A amiga Jéssica me passou um artigo do The Telegraph intitulado "Se até Orgulho e Preconceito precisa ter um elenco "diverso", o drama de época inglês está morto. Os chefões da TV podem achar que estão sendo inclusivos. Mas receio que haja dois pequenos problemas." (If even Pride & Prejudice has to have a ‘diverse’ cast, the English period drama is dead. TV bosses may think they’re being inclusive. But I’m afraid there are two small problems.), que parece cheio das boas intenções, mas que, na verdade, é de um racismo descarado.
O autor, Michael Deacon, parece ser o campeão das causas erradas, começando com a acusação de que quem denuncia o genocídio em Gaza de ser antissemita até chegar à celebração de J.K.Rowling como heroína nacional por perseguir pessoas trans. É esse tipo de gente o autor desse texto que traduzi. Enfim, vou colocar o artigo todinho traduzido e, em seguida, volto para comentar. Irei manter a estrutura do original, mas o link é do artigo com o pay wall quebrado.
Se até Orgulho e Preconceito precisa ter um elenco "diverso", o drama de época inglês está morto.
Os chefões da TV podem achar que estão sendo inclusivos. Mas receio que haja dois pequenos problemas.
Pessoalmente, acho essa tendência fascinante. Produtores de dramas de época sempre se esforçam ao máximo para garantir que figurinos, móveis e decoração pareçam escrupulosamente autênticos. No entanto, quando se trata de escolher o elenco, eles fazem o oposto – e fingem que, 200, 500 ou 1.000 anos atrás, a Inglaterra era tão multicultural quanto é na década de 2020. Eles morreriam de vergonha se, ao fundo, os espectadores vissem um conjunto de painéis solares ou duas linhas amarelas. Mas anglo-saxões negros? Sem problema algum.
É uma combinação peculiar. Se decidimos que a verossimilhança histórica não importa mais no elenco, certamente deveríamos ser consistentes e decidir que ela também não importa mais nas roupas ou no comportamento. Que os nobres da Regência usem camisas do Arsenal. Mostrem os normandos cavalgando para a batalha em Chinooks. Que Sir Thomas More tire uma selfie no cadafalso.
De qualquer forma, a autora do artigo da BBC sobre a extinção do drama de época "totalmente branco" pareceu aprovar essa nova tendência no elenco. "Finalmente", escreveu ela, "a indústria está demonstrando que o drama de época é um gênero no qual a diversidade racial pode ser refletida e celebrada".
Tudo isso é muito bom. O problema é que dá a impressão de que a diversidade racial tem sido "celebrada" ao longo da nossa história. Para os espectadores, isso deve ser intrigante. Nos últimos anos, ouvimos incessantemente que o passado da Grã-Bretanha foi vergonhosamente racista. No entanto, os dramas de época nos dizem que era uma utopia multicultural, na qual pessoas de todas as raças eram bem-vindas em todos os níveis da sociedade.
Ainda assim, não devemos reclamar. Tenho certeza de que essa abordagem daltônica para o elenco se aplica igualmente a todos. Aguardo ansiosamente que a BBC transmita um drama de época sobre o Windrush, no qual os passageiros principais são interpretados por Hugh Grant e Keira Knightley.
Vamos lá! Voltei! O texto do The Telegraph pode parecer bem intencionado, mas ele se esforça para esconder o incômodo do autor em ver pessoas não-brancas na tela. Motivo? Isso interfere no discurso de que a Europa era branca e foi contaminada, invadida, conpuscarda pela invasão de pessoas "de cor". Isso perverte o discurso supremacista que a extrema-direita projeta sobre o passado, especialmente, sobre a Idade Média, mas não somente. E, para quem não sabe, sou uma medievalista aposentada, meu mestrado, doutorado, enfim, praticamente tudo o que produzi de historiografia por mais de 10 anos, é sobre o período.
E, sim, há historiografia sobre a presença de pessoas negras na Europa ao longo dos séculos e feitas por historiadores DE VERDADE. Fiz um vídeo (*tempos atrás*) para o Tik Tok sobre o livro Black Europeans, existe um livro chamado Black Tudors (*que eu preciso comprar*) e já pulei de biografia em biografia na Wikipedia de mulheres negras que serviram na Corte inglesa e escocesa desde os tempos de Catarina de Aragão. Fora isso, já fiz mais de um texto para o blog sobre negros na Inglaterra de Jane Austen. Inclusive, a autora criou uma mocinha negra e rica herdeira em seu inacabado Sanditon. Certamente, o autor do texto iria acusar Austen de estar falseando a História. Fora isso, recentemente, foi divulgada uma descoberta arqueológica interessante na Inglaterra, um túmulo do século VII contendo restos mortais de dois indivíduos inegavelmente da África Ocidental. E, para concluir essa parte, um dos últimos programas do Historia FM trouxe um medievalista brasileiro que estuda relações raciais e racismo na Idade Média. E ele não citou exemplos somente da Península Ibérica, para quem se interessar.
Como escreveu o excelente perfil Actuel Moyen Âge no Twitter, "Ausência de evidências não é evidência de ausência". Cabe um pouco de imaginação histórica não para inventar, mas para estar atento às evidências que, por uma série de motivos, não foram lidas como indício de ruptura com um modelo de História que, não raro, nega a presença e o protagonismo para quem não é homem dentro daquilo que seria considerado norma dentro de um determinado período. É o "nem vou procurar, porque não existe". "O que a História não diz, não existiu." é uma das frases da minha orientadora de doutorado, Tânia Navarro-Swain, que desenvolveu o conceito de História do Possível. E Jane Austen sabia disso. Lembram da conversa entre Anne Elliot e o Capitão Benwick sobre como a História, a oficial, é injusta com as mulheres, ou que dela devemos desconfiar, porque são sempre (*ou quase*) as palavras dos homens que são lidas? Pois é... Achei até um artigo acadêmico discutindo isso.
Voltando ao texto do The Telegraph, ele aponta algo que eu já comentei, mas a partir de uma perspectiva equivocada. Quando representamos um passado sem racismo, sem machismo, sem classismo, sem lgbtfobia, falseamos a história, mesmo que isso dê um quentinho no coração de quem não quer ver sofrimentos e desgraça. Já bati nessa tecla muitas vezes, em vários textos, um deles foi sobre Gilded Age. O melhor seria pegar casos de pessoas de grupos minoritários que, apesar das muitas limitações impostas, venceram, mesmo que dentro de uma lógica capitalista e/ou liberal, ao invés de ficar distorcendo o passado e projetando nele valores do presente. Se não gosto dos reacionários reinventando a História, não me agrada igualmente que os (*ditos*) progressistas o façam.
Apesar de apontar isso que discuti acima, o autor do artigo que traduzi não separa essas representações equivocadas do passado de material "color blind", que é coisa muito diferente. Gostemos, ou não, do "color blind", materiais desse tipo partem do princípio de que os atores e atrizes não têm cor. São simplesmente pessoas emprestando seu corpo para personagens. Deve haver o termo "gender blind", também, porque a lógica seria a mesma. Então, ninguém nesse novo Orgulho & Preconceito será negro, mesmo que o ator ou atriz seja. Obviamente, eu já reclamei, e não vou procurar texto para linkar dessa vez, ainda que eu saiba que ele existe, que geralmente os protagonistas da trama são brancos. É assim no novo Orgulho & Preconceito. Ousadia seria escalarem um Darcy negro, indiano, árabe, coreano, não deixar o cara exibir suas madeixas cor de cobre. Percebem o meu ponto? Também já reclamei do maniqueísmo, que apareceu em Ana Bolena, que está disponível no Globoplay, no qual os brancos eram os maus, e os não-brancos os mocinhos.
Escalar um elenco "color blind" não é o mesmo que tentar reimaginar um passado diverso e acolhedor. Para o autor, não há diferença entre uma coisa e outra porque o que lhe incomoda é a própria presença de pessoas negras em produções de época. E ele cita o seriado King & Conqueror, que estreou na BBC em 24 de agosto, porque aparece um soldado negro nas tropas de Guilherme o Conquistador ou de Haroldo, teria que olhar a série. Os racistas estão se rasgando de dentro para fora por causa de um único frame. Como pontuou o Actuel Moyen Âge, ainda que improvável, a presença de um negro ali não seria impossível. E o perfil mostra evidências nas fontes medievais para tanto, fora que não é possível reconstituir o passado como ele foi por vários motivos. Só que, como é muito bem colocado, esse não é o ponto e eu vou citar: "Então, por que a reclamação aqui? Porque os perfis que reclamam veem essa presença como um projeto político ("wokeísmo") que consideram insuportável. O argumento do "realismo histórico" é simplesmente um pretexto que lhes permite legitimar seu racismo.".
Então, desconfiem sempre de quem cobra (*suposto*) realismo em questões raciais ou de papéis de gênero, porque geralmente é o mesmo tipo de gente que não se importa com mudanças históricas que lhe sejam interessantes. Mesmo que elas sejam absurdas e grosseiras. É também o mesmo tipo de gente que ADORA imaginar um passado, especialmente a Idade Média, no qual era possível praticar toda a sorte de violências (*sexuais*) contra as mulheres, como se não houvesse regra nenhuma. Seria o mundo perfeito, porque homens brancos católicos (*na visão deles, claro*) dominariam sobre tudo e todos e as mulheres, especialmente nós, seríamos meros objetos de cama e mesa.
Enfim, as preocupações do autor do texto poderiam ser legítimas, se ele mal pudesse disfarçar o seu racismo, porque, no final, ele escancara ao falar com certo desprezo de Windrush, o primeiro navio de muitos que trouxe uma leva de imigrantes negros do Caribe, especialmente da Jamaica, para o Reino Unido, a partir de 1948. Esses negros e negras vieram para suprir a falta de mão de obra barata. Eles e elas foram discriminados e sofreram racismo. Para o autor, seria justo que pessoas brancas os interpretassem, porque, bem, "color blind" deveria ir para os dois lados. Percebe qual o incômodo dele? E, que eu saiba, só existe um ÚNICO seriado da BBC, filme nunca ouvi falar, contando a história desses imigrantes, Small Island. E voltamos ao ponto, precisamos contar essas histórias, elas fariam muito mais diferença do que reinventar o passado ou ficar fazendo material "color blind". Mas essa é somente a minha opinião.

















































2 pessoas comentaram:
É uma crítica que só alguém com seu conhecimento poderia fazer. Nunca parei para pensar nisso
❤️❤️❤️❤️
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