
Existe uma fantasia machista muito perturbadora que permeia a literatura romântica em geral e da qual os mangás não conseguem escapar. Trata-se do tal “estupro consentido”, aquele papo horroroso de que quando uma mulher (*ou um uke*) diz “não”, na verdade, está dizendo “sim”. Fiquei pensando que deveria escrever algo sobre isso e que não seria uma coluna para o Anime-pró, mas algo para o meu blog. O que despertou meu interesse? Uma discussão no grupo BL/Yaoi AMLA. Sou lurker e observo somente, acho algumas discussões bem pertinentes, mas a maioria ou não me interessa diretamente, ou me parecem papos que descambam para a leviandade, como no caso do estupro. O título das mensagens era “Academic works on rape in Boys Love” (Trabalhos Acadêmicos sobre estupros em Boys Love), e eu fui catar para ver se havia alguma coisa interessante.
No fim das contas, não apareceu nada ainda, nenhum link, nenhum trabalho, só a defesa dos estupros literários e afirmações do tipo “estupro consentido não é estupro”, “quando o uke/mulher/passivo diz ‘não’, na verdade está dizendo ‘me dê prazer e faça valer a pena’”, houve também a maldita citação de Hana Yori Dango junto com Hot Gimmick como shoujos com “estupro consentido”, e a história de que é algo “normal” na literatura romântica, fora, a pérola de que “sim” e “não” no Japão têm outro peso.
Concordo que a idéia de estupro consentido atravessa boa parte da literatura popular romântica, e que essa representação depende tanto de homens quanto de mulheres para se perpetuar, no entanto, o fato da representação social existir não quer dizer que ela seja positiva, nem que tenha que permanecer para sempre ou tenha existido sempre. Deliciar-se com um estupro ancorando-se na idéia de que a vítima está “gostando”, é como justificar a violência.
Boa moça nunca diz “sim”. Então, quando ela diz “não” é um convite à ação, não é mesmo? Como o homem/ativo vai saber como agir? Como uma mulher poderá confessar seus desejos sem manchar sua honra e parecer “fácil”? “Ela queria”, vai argumentar o criminoso, na verdade, se aceitou meus beijos ou minha companhia queria transar comigo. Esse catecismo é repetido e idealizado, e vale para alguns shoujos, para BL/yaoi, para romances Harlequin, e, claro, para hentai e pornografia de massa como os catecismos de Carlos Zéfiro. Como diz a autora de Confidential Confessions, estupro não é sexo, estupro é crime.
O problema é quando nós fãs de mangá não conseguimos perceber os limites. No meio da discussão foi citado o fato de que uma editora da Alemanha que publica mangás BL/Yaoi, se recusar a lançar qualquer coisa que tenha estupro ou estupro consentido, o que parece “careta” para algumas fãs do gênero. Ponto para as alemães. Foi citado o mangá Gerard & Jacques como exemplo. Alguém disse que “não conseguia ver onde estava o estupro”. Não vê porque seu cérebro está tão anestesiado por esse tipo de representação violenta de romance que a coisa passou a ser “normal”.
Em Gerard & Jacques temos um burguês rico que compra a primeira noite de um adolescente (15? 16? 17 anos?) nobre que tinha sido mandado para um bordel masculino para pagar a dívida do pai, um aristocrata endividado. O burguês intelectual odeia nobres, humilha o rapaz e o estupra, apesar do menino suplicar que não o faça. "Ah, mas ele queria!" "Ele passa a gostar do cara que é bem mais velho e charmoso!" "o cara estupra mas depois compra a liberdade do menino! Que cute!" Sim, claro! Alguém que foi vendido para um prostíbulo tem direito de dizer “não” e sair sem nenhum arranhão.
Daí alguém do grupo do AMLA diz que nos primeiros BL, os shounen-ai suponho, a coisa era mais violenta, porque o estupro não era consentido... Sim, mas o estuprador geralmente era o vilão. Se pego os dois fundadores do gênero, Kaze to Ki no Uta e Tooma no Shinzou, temos estupro. Thomas é violentado por alunos veteranos quando vai para o colégio interno. É uma cena violentíssima, sem que se mostre nada de sexo. Impossível não sofrer com a protagonista que se fecha para o amor e se torna tímido e retraído. O mangá fala de sua cura. Em Kaze To Ki, Gilbert é violentado também. Ao invés de seguir o caminho de Thomas, ele prefere se tornar o prostituto da escola. Se quiserem seu corpo, terão que dar algo em troca. O garoto é leviano e cruel, mas carrega uma dor imensa. O mangá fala de redenção, não de pornografia barata ou perversões.
Tooma no Shinzou e Kaze To Ki ficaram imortalizados não por serem os primeiros do gênero, mas porque são sinceros, bem escritos e foram produzidos por uma geração de mulheres que queria romper com convenções, “dissolver os gêneros” como disse Takemiya Keiko, não perpetuar a violência contra as mulheres e os mais fracos como se fosse algo “poético”. Não sei o que outras autoras fizeram depois, mas quantos títulos yaoi/BL ficaram imortalizados fora do círculo de fãs-fanáticas do gênero? O primeiro "estupro consentido" que vi em um material não-hentai foi em um BL/yaoi, Zetsuai Bronze, em plena Margaret... E foi uma cena violenta, mas claro que vão dizer que o “uke queria”. Aí está...
O mesmo vale para um monte de shoujos, chamados aqui no Ocidente de “steamy”. Em dois de uma mesma autora, Osakabe Mashin, temos a mesma situação (*essas criaturas tendem a ser repetitivas*): cara rico compra uma menininha para transformá-la em sua escrava sexual. Na história que se passa nos dias de hoje, ela é adotada, mimada, e tal. Quando tem uns dez, onze anos, pergunta ao seu “pai” o que ela representa para ele... A resposta do cara é o estupro da criança, que certamente nutre sentimentos pelo sujeito... Logo, ela queria.
Quando a menina tem a primeira menstruação o sujeito a trata de forma pior ainda, porque está sendo privado do seu prazer. Passa a lhe dar remédios... Ele é o herói, tá? Na história que se passa no século XIX, Toriko, o cara rico compra a menina, desde o início sabemos para quê. Ele a tortura com o objetivo de educá-la, por fim, a violenta... Há outros detalhes na história, mas a essência é essa. Só que como o cara é um bishounen liiiindo de morrer, então está tudo certo.
O que me deixa indignada nesses papos é a comparação entre Hot Gimmick e Hana Yori Dango. O primeiro tem como protagonista uma mosca morta, Hatsumi, que é chantageada pelo vizinho rico que quer transar com ela, ou qualquer outra, mas a moça é um alvo fácil. Li oito volumes – o elenco de apoio é bom – esperando que rapaz rico, Ryoki, tome vergonha na cara... ou que os dois tomem. Nada disso, ele atravessa a história inteira sem mudar: misógino, egoísta, mimado e violento, pois tenta estuprar a mocinha várias vezes. No final, (*Sim, vamos esticar a história e vender mangá!) ele perde a virgindade junto com Hatsumi, que adora ser maltratada. Mensagem: mulher gosta de apanhar, de ser pisada. Diz “não”, quando quer dizer “sim”. Se fosse falar de Teacher’s Pet, da mesma Miki Aihara, confirmaria a idéia – como disse, esse tipo de autora gosta de se repetir – e desceria ainda mais baixo, pois a professora virgem é agredida e estuprada por um aluno adolescente, irmão de seu noivo, e vira amante do moleque, porque deve ter sido bom demais!
E aí sempre vem a comparação com Hana Yori Dango. Lá no início da série – mangá ou anime dá quase na mesma – Tsukasa tenta violentar Makino. Eles são inimigos, ela não se intimida com ele, não cede ao rapaz mimado que acha que pode ter tudo o que quer... Inclusive ela. O rapaz não sabe que a ama ainda e está com o orgulho ferido. É fato, a cena é forte. Só que ela resiste o quanto pode, até que ele percebe que está errado. Havia mais raiva que desejo naquele ato. Tanto que a coisa não volta a se repetir e a partir de então o rapaz passa a pesar mais os seus atos, começa a amadurecer, a respeitar mais os outros. Mudança lenta, mas mudança. Durante a série, todas as vezes que os dois quase fizeram amor, a coisa foi consensual. Muito diferente de Hot Gimmick, Teacher’s Pet, esses “steamy shoujo” da vida, ou um Gerard & Jacques.
Se for para a literatura romântica popular e pegar um livro da Shannon Drake – li dois e a mulher é repetitiva, também – temos a moça prisioneira, o captor violento, mas com um bom coração, e o tal “estupro consentido”. Achei o primeiro livro da autora, A Princesa Rebelde, brilhante. A moça é uma princesa saxã, capturada durante a invasão normanda (1066, Batalha de Hastings), seu captor nutre sentimentos por ela e por isso a dá para outro cavaleiro. A moça é casca grossa e quase mata o sujeito com uma faca. Acaba retornando às mãos do primeiro normando ainda virgem e ele decide puni-la por sua insubmissão. Com o passar do tempo, e depois de ser maltratada, ele consegue fazer sexo com ela... Ela tinha escolha? Bem, poderia tentar matar o cara, conseguir e ser morta pelos capangas do sujeito.
Bem, ela fica grávida, mas resiste à idéia de que ama o sujeito. É exibida em um banquete promovido pelo novo rei, Guilherme o Conquistador, como um dos frutos da união entre normandos e saxões. Ela é a própria Inglaterra violentada. Como diz a mãe da moça, “Fique feliz, minha filha, porque você sabe quem é o pai da criança e ele quer casar com você. Pense nas meninas de 11, 12 anos violentadas que darão à luz bastardos de quem não saberão nem o nome do pai”. Dentro daquele contexto, a mãe de Fallon estava coberta de razão. O realismo sincero do livro me conquistou. A história era cruel e verdadeira, o fato dos protagonistas “se amarem”, pouco anulava a violência e o fato da moça estar encurralada.
Fui ler outro livro da autora – O Conquistador – e cheguei à conclusão de que se tratava de um fetiche por “estupros consentidos”. A protagonista da história também é capturada, por um homem que é inimigo de seu noivo, um criminoso que ela não escolheu para marido. “O Conquistador” desde o início deixa claro que deseja fazê-la sofrer pelos crimes do noivo bandido... A moça tenta fugir, lutar, mas é mantida prisioneira e é humilhada. Como única saída para não ser violentada, mente dizendo que tinha feito sexo com todos os soldados da fortaleza e mais alguns. Pronto, o cara vai lá e a estupra.
Ele tem consciência do ato, mas ao descobri-la virgem, sente-se culpado, afinal, ele é o herói, tem que ter escrúpulos! Por que ela mentiu? Prostitutas não merecem respeito algum, certo? Depois, se sente orgulhoso, pois o que ele teve o grande inimigo não poderá mais ter... Romântico, não é? Agora a mocinha precisa se convencer que queria fazer sexo com o sujeito desde o primeiro momento em que ele lhe tratou mal e a autora tenta nos convencer, também, que a violência não foi tanta e que se ela tivesse dito a verdade, teria sido diferente. E durante o livro inteiro, assim como em A Princesa Rebelde, nosso herói não confia na mocinha e a faz sofrer. E quando o noivo bandido a captura, ele a faz sofrer, também, e quer matá-la. Mas ele é o vilão, ele pode fazer esse tipo de coisa e pagar com a vida. Enfim, uma delícia para quem curte mulheres humilhadas e um final feliz capenga.
Se alguém quiser ver uma representação romântica de uma mulher que deseja fazer sexo, mas recua, pegue o mangá da Rosa de Versalhes. Sim, o mangá, não a excelente e machista releitura em anime. No mangá (Night of Passionate Vows), depois de quase trinta anos de convivência, Oscar convida André para ir a seu quarto. Ela deseja ser sua esposa, e concordo que o sexo selaria a coisa toda. Ela faz a proposta, ela é ativa, mas no momento final, ela tem medo. Sua inexperiência é total. O que André faz? A pressiona? Bate nela? A apalpa de modo lascivo porque “sua boca diz ‘não’, mas seu corpo diz ‘sim’”? Não, lhe dá segurança, e, sim, eles fazem amor.
A cena é uma das melhores do mangá, e o mangá é lembrado mais de trinta anos depois. Por quê? Será que toda a literatura romântica precisa de mocinhas (*ou ukes*) assustadas, dizendo “não” quando querem dizer “sim”, ou sendo forçadas a fazer sexo porque os homens “não podem se controlar” ou porque “se eu vim até aqui tenho que ir até o final”. Elas não são donas de seus corpos, literários ou não. Muitas meninas japonesas seguem seu exemplo. Houve notícias falando sobre isso, do aumento de estupros de adolescentes por seus namorados no Japão. Afinal, muitas das heroínas atuais, feitas por gente como Miki Aihara ou Shinju Mayu, são joguete nas mãos de namorados sedentos por sexo ou lascivos. E muitos namorados, adolescentes como elas, jogam ou assistem ou lêem hentai com estupros e meninas sodomizadas. E ainda vem alguém dizer que no Japão “não” e “sim” não são usados como no Ocidente...
Na literatura ou na vida real, mulheres não têm o direito de dizer não. A literatura e a realidade se alimentam, não posso ser contra o estupro e achar liiiindo que essas construções machistas sejam vendidas como material romântico. Violência chama violência. Vilão estuprador é uma coisa, mocinho estuprador (*e que não se arrepende*), outra. Estupro como recurso narrativo vale, estupro como forma de excitar e alimenta as perversões do público, merece a lata do lixo. Acredito, que não é preciso ser feminista como eu para entender isso. Não sou a favor da censura, sou contra a publicação de certos materiais mesmo. Se trouxerem, que lancem na íntegra, sem censura alguma, afinal, foi o que o autor ou autora desejou transmitir. Mas com tanta coisa melhor para publicar, para que trazer materiais assim?
Só para fechar, lembro da menina – sim, se tenho 31, uma moça de 16 é uma menina para mim – que foi estuprada e morta no Recife por dois sujeitos porque disse “não”, afinal, ela deveria estar louca de vontade de transar com os dois e ao mesmo tempo! Ontem, uma moça de 20 anos também morreu no Rio, porque ousou dizer que não queria voltar com o namorado. Meninas, moças e mulheres morrem todos os dias, porque ousam dizer “não”. Mas veja que quem diz “não” está dizendo “sim”. Não é assim que funciona? Morreu porque não abriu as pernas na hora certa, estendeu "o jogo de sedução” por tempo demais.
[Estou colocando este texto de 24/02/2007 de novo em evidência, porque foi citado na Neo Tokyo #25. Assim fica mais fácil para quem quiser ler.]