseguiu subir dentro do top 10, mesmo com competidores poderosos.  Depois, em 17º temos uma série da revista Dessert e é um romance escolar.  Já Doukyonin wa Hiza, Tokidoki, Atama no Ue。mostra a relação entre um tímido escritor de romances de mistério e um gatinho de rua que ele acolheu.

E temos os últimos três títulos.  Nagi no Oitoma é uma série que já teve dorama e foi indicada à vários prêmios e que conta a história de uma mulher de 28 anos passando por vários problemas pessoais e que  decide recomeçar sua vida, mudar de emprego, arrumar novos amigos e esquecer a  traição do namorado.  Já Dareka Kono Joukyou wo Setsumei Shite Kudasai! ~Keiyaku kara Hajimaru Wedding~ é derivado de novel e conta a história de uma mocinha nobre empobrecida, que recebe uma proposta de casamento de um sujeito em condições muito melhores, mas que termina dando certo. Já Yume no Shizuku, Ougon no Torikago, de Chie Shinohara, conta a história de Roxelana, que de escrava se tornou esposa do sultão Suleimão II.  A série está terminando e é a mais bem sucedida da autora desde Anatolia Story.
 
1. Tokyo Revengers #25
2. Uma Musume: Cinderella Gray #5
3. ONE PIECE #101
4. Tensei shitara Slime Datta Ken #19
5. Mystery to Iunakare #10
6. Kaguya-sama wa Tsugera Setai ~Tensai-tachi no Renai Zunousen - Bangai-hen~ #24
7. Golden Kamui #28
8. Kaiju Nº 8 #5
9. Diamond no Ace act2 #29
10. Blue Lock #17
17. Na no ni, Chigira-kun ga Amasugiru。 #6
21. Doukyonin wa Hiza, Tokidoki, Atama no Ue。#8
24. Yume no Shizuku, Ougon no Torikago #16
26. Dareka Kono Joukyou wo Setsumei Shite Kudasai! ~Keiyaku kara Hajimaru Wedding~ #6
29. Nagi no Oitoma #9

domingo, 26 de dezembro de 2021

Pesquisa revela quais são os animes favoritos dos colegiais japoneses no momento.



O site japonês Yaraon fez uma pesquisa com alunos e alunas do colegial, adolescentes entre 15 e 18 anos, mais ou menos, para saber quais os animes que eles mais gostam, ou estão acompanhando no momento.  Eles separaram uma lista dos garotos, 428 votos, e das garotas, 413 votos.  Vou colocar as duas listas e só há um anime baseado em mangá feminino citado, Uramichi Oniisan, um josei.  Tenho que olhar a série, ela foi muito elogiada, mas ainda não fiz isso. Percebam que sete títulos são comuns a ambas as listas, ainda que apareçam em colocação diferente.

LISTA FEMININA
1. Kimetsu no Yaiba - 36.8%

2. Jujutsu no Kaisen - 32.7%
3. Haikyuu!! - 26.9%
4.Tokyo Revengers - 23.5%
4. Boku no Hero Academia - 23.5%

6. Detective Conan - 22.5%
7. Yakusoku no Neverland - 21.3% 

8. Uramichi Oniisan - 20.8% 
9. Doraemon - 14.0%
10. Tensei Shitara Slime Datta Ken - 13.8%

LISTA MASCULINA
1. Kimetsu no Yaiba - 27.3%
2.Boku no Hero Academia - 25.9%
3. Jujutsu Kaisen - 25.7%
4. Tensei Shitara Slime Datta Ken - 22.9%
5. One Piece - 18.9% 
6.Tokyo Revengers - 18.5%
7. World Trigger - 17.1%
8. Detective Conan - 15.4%
9. Mushoku Tensei - 14.5%
10. Yakusoku no Neverland - 
14.3%

Comentando Não Olhe para Cima (EUA/2021): Uma sátira que cai como uma luva em tempos de pandemia

Desde ontem, Don't Look Up estava com seu título em inglês em evidência no Twitter, hoje, estava com seu nome nacional, Não Olhe para Cima.  Estranhei, porque não tinha me apercebido que entrou na grade da Netflix na véspera de Natal.  Eu tinha ido atrás do filme por estar interessada e por forte recomendação de um amigo que conseguiu assistir a película no cinema.  "Como você gostou de Vice, vai gostar de Não Olhe para cima." Dito e feito, mas foi pura coincidência ter assistido no dia 25 de dezembro.  Aliás, a resenha completa, porque coloquei uma prévia no Facebook, só não saiu ontem por estar concluindo a de Amor, Sublime Amor, que estava atrasada.  Só aviso, caso você não conheça a filmografia do diretor Adam McKay que Don't Look Up não é um filme de Natal, não é um filme para levantar o astral de ninguém, é uma sátira aos tristes tempos que vivemos.  Vamos ao resumo:

Dias atuais, a aluna de doutorado Katelyn "Kate" Dibiasky (Jennifer Lawrence) está observando os mapas do sistema solar, e é sugerido que esta parte do seu trabalho é muito monótona, quando percebe um cometa relativamente grande em uma trajetória curiosa.  Ela comunica seu orientador, o Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio), que fica muito animado com o que parece ser uma super descoberta.  Ele apelida o cometa de Dibiasky e reúne seus orientandos para uma divertida brincadeira que é calcular na mão a trajetória do curioso cometa.  Para seu choque, o astro se dirige para a Terra, não há dúvida, alguma.  Ele interrompe o exercício, dispensa os alunos e segura Dibiasky.  A Terra está ameaçada e só temos 6 meses e 14 dias para que algo seja feito.

Ele entra em contato com a NASA e sua diretora, Jocelyn Calder (Hettienne Park), uma médica colocada no cargo por indicação da presidenta, Jane Orlean (Meryl Streep), uma populista interessada somente em sua autopromoção e na manutenção do poder.  Calder confirma os cálculos com seu assessor e repassa o caso para o Dr. Teddy Oglethorpe (Rob Morgan), o responsável na agência por casos assim.  Oglethorpe, um cientista sério, confirma os cálculos e tenta colocar os cientistas frente a frente com a presidenta, que trata a destruição da Terra como algo secundário em relação aos seus interesses imediatos, garantir a maioria no Congresso nas eleições que estão prestes a acontecer.

Desesperados, Mindy, Dibiasky e Oglethorpe terminam vazando para imprensa que o governo norte-americano não pretende fazer nada e quer manter em sigilo a informação que é crucial para salvar o planeta.  O que conseguem é que Mindy e Dibiasky acabem em um programa tipo esses que pululam nas TVs brasileiras e que são capazes de misturar fofocas de celebridades, culinária, ciência, sem aprofundar nada e tentando garantir entretenimento para a audiência.  Os cientistas recebem midia training para conseguirem falar na TV, mas Dibiasky perde a paciência frente os apresentadores Brie Evantee (Cate Blanchett) e Jack Bremmer (Tyler Perry) que não tem nenhum interesse em preocupar sua audiência com coisas estressantes como o fim do mundo iminente.

A partir daí, Dibiasky termina sendo obrigada pelo FBI a se retirar da universidade e concordar em não falar publicamente sobre o tema.  De volta ao lar, no interior dos EUA, seus pais não a recebem, porque não querem saber de política.  E o filme consegue deixar muito claro como a ciência é politizada e os interesses escusos dos políticos e empresário manipulam a opinião pública a seu favor.  Para isso, claro, é preciso a colaboração de cientistas e Mindy é cooptado.  O cientista sério, meio nerd, com uma família estável, mas cheio de problemas que afligem uma parte considerável da humanidade, como ansiedade, depressão, pressão alta, termina se tornando uma celebridade à serviço do governo.  Será que compensa?  Vale a pena?  Ele perdeu toda a sua consciência?  Como a personagem é bem complexa e cheia de nuances, DiCaprio brilha e entrega uma interpretação de grande qualidade.

Outra personagem importante do filme é o mega empresário da área de tecnologia e terceira pessoa mais rica do mundo, Peter Isherwell (Mark Rylance). Como principal doador da campanha de presidente Orlean, ele é capaz de interferir nas ações que visão salvar a Terra para atender seus próprios interesses, o que implica impedir que uma ação conjunta com a Rússia, a China e a Índia se efetive.  O  comando da missão seria do fanfarrão Benedict Drask, um excelente Ron Pearlman sem maquiagem.  Para a presidenta, a missão tinha que ter um herói de carne e osso, porque os norte-americanos precisam disso, apesar de naves não tripuladas poderem ir mais rápido.  Drask era conhecido por suas falas  sexistas, racistas e homofóbicas, mas a imprensa o trata com complacência, "ele é um homem de outra época", no fundo, é tudo da boca para fora e ele é um bom homem.  Sabe quem disse algo parecido?  Regina Duarte, na época da eleição sobre o "humor" peculiar de Bolsonaro.

A opção da presidenta Orlean é embarcar no projeto de Isherwell, uma criatura desagradável e que é uma cruza se Steve Jobs e Elon Musk, de esperar que o asteróide se aproxime mais do planeta para espatifá-lo e minerá-lo em nosso planeta.  A partir daí, há uma campanha midiática enorme movida para convencer a opinião pública de que o asteróide poderia gerar empregos e riqueza para todos, além de garantir que os EUA não seriam superados pela China em sua economia.  A graça é que eu vi um react de um vídeo de um ancap falando em mineração de esteróides e como Elon Musk poderia ter um papel importante no processo (Cóf! Cóf!).  Profético, não?  Como o filme estava pronto desde meados do ano passado, questão da mineração no filme e na cabeça desse moço surgiram de forma independente.  

Aliás, é importante ressaltar que o filme não tinha como prever que Donald Trump não seria reeleito, mas como ele atrasou mais de um ano, o único líder negacionista da ciência, vulgar e atrelado a interesses escusos que sobrou é o nosso.  Falando nisso, acho impossível não olhar para Jason Orlean (Jonah Hill), filho e chefe de gabinete da presidenta, sem lembrar de Carluxo.  Ele e Dibiasky tem diálogos muito bons, porque ela não tem papas na língua e deixa claro que ele não tem nenhuma qualificação para estar ali, na Casa Branca, em uma posição de poder.  Trump dava muito espaço para seus filhos, Ivanka, por exemplo, tinha gabinete dentro da Casa Branca, algo sem precedentes.  Filhas de presidente só tem atuação pública no governo, quando o presidente é viúvo ou sua esposa está impossibilitada, e isso aconteceu mais de uma vez.  Elas (*filhas, sobrinhas, noras*) ficam no lugar da primeira-dama, figura que tem uma importância enorme no imaginário político norte-americano.

A partir desse acordo entre o governo e o grande empresário, que se nega a buscar validação de pares, isto é, consulta de outros cientistas que não sejam os pagos por ele, para sua ação de salvação da Terra, começa a campanha "Não olhe para cima".  A presidenta lidera uma campanha que se baseia na ideia de que a economia e a vida das pessoas não podem parar.  "Olhe para baixo" ou "Olhe para a frente", siga vivendo, mas a verdade e a tragédia se impõem inexoravelmente.  Mesmo a questão científica acaba se tornando midiática com a  mobilização de Mindy, agora arrependido, Dibiasky e Oglethorpe para que as pessoas acordem enquanto ainda parece haver tempo.  Vale até usar o peso de celebridades como Riley Bina (Ariana Grande) e  DJ Chello (Scott Mescudi), afinal, vivemos na sociedade do espetáculo e, como Oglethorpe aconselhou Mindy lá no início do filme, esqueça a matemática ou as pessoas irão se cansar.  O problema, segundo Mindy coloca, é que tudo é Matemática.  Só que nossa sociedade de memes, vídeos rápidos e informações mastigadas, é difícil manter a atenção de alguém por mais de três minutos.  De qualquer forma, para os cientistas, a única esperança é acreditar que uma missão da China, Índia e Rússia possa fazer o que os Estados Unidos não querem fazer.

Don't Look Up é um ótimo filme e é bem cruel na crítica à nossa sociedade atual com todos os seus piores vícios como a espetacularização, a superficialidade e a incapacidade de se pautar pela razão.  A analogia direta é com a pandemia do COVID-19, que não terminou ainda. No fim das contas, o filme coloca em evidência, usando de humor negro, a forma como os políticos populistas, que manobram os negacionistas e ignorantes, tem pautado as discussões científicas que deveriam ser norteadas pela razão.  Na verdade, estamos em um momento em que o paradigma iluminista vem sendo erodido, não reformado, discutido, mas abandonado mesmo em favor do obscurantismo, do imediatismo e da falta de empatia.  

E é bom lembrar que o filme foi planejado em 2019, pensando nas mudanças climáticas, só que veio a pandemia e o filme, que poderia ser uma sátira mais distante, se tornou muito real e concreta.  E, vejam bem, personagens que poderiam parecer caricatas, não são mais, elas estão no governo, em cargos importantes, na rua.  Basta lembrar da antivax que puxou conversa comigo na fila do Giraffas, uma inocente útil, ou dos tipos sinistros que apareceram na CPI da COVID.  

Agora, apesar de Meryl Streep estar maravilhosa em seu papel de presidenta dos Estados Unidos, este é exatamente o ponto fraco do filme, que lhe dá um certo ar de falsidade.  Como estamos no nosso presente, não há equivalência entre homens e mulheres em nossa sociedade.  Esse tipo de espaço de poder é masculino, além disso, o tipo de seguidor red neck que um presidente com esse perfil tem, jamais ouviria uma mulher.  A extrema-direita, esses grupos que se autointitulam conservadores, são profundamente misóginos e a ideia de liderança está associada ao masculino.  Aliás, ela nunca seria eleita, porque ela precisaria ser, não se trata, por exemplo, de uma ascensão por antiguidade, ou coisas como as que existem no meio militar e que, ainda assim, podem ser dobradas para prejudicar as minorias.  Vejam que ela sequer é casada.  Nos EUA, onde a figura da primeira-dama é central, até isso pesaria contra ela e não seria pouco.

Quem produziu o filme parece crer que ser homem, ou mulher, não tem peso algum no jogo de poder, quando bastaria olhar para uma foto de reunião de líderes mundiais, ou de CEO de grandes empresas.  Como feminista, me senti bem ofendida.  Resumindo, sexo biológico importa nessa hora, o tipo de comportamento fascista de ontem e hoje é patriarcal e misógino, e uma mulher cis branca não tem o direito de ser tão vulgar, imbecil, insensível e sexualmente agressiva (*Orlean está envolvida em escândalos sexuais*) como um homem cis branco e ser eleita e se safar no final.  Se o mundo for destruído, tenham certeza que serão os homens cis brancos e ricos que vão ser os grandes responsáveis pela m**** toda, não mulheres de qualquer etnia, LGBTAQIA+, negros etc.

Por outro lado, o filme representa muito bem a misoginia ao abordar a personagem de Jennifer Lawrence.  Ela não é doutora, sua palavra tem menos peso por causa disso, mas ela é estigmatizada exatamente por ser mulher.  Sua explosão no programa de TV, quando perde a paciência, porque os apresentadores a ignoram e se negam a ouvir o que importa, há um asteróide a caminho da Terra e vamos todos morrer, é lida como coisa de mulher histérica, desequilibrada, irracional, que deveria ser medicada.  O desdobramento é que todos se voltem para o Dr. Mindy, ele é homem, ele fala manso, ele é gostoso.  Sim, o filme mostra a cultura dos memes, do cancelamento, do Tik Tok, enfim, onde tudo é rápido, superficial e cruel.  

Dibiasky é o material certo para que o ódio contra as mulheres ganhe forma, uma mulher que grita, que quer ser ouvida, que parece autoritária.  E Lawrence, apesar da franja que me incomodou, estava muito bem e fica ainda melhor quando interage com Timothée Chalamet, que eu nem sabia que estava no filme.  Ele faz um delinquente chamado Yukle que tem fé no coração e acaba sendo companhia para a jovem cientista depois que ela é abandonada por todos.  Eles funcionaram muito bem como casal.  Sim, o filme cumpre a Bechdel Rule e fácil.

Fechando, Don't Look Up  é um filme de humor negro, ele não vai deixar você alegrinho/a no final, não é um filme de Natal. Ele é incômodo, ele é angustiante, ele é longo, a campanha para não olhar para cima começa depois da metade do filme, ele vai fazer com que queiramos identificar as personagens do filme no mundo que nos cerca.  Já está cheio de memes assim na internet.  Agora, no final, a oração puxada por Timothée Chalamet quando o fim parece inevitável foi muito pungente, um dos belos momentos de um filme que não é bonito. Além disso, o final de DiCaprio mostrou que, nem sempre, os algoritmos estão corretos e é possível fazer escolhas, tente fazer as corretas, por favor, mesmo que sejam impopulares e difíceis.  E acho que Di Caprio e Jennifer Lawrence serão indicados ao Oscar por merecimento.  Jonah Hill está ótimo, também.

sábado, 25 de dezembro de 2021

Comentando Amor, Sublime Amor (EUA/2021): Steven Spielberg revisita e revigora um Clássico

Segunda-feira, fui com amigas professoras assistir a nova versão de West Sid Story, ou Amor, Sublime Amor no cinema.  Foi minha segunda ida ao cinema depois do início da pandemia e as resenhas e os comentários de um amigo já tinham me motivado e, bem, não havia outro filme que desse horário para que pudéssemos ir todas juntas.  Enfim, se eu tivesse que definir esta nova versão em uma palavra, usaria PODEROSA.  A versão de Spielberg, aventurando-se pela primeira vez em um musical, é muito forte, poderosa, desde o visual até o fato de conferir certa profundidade aos personagens principais da trama.  Eles e elas têm um background que justifique, ou explique, seus comportamentos.  Além disso, as discussões sobre racismo são potencializadas pelo roteiro.  Não saberia dizer se este filme de 2021 é melhor que a versão anterior, no entanto, mas, sim, que ele é muito bom.

West Side Story sugiu como ideia em 1947, a partir da peça Romeu e Julieta e deveria ser sobre o romance proibido entre uma moça católica e um jovem judeu (*ou vice-versa*) em East Side, Nova York.  Como saiu um filme com trama semelhante naquele mesmo ano, a proposta foi para a geladeira e terminou sendo remodelada em 1957.  Agora, a trama seria em West Side e colocaria uma gangue de moços brancos (italianos, irlandeses, polacos), os Jets, contra os recém-chegados porto-riquenhos, os Sharks.  No meio dessa briga, Maria (Rachel Zegler), irmã caçula de Bernardo (David Alvarez), o líder dos Sharks, se apaixona por Tony (Ansel Elgort), o ex-líder dos Jets e que está tentando se afastar da criminalidade.  Como na peça clássica de Shakespeare, a intolerância, neste caso motivada pelos racismos, acaba transformando o amor dos jovens em uma escalada de tragédias.

Gostei muito do filme e recomendo que quem gosta de musicais tire um tempinho para assisti-lo.  Amor, Sublime Amor é empolgante e oferece personagens muito mais estruturadas que as do filme de 1961.  Os três exemplos importantes, até porque são poucos personagens que tem peso são Tony, Bernardo e Chino (Josh Andrés Rivera).  Começando por este último, no musical de 1957 e no filme de 1961, ele era somente o sujeito com quem a família de Maria queria que ela se casasse.  No novo filme, ele é um jovem estudioso e com boas perspectivas de futuro, um protegido de Bernardo, e não existe a história de casamento arranjado.  Ainda bem, porque era uma das coisas que parecia bem arcaica no original.  

Uma coisa é que as famílias prefiram que seus filhos e filhas se casem dentro da comunidade, outra cosia é arranjar marido para uma adolescente sem que ela possa se pronunciar.  Não acredito que isso tivesse muito a ver com grupos latinos, ainda que pudesse fazer sentido em outros, como o dos judeus ultraortodoxos, ou de grupos islâmicos.  Veja, não é que Maria pudesse escolher qualquer um, mas ela poderia escolher praticamente qualquer moço, desde que fosse latino, católico e passasse pelo crivo de seus pais.

Tony abandonou a gangue e quer mudar de vida, é igual ao original, porém, ele está em condicional.  Ele cometeu um crime em uma das brigas de gangue e decidiu recomeçar, abandonando a vida perigosa e de pequenos crimes.  Já Bernardo, ele é um boxeador com uma carreira promissora.  Como eliminaram o pai e a mãe dele e de Maria, que não apareciam no original, mas eram mencionados repetidamente, Bernardo é o chefe da família.  Agora, observando o filme de 1961, porque eu fui olhar de novo, claro, talvez Riff (Mike Faist) fosse a personagem maiscompleta do original.  Ele é o garoto perdido, que recorre à violência como uma forma de compensar sua frustração em relação à sociedade que parece excluí-lo.  Na versão de Spielberg, as questões sociais e raciais, assim como a violência, são muito mais explorados.

O novo West Side Story serve de vitrine para uma Nova York que está sendo reconstruída de forma a acabar com os bairros pobres (*slums = favelas, mas eu acho melhor usar cortiço*) para que novos empreendimentos imobiliários voltados para classes mais abastadas pudessem surgir.  Logo na abertura, os Jets saem do chão, dos escombros, das profundezas, como se fossem ratos.  Por exemplo, o  Lincoln Square Renewal Project deu espaço para o Lincoln Center e outros prédios que não eram nem para Sharks, nem para Jets.

No novo filme é mostrado que os brancos que puderam, saíram da região, cada vez mais ocupada por latinos e o destaque, no filme, é para os porto-riquenhos.  Importante neste ponto é a personagem detestável do racista Tenente Schrank (Corey Stoll), porque ele está do lado dos Jets, pois são brancos como ele, mas somente até certo ponto.  Para Schrank, os Jets são brancos degenerados, aqueles que tiveram pais alcoólatras, viciados, que se envolveram com as "mulheres erradas", não com boas moças, aquelas que eram para casar.  Se honrassem suas raízes, os pais dos jovens teriam tirado suas famílias de West Side, segundo o policial.  O curioso, e vejo isso como um problema do filme, é Schrank, um racista, falar em brancos e incluir os judeus.  O pacote do racista médio norte-americano inclui os judeus, que não são vistos como brancos, mas como outra coisa.

Assim como no original, os números musicais são impressionantes.  Aliás, West Side Story se destacou em sua época por suas coreografias exigentes e arrojadas, assistindo documentários sobre o filme, há sempre o destaque par ao grau de dificuldade dos números de dança.  America, em especial, é um fabuloso e apresentado na rua, inclusive, com a participação de crianças, tem um impacto ainda maior do que em 1961.  E, um detalhe, apesar de terem falado que nenhuma música foi alterada, a icônica América foi.  A versão do filme de 2021 é uma junção da original de 1957, que era cantada somente por mulheres, com a de 1961.  Eu prefiro a versão do primeiro filme. Para efeito de comparação, é só clicar (*1957 - 1961 - 2021*).

Eu gostei muito da música Maria, porque Tony, e eu achei o ator feio nas fotos, mas mudei radicalmente de ideia, entra em um beco cantando e chamando pela moça que conhecera.  Como Maria é um nome muito comum, várias mulheres e meninas aparecem na janela.  Já a cena do balcão fez com que me questionasse se eu não estava velha demais para Romeu e Julieta, que li a primeira vez aos 13 anos e já achei um exagero romântico.  O diálogo foi bobo e exageraram a dose de açúcar e de loucura adolescente.  Só que comparando o diálogo do filme de 1961 com o de 2021, o do novo filme ficou mais infantil e teve algo incomodo.  Tony, em 1961, pede que Maria só tenha olhos para ele, o de 2021, exige, ordena.  E, claro, Maria é chamada não pelo pai e não ouvimos o apelido bonitinho Maruca.  Então, em comparação, fico com Maria de 2021 e o resto de 1961, por assim dizer.

Outra coisa, não consegui gostar muito da atriz que faz Maria neste filme, mesmo que a maquiagem que escurecia a pele dos atores me incomode muito, olhando o filme de 1961, Natalie Wood me passava uma impressão de inocência, algo necessário para embarcar nessa canoa furada amorosa com os dois pés, que a nova atriz não passa.  Alguém pode dizer que Rachel Zegler canta, mas Wood cantou e ficou muito magoada quando foi dublada por outra.  Foi meio que o mesmo sentimento de frustração de Audrey Hepburn em My Fair Lady,  Aliás, ambas foram dubladas pela mesma cantora, Marni Nixon, que era usada como "ghost singer" em vários filmes da época.  O problema, a meu ver, é que a Maria de 2021 é muito assertiva e atirada, a dúvida, o medo, valorizam a entrega a um amor juvenil e louco.  Afinal, é Romeu e Julieta!

Falando do elenco, a maioria dos atores e atrizes são muito bons e Rita Moreno teve uma preciosa participação como Valentina como viúva Doc, o mentor de Tony no original.  Agora, este papel é dela.  Através da personagem de Moreno, o filme discute os casamentos mistos e as suas dificuldades.  Também gostei muito da moça que faz Anita, Ariana DeBose.  Ela tem uma grande presença em cena, canta muito bem e confere uma segurança e sensualidade muito grandes à personagem.  Seu par, David Alvarez, destaca-se pelos mesmos motivos, a interação entre os dois é bem incendiária.  No filme de 1961, Rita Moreno, que fazia Anita, e George Chakiris, o Bernardo, ganharam o Oscar.  Vi várias resenhas dizendo que Alvarez é melhor que Chakiris.  Olha, fora a maquiagem, o que realmente é ruim, Chakiris brilhou. Ele e Alvarez tem linhas de interpretação diferentes, fora isso,  Chakiris é elegante, longilíneo, Alvarez é rústico, são dois modelos de masculinidade e de beleza, mas os dois são excelentes.  Acredito que ambos recebam indicação ao Oscar com chance de vitória.

Outro destaque do filme é Iris Menas, homem trans não-binário, que faz Anybodys.  Confesso que, no início, a transformação da moça tomboy, que implica em reprodução de comportamentos de gênero masculinos, mas nada tem a ver com sexualidade, ou identidade de gênero, em um homem trans.  Percebo um certo apagamento, ou incompreensão do que é ser tomboy fazendo com que muita gente, especialmente, na internet, identifique uma menina que gosta de coisas consideradas masculinas como lésbica, ou trans, no entanto, Menas está muito bem, por isso, fui mudando de ideia ao longo da película.  A  alteração acabou funcionando comigo e a personagem tem grande espaço no filme, não é uma pontinha sem importância.  Recomendo a matéria sobre Menas e que fala como ele construiu a personagem..

Já falei que a nova Maria me incomodou e preciso aprofundar um pouco a discussão sobre o papel das mulheres no filme, especialmente, a mocinha e Anita.  Maria é, no musical e no filme original, a representação da pureza que se materializa em seus vestidos brancos ou em tons pastel em contraste com as cores fortes das outras moças.  Ela ama Tony, aquele amor absurdamente instantâneo da peça original, mas ela não é capaz de enfrentar o irmão, mesmo que ele não esteja no lugar de pai.  No filme atual, ele está sob a responsabilidade do irmão, ela deve obediência à Bernardo.  Eu nunca entendo a idade de ninguém, salvo Maira, que tem 18 anos, em West Side Story, seja o antigo, ou o novo.  Os rapazes são chamados de delinquentes juvenis, mesmo que Bernardo, Anita e Tony pareçam adultos.  Por qual motivo o baile é no colégio?  As personagens faziam alguma espécie de supletivo?  Ficou confuso, mas o filme parece sugerir que são adolescentes e, ao mesmo tempo, não.  

OK, a Maria desse filme enfrenta o irmão e é ela que toma a iniciativa e beija Tony.  Em 1961,  e imagino que no musical original, Tony e Maria dançam aos olhos de todos e como se ninguém estivesse ali, se apaixonam no salão, neste filme eles vão para trás da arquibancada.  Estamos nos anos 1950, honra é algo importante, uma moça poderia ficar mal falada por muito pouco, essa percepção de honra era muito forte entre os latinos e eu posso citar casos da minha adolescência, ou seja, final dos anos 1980 e início dos anos 1990, de moças que sofreram por causa da língua do povo por muito menos.  Bernardo poderia voar em cima de Tony ali mesmo.  A mudança foi ruim e é mais destacado o fato dele ser do grupo dos Jets do que o fato de estar sozinho atrás da arquibancada com a irmã do chefe do grupo inimigo.  

O filme também naturaliza que Bernardo more junto com Anita sem serem casados, mesmo que não houvesse impedimento para isso.  Se agarrar na frente da irmã virgem parece aceitável, assim como que Maria soubesse que os dois estavam transando no quarto ao lado.  Olha, gente, fica parecendo que entre os latinos, ou porto-riquenhos essas coisas eram normais.  Sabe, as brancas são inocentes e puras, as latinas, não?  Aliás, isso é meio que invocado pelos rapazes na cena da tentativa de estupro de Anita por parte dos Jets.  Sequência, aliás, que é muito violenta em ambas as versões, mas, talvez, mais explícita na de Spielberg.  O fato de acusarem as mulheres latinas disso, ou daquilo, não quer dizer que elas fossem de fato.

Alguém poderá dizer que Graziella (Paloma Garcia-Lee) é vista de shortinho ajeitando a roupa e saindo de um trailer onde estava com Riff. Ela anda com os Jets, ela diz já ter sido namorada de Tony, ou seja, passou de um chefe do grupo para outro.  Só que está dado no filme, retomem a fala do Tenente Schrank, que Grazi não era mulher para casar.  Anita poderia até ser sensual, mas ela era uma moça trabalhadora e direita, Bernardo deseja casar com ela em ambas as versões, quer que ela seja a mãe de seus filhos, ainda que eles discordem no número, só que nesta de 2021, eles já estão morando juntos e jovem fica na igreja imaginando como compensar sexualmente o namorado depois da trágica luta.  Eu realmente não gostei desta sequência.

No intuito de tornar Maria e Anita mulheres mais ao gosto das sensibilidades modernas, elas se afastaram do que seria a média do comportamento feminino entre as imigrantes nos anos 1950 e que estava bem marcado no filme de 1961.  No novo filme, Anita é quase uma feminista em seus argumentos, assim como Maria.  Bernardo fica meio que encurralado pelas duas e não consegue se impor, pois todos os membros da família pagam uma parte do aluguel.  No original, a discussão era mais entre o estilo de vida norte-americano, algo que Anita defendia com unhas e dentes, e a vida tradicional em Porto Rico da qual Bernardo tinha saudades.  Tanto Anita, quanto Bernardo, trabalham em cima de idealizações.

Outra crítica a fazer ao filme sobre a representação das mulheres é o emprego de Anita e Maria.  Anita fala que tem seu próprio negócio e emprega outras mulheres, Maria deveria ser uma delas, mas a irmã de Bernardo canta "I feel pretty" com as colegas de faxina em uma loja de departamentos.  No original e no filme de 1961, tanto Anita, quanto Maria, e outras moças ligadas aos Sharks trabalhavam em uma loja de vestidos de noiva.  É lá que Tony e Maria fazem seu casamento simbólico.  Aliás, a cena de 2021, que foi em um museu, ficou bem mais bonita.

Enfim, o filme de 2021 modificou o lugar de trabalho de Maria, colocou Anita como uma "empreendedora" e, não, alguém que sonha com o próprio negócio, e ignorou que as porto-riquenhas representavam a maioria da mão-de-obra dos negócios de vestuário em Nova York na época e boa parte das alunas dos cursos de costura da cidade, além de atuarem nos sindicatos da categoria.  De novo, tentativa de se aproximar dos nossos dias, distorce a história e o papel dessas mulheres latinas no mercado de trabalho nos EUA, como se o único caminho fosse fazer faxina.

Já caminhando para o final, na versão brasileira não legendaram as falas em espanhol.  Nos EUA, não houve legendagem nem do inglês, nem do espanhol e Speiberg falou que era por uma questão de respeito ao segundo idioma do país.  OK, mas o que isso tem a ver com o Brasil?  Falando nas legendas, acho que nunca vi legendas tão ruins quanto a deste filme.  Trabalho muito porco.  

Me explicaram que as legendas ruins foram imposição vinda direto de fora, só me fez pensar no quanto somos maltratados.  A ideia é que as legendas seguem as músicas que aparecerão no musical que estreia ano que vem.  Eu não paguei para assistir ao musical que sai em 2022, provavelmente, nem terei a oportunidade para isso e dada a qualidade das legendas das músicas, e sei boa parte das letras originais de cor, fiquei bem incomodada.  Fora isso, paguei para ver o filme no cinema e essa decisão é um desrespeito com os consumidores.  Mas somos brasileiros, não é mesmo?  Ser desrespeitados, mesmo quando pagamos por um serviço, é normal.

Só que as legendas não eram ruins somente nas músicas, mas nos diálogos também.  E ruins não somente por causa da tradução, mas por terem problemas de concordância entre outros, fora, claro, que não legendaram as partes em espanhol.  E se eu entendo 90% de tudo o que falaram em espanhol (*eles falavam rápido, usavam gírias que me escapavam*), eu não sou o público inteiro.  Você paga para assistir um filme legendado e precisa receber legendas decentes.  Da mesma forma que quando se assiste um filme dublado, a dublagem precisa ter qualidade.

Acho que é isso.  O Amor, Sublime Amor de 1961 estreou em um 25 de dezembro.  Nesta resenha revisitei o clássico, porque olhei o filme depois de mais de vinte anos.  Houve ganhos, como o fato dos membros de gangue usarem palavrões e uma linguagem adequada à delinquentes juvenis, e perdas, como a modernização do comportamento de Maria e Anita.  Qual o filme melhor?  Não sei dizer, afinal, os dois são muito bons, cada um do seu jeito.  O que sei é que Steven Spielberg fez um belo trabalho em sua estreia em musicais.


sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Comentando Passaporte para Liberdade (Brasil/2021): Quando uma Brasileira Decidiu Fazer Diferença, Quando Poderia se Calar

Em 2019, fiquei sabendo que a Globo, junto com a Sony, tinha colocado em pré-produção uma série sobre Aracy de Carvalho, apelidada de "Anjo de Hamburgo", cidade alemã onde ela trabalhava no consulado brasileiro como responsável pela liberação de vistos.  Aracy teria sido responsável por conseguir a liberação de dezenas de vistos para judeus em um momento em que crescia a perseguição nazistas que desembocaria no Holocausto.  Aracy conheceu em Hamburgo o cônsul-adjunto João Guimarães Rosa, sim, o escritor, que tornou-se seu parceiro e com quem se casou em 1940.  Em 1982, após investigação criteriosa, ela foi agraciada pelo governo de Israel com o título de "justa entre as nações".    Segunda-feira passada, a Globo estreou a minissérie na TV aberta e no Globoplay.  Como são dois blocos de 4 episódios, decidi comentar a primeira parte toda de uma vez.

O seriado começa com a chegada de Guimarães Rosa (Rodrigo Lombardi) à Hamburgo.  A funcionária Aracy Moebius de Carvalho (Sophie Charlotte), que acabou de conseguir o seu divórcio do marido alemão, é peça central em uma rede que se empenha em conseguir vistos para que judeus possam sair da Alemanha para o Brasil.  Para agilizar as coisas, já que o governo brasileiro tenta dificultar a entrada de judeus, Aracy usa de expedientes para enganar o cônsul, Joaquim Antônio de Souza Ribeiro (Tarcísio Filho), transformando vistos de turista em permanentes.  

O cônsul encarrega Aracy de ajudar Guimarães Rosa, que fica encantado por ela, mas suspeita que a jovem possa estar envolvida em algo perigoso, a encontrar um apartamento.  Aracy não gosta nada disso e decide despistar o cônsul-adjunto. Guimarães Rosa é antifascista e fica particularmente abalado pela Noite dos Vidros Quebrados (9-10 de novembro de 1938). Aracy termina confiando nele, os dois se aproximam e ele se torna cúmplice nas ações da protagonista usando de suas boas relações com o ministro das Relações Estrangeiras, Oswaldo Aranha, para que aumente as cotas de vistos de Hamburgo, apesar da circular secreta 1127 recomendar que os vistos aos judeus sejam reduzidos ao máximo.

Além dos dois protagonistas, a série tem pelo menos mais três personagens importantes.  Milton Hardner (Stefan Weinert), um ex-policial e parceiro de Aracy nas suas ações de auxílio aos judeus.  Ele ainda mantém relações com gente dentro da polícia e a protagonista diz para Guimarães Rosa que ele é seu instrutor de direção.  Taibele Bashevis (Gabriela Petry), uma jovem que se afastou de sua família religiosa e é cantora usando o nome de Vivi Krüger e fingindo ser ariana.  Vivi é amante de um oficial das SS que a protege e domina, ao mesmo tempo, e viciada em cocaína.  Sua amiga, Helena (Sivan Mast), que faz parte da resistência ao regime, tenta aliciá-la como espiã.  Aliás, essa amiga termina sendo ameaçada pela máfia judaica, que existia e não sei como será desenvolvida na trama.

E a terceira personagem importante é o Capitão Thomas Zumkle (Peter Ketnath), o amante de Vivi.  Bem relacionado, provavelmente oriundo de uma família poderosa, ele é responsável pelo processo de arianização da economia de Hamburgo.  Explicando, entre 1933 e 1938, os judeus foram pressionados a passar os seus negócios para o nome de arianos, ou vendê-los, a partir de 1939, a coisa se tornou obrigatória.  Os empreendimentos de judeus eram leiloados para arianos por baixo preço, ou apropriados por gente ligada ao Estado, garantindo o enriquecimento de uma série de pessoas.

Zumkle começa como uma personagem dúbia.  Seria ele um nazista honrado?  A relação com Vivi até o episódio #3 é desigual, como não poderia deixar de ser, é desigual, mas ele a protege e tenta salvar o pai dela, o que acaba redundando em fracasso, porque um dos "amigos" de Zumkler, o Coronel Schaffer (Tomas Sinclair Spencer), decide eliminar o sujeito só por diversão.  Zumkler também tenta salvar Hugo Levy (Bruce Gomlevsky) para pagar uma dívida de honra que o médico judeu rico nem sabe que existia.  É por causa de Levy que Zumkler cruza o caminho de Aracy e passa a persegui-la por estar obcecado por ela.  Falando em Hugo Levy e sua esposa, eles são os típicos judeus que não acreditavam que o discurso nazista era para eles, também.  Para não me estender nisso, recomendo este outro post.

Enfim, Zumkler acredita que Aracy é uma mulher fácil e que iria ficar intimidada, ou fascinada por ele (*o ator é lindo, lindo, lindo*), mas ela o rejeita e acaba engrenando o romance com Guimarães Rosa.  A partir daí, ele meio que expõe o seu lado nazista malvado, porque ninguém chegaria à posição em que ela está sendo uma pessoa minimamente legal.  O sujeito não vira uma caricatura, a construção da personagem é sutil, mas ele mostra que não é tão honesto quanto aparentava e é violento com Vivi, muito por ela o ter rejeitado e culpado pela morte do pai.  Zumkler não pode forçar Aracy a ir para a cama com ele, mas pode estuprar sua amante judia cuja vida está em suas mãos.  Sim, é um spoiler, desculpem.

No geral, a série é boa.  O elenco é internacional, com brasileiros, alemães e pelo menos uma atriz israelense que estava no excelente Através do Muro. No geral, o inglês de todo mundo, língua da série, não irrita os meus ouvidos, mas eu não veria Passaporte para Liberdade dublado, porque nem usar os atores brasileiros para fazerem suas próprias vozes usaram.  Já as legendas do Globoplay são irritantes.  Aliás, o streaming só oferece opção de legendas em português para tudo e eu as considero deficientes e cheias de coloquialismos esquisitos (*"cê", "tá", "tava" etc.*) em todos os programas.  Não consigo imaginar o culto Guimarães Rosa, ou qualquer pessoa bem educada dos anos 1930 falando desse jeito.  

Agora, ter gente falando inglês na Alemanha e brasileiros falando entre si, em privado, em inglês é esquisito e tira um pouco da seriedade do material.  Quando anunciaram a série, disseram que ela seria falada em várias línguas.  Já ouvi coisas em alemão ao fundo e não houve legenda.  A oração fúnebre de Vivi para o pai, que deveria estar em hebraico, ou ídiche, também não foi legendada e a moça e a mãe trocam algumas palavras em ídiche e ficou sem tradução do mesmo jeito.  Isso é péssimo.

A série usa e abusa, no que acerta muito, das cenas de época, inserindo pedaços de documentários e registros dos anos 1930 ao longo dos capítulos.  É uma saída excelente, especialmente, para que as pessoas visualizem as ações do Estado Nazista.   Ainda assim, a série deslizou exatamente na Noite dos Cristais (Kristallnacht), ou noite dos Vidros Quebrados.  Explicando, em agosto de 1938, a Alemanha expulsou do país todos os judeus poloneses que foram levados para a fronteira quase sem nenhum de seus pertences.  A Polônia se recusou a recebê-los, deixando-os como cidadãos apátridas e na terra de ninguém em pleno inverno.

Um adolescente de 17 anos, judeu polonês residindo em Paris, ficou transtornado ao saber que sua família estava naquela situação.  Pegou uma arma e alvejou várias vezes um diplomata alemão na embaixada da capital francesa.  Criou-se uma grande comoção, quando o homem morreu, houve o ataque a todas as sinagogas, negócios e até residências de judeus na Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia nos dias 9-10 de novembro.  Não adiantava chamar a polícia, ou os bombeiros.  Houve linchamentos e estupros.  

No outro dia, homens judeus começaram a ser presos.  A comunidade judaica se viu obrigada a pagar os prejuízos, sob acusação de ter causado dano aos bens de alemães (*os judeus tinham perdido a cidadania em 1935 com as Leis de Nuremberg*) por não terem cuidado da segurança.  Na série, só vemos agentes do Estado participando dos atos de violência, mas há farto material fotográfico e fílmico mostrando que civis atuaram na Noite dos Cristais.  O regime nazista é um regime de massa.  A série não poderia ter errado aqui, ficou parecendo que o povo alemão, que em sua maioria apoiava o Hitler, não teve nada a ver com o horror.

Outra cosia que foi meio irritante é Aracy repetindo no primeiro e no segundo capítulo, depois parou, como a vida das mulheres era melhor na Alemanha, que lá ela podia dirigir, como se no Brasil, caso tivesse dinheiro para um carro, estivesse impedida.  A insistência sobre a autonomia das mulheres alemães não combina muito bem com o que o governo nazista defendia.  No discurso oficial nazista, as mulheres tinham direito a três "K", Kinder, Küche, Kirche (crianças, cozinha, igreja), os papéis públicos das mulheres no regime nazista, e Aracy chegou na Alemanha em 1934, eram regulados pelo regime e estavam a serviço dele, o ideal, no entanto, é que fossem donas de casa e tivessem muitos filhos.

Nessa mesma linha, me espanta que a secretária do consulado, Tina Fallada (Aryè Campos), veste-se combinando peças vistas como masculinas e femininas.  É fato que as calças compridas para mulheres começaram a ser vistas como aceitáveis em ambientes graças a algumas atrizes como Katharine Hepburn, que fazia o gênero tomboy, além de ser muito assertiva em suas declarações e atitudes públicas.  Agora, uma coisa é uma mulher moderna usar calças compridas em um clube, ou outro espaço de lazer, ou uma uma atriz fazer isso, outra coisa é a secretária de uma repartição pública fazer isso como se fosse a coisa mais normal.  E Tina Fallada sempre usa esse tipo de roupa, é sua marca registrada.  Sim, eu sempre olho o figurino.

A pior e a melhor sequência da série até agora foram protagonizadas por Vivi. A primeira serve para introduzir Zumkler.  A moça está passando pela rua vestida de forma elegante e sensual, ela é abordada por meninos da Juventude Hitlerista que a chamam de prostituta, a assediam e terminam descobrindo que ela é judia.  Zumkler chega para resgatá-la e pune os garotos.  Ora, os garotos da JH não iriam atacar um a mulher na rua sem ter certeza de que ela era judia.  Fosse Vivi uma ariana, eles estariam encrencados.  Ao colocar a cena, parece que a minissérie queria destacar o quanto o nazismo era brutal com as mulheres, mas além de ser um exagero, entra em contradição com o discurso de Aracy e a atitude de Tina.

A segunda sequência com Vivi é quando ela está na casa da mãe, uma mulher ultraortodoxa e que havia repudiado a filha, mas que voltara atrás depois da Noite dos Cristais e um garoto da JH bate à porta e lhes entrega uma caixa dizendo ser da prisão.  O garoto avisa que elas têm que pagar a conta da entrega fazendo um depósito bancário.  Ao abri a caixa, são as cinzas do patriarca da família.  Houve uma cena semelhante no filme Swing Kids, que é sobre os meninos fãs de Jazz que eram perseguidos, porque o estilo musical era considerado coisa de judeus e negros.  Enfim, em Swing Kids, o protagonista, que é interpretado por Robert Sean Leonard, houve o choro e o desespero da família da rua.

O horror do Holocausto ainda estava começando, mas a série é muito eficaz em mostrar que mesmo no começo, ele não era algo tolo, porque todas as vidas importam.  Aliás, essa ideia de que as coisas só ficaram ruins depois, parece nortear o discurso dos historiadores Fábio Koifman (*o que mais dá entrevistas*) e Rui Afonso criticando a minissérie e colocando em questão a figura de Aracy e seu papel naqueles meses no consulado de Hamburgo.  Sim, eu não posso terminar a resenha, e haverá outra avaliando a segunda metade da série, sem falar da controvérsia histórica envolvendo o Anjo de Hamburgo.  

Segundo Koifman, o estudo desenvolvido pelos dois evidenciou que Aracy não agiu de forma heroica, tampouco fez algo que não estava em consonância com as leis brasileiras, ou seja, ela fez o que qualquer funcionário poderia fazer.  Eu não li o trabalho deles, um capítulo no livro Judeus no Brasil: História e Historiografia (2021), que é em homenagem ao medievalista Nachman Falbel (*tenho livros dele em casa*) e reúne vários artigos.  Até compraria o livro, se conseguisse acesso ao índice, mas como não consegui, não vou pagar caro em um livro que pode me interessar muito pouco.  Muito bem, vamos lá.


O primeiro ponto é que os historiadores podem estar certos e errados ao mesmo tempo.  Primeira coisa, eles parecem absolutamente certos em um aspecto, os vistos dos judeus eram identificados com a letra "J", porque judeus poderiam vir para o Brasil em duas condições, caso pudessem colaborar de alguma forma (*empresários, técnicos, artistas etc.) e com visto de turista, que era temporário.  E, vejam que legal, a minissérie não errou nesse ponto, ela segue direitinho o que eles apontaram.  No entanto, em TODAS as matérias Koifman repete que não havia nenhuma restrição do governo brasileiro aos judeus em 1938-39 e que as coisas na Alemanha não estavam tão ruins assim (ainda).

Em matérias de jornal, costumam retalhar o que a gente fala.  Já dei várias entrevistas para meios de comunicação e sei disso, mas como historiadora, as falas de Koifman me parecem estranhas.  Vamos ao segundo ponto, então?  É fartamente documentado que o governo brasileiro tinha circulares secretas, que a série vem citando de forma bem pertinente, limitando os vistos para os judeus.  Então, imagine se Aracy e Guimarães Rosa não tivessem agido?  Está documentado que o Embaixador em Budapeste (Hungria) negava os vistos aos judeus e comunicava orgulhosamente ao governo brasileiro o cumprimento da diretriz 1127.  Bastou uma busca e eu cheguei lá. No mundo real, um burocrata interessado pode ajudar a salvar vidas, ou economizar meses de dor de cabeça, ou ferrar com você.  Neste caso, deixar morrer mesmo.

Encontrei o artigo Além do Estado e da ideologia: imigração judaica, Estado-Novo e Segunda Guerra Mundial e destaco o seguinte: "O anti-semitismo esteve presente nos anos 1930 e 1940 em importantes círculos do governo, especialmente o Itamaraty, e sua mais grave conseqüência foram as circulares secretas que restringiram a imigração de judeus ao Brasil a partir de 1937. Este anti-semitismo produziu episódios terríveis, como a história dos três mil vistos a católicos não-arianos que o Vaticano solicitou ao governo brasileiro e que, em sua maior parte, acabaram sendo recusados, conforme o livro do historiador Avraham Milgram, e centenas de histórias trágicas de refugiados que não puderam entrar, conforme as pesquisas de Maria Luíza Tucci Carneiro. Neste sentido, não há dúvida de que a política do governo brasileiro foi conivente com o anti-semitismo na Europa. Embora o Estado Novo tivesse núcleos ideológicos afinados com regimes de extrema direita, como os de Portugal e Polônia, com o fascismo italiano e mesmo com o nazismo alemão, não se pode, no entanto, defini-lo como um regime fascista ou nazista, historiograficamente falando."  

Espero que vocês tenham entendido que o Brasil, se pudesse, não aceitaria judeus, o governo estava cheio de antissemitas, como também buscou restringir a entrada de japoneses mais ou menos na mesma época, antes da 2ª Guerra Mundial alegando motivos eugênicos, isto é, de melhoria da "raça".  Eu não sou especialista em Brasil, nem em Estado Novo, ou imigração judaica e eu sei disso, porque é algo fartamente documentado, discutido e exposto.  Claro, se você não lê sobre isso, pode não saber, mas eu fiquei dez anso dando aula para o terceiro ano do Ensino Médio.  A minissérie está seguindo direitinho a História e matando a cobra e mostrando o pau, porque nos papos entre o cônsul e Guimarães Rosa e Aracy são citadas as circulares secretas por número.  E se você jogar no Google, elas aparecem, porque são documentos públicos e o primeiro link costuma ser o do Museu do Holocausto.  E vamos ao terceiro ponto!

O título de justo ou justa entre as nações é usado pelo Estado de Israel para descrever não-judeus que arriscaram suas vidas durante o Holocausto para salvar judeus do extermínio pelos nazistas por razões altruístas. Vocês imaginam o Estado de Israel dando esse título para qualquer um?  Sem investigar muito bem?  Sem ouvir testemunhos, ou observar provas documentais?  Eu não imagino que saiam dando esse título para qualquer um.  E eu posso estar sendo má, porque, repito, não li o trabalho dos historiadores que atacaram a minissérie e sei que as matérias retalham as falas, mas fica meio que no ar a insinuação de que Aracy foi desonesta, que se aproveitou de judeus assustados para ganhos pessoais, autopromoção, essas coisas.  Só que em 1937, 1938, 1939, ninguém tinha ideia do que iria acontecer no futuro, só que havia gente desesperada e precisando de ajuda e você era o burocrata que poderia ajudar, ou dar de ombros.  

Essa, é a pior parte, acho, porque há os testemunhos e a série acertou muito ao colocá-los no final.  É algo que lembra o que era feito em Amor e Revolução, a novela do SBT sobre o Golpe Civil Militar.  Em Passaporte para Liberdade, são os filhos e netos de gente que Aracy ajudou a salvar que falam dela, de como ajudou, inclusive, a salvar pertences dessas pessoas, algo mostrado na série, porque o governo alemão tributava em NOVENTA e SEIS PORCENTO tudo o que os judeus tinham, ou seja, eles chegariam ao Brasil na miséria.  Sim, as coisas iam piorar, mas elas não estavam ruins em 1938-39?  Desculpem estavam, sim.

Sim, eu sei que vão romancear a história de Aracy e Guimarães Rosa, o romance começou no capítulo #3 e as cenas nem são lá muito interessantes ainda.  Alguns diálogos me parecem um tanto piegas.  O capitão nazista bonitão é uma invenção da série, mas o desespero dos judeus, as famílias ameaçadas, as pessoas presas e torturadas, as Leis de Nuremberg e a Noite dos Vidros Quebrados, tudo isso aconteceu.  E é reconfortante, porque não fui convencida do contrário, que brasileiros tenham ficado do lado certo, mesmo com as pressões do governo do seu país, que era simpatizante da Alemanha, a não fazerem nada, ou fazerem muito ponco.

Antes de terminar, três coisas.  Rachel Anthony assina o roteiro junto com Mário Teixeira e isso deve estar funcionando para o bem da série.  O ator Pierre Baitelli está no capítulo #4, mas não foi listado no Imdb da série, nem na Wikipedia.  E, ontem, o linguista Marcos Bagno fez um post no Facebook, que depois apagou, sei lá, comentando que o uso dos artigos definidos parecem estar desaparecendo em algumas situações no português brasileiro.  E ele citou o título da série que deveria ser Passaporte para a Liberdade, mas que o "a" sumiu, porque o título é uma tradução direta do inglês, Passport to Freedom.  Ficou feio e errado, por assim dizer.  É isso.  Feliz Natal pra vocês.