sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Algumas reflexões sobre a bissexualidade da (nova) Mulher Maravilha


Um amigo perguntou se eu havia visto esta notícia.  Sim, eu vi.  Estava me questionando se escrevia, ou não.  Primeiro, não me empolga muito essa reinvenção frequente das personagens dos comics. Aliás, é possível que tenhamos várias revistas da mesma personagem ao mesmo tempo e, às vezes, até com intérpretes diferentes.  Pois bem, a noticia bombástica, comemorada por uns, deplorada por outros, é que a Mulher Maravilha seria bissexual.  Vejam bem, não lésbica, mas bissexual.

Quem fez o anúncio?  O próprio responsável pela reestruturação da revista para a comemoração dos 75 anos da personagem, Greg Rucka.  Comunicação oficial e, portanto, cânon, pelo menos, nesta encarnação da personagem.  Resumindo algumas falas de Rucka, o fato de Diana e outras amazonas terem se relacionado com mulheres parece óbvio, porque Themyscira é uma sociedade só de mulheres.  Ele alerta, também, que o desejo de representatividade não pode sacrificar o que é o mais importante, uma boa história.  Para mim, sabe o que isso significa?  Não esperem muita coisa mesmo.

Bissexualidade nas histórias da Mulher Maravilha
não é novidade, a novidade é virar cânon.
Eu fico com o pé atrás para certas medidas (supostamente) progressistas, porque dizer que Themyscira é um paraíso e logo, um lugar diversidade, é muito complicado.  Afinal, em uma sociedade pequena e fechada em si mesma, as regras podem, e muitas vezes são, muito rígidas e reforça-las é bem mais fácil do que em sociedades mais complexas e com uma população muito grandes.  De resto, a não diversidade da ilha já se mostra pelo fato de nela só existirem mulheres e, durante muito tempo, havia uma homogeneidade étnica, também.  Todas eram brancas e dentro dos padrões de beleza vigentes em cada época desses 75 anos.

De resto, entendo a questão da visibilidade dos bissexuais e sou solidária.  Muita gente não acredita que seja possível ser bi. Assim, mulheres bi são heterossexuais confusas; já homens bi são gays que não se decidiram ainda.   Há quem veja a bissexualidade como uma ameaça mesmo em meios progressistas, lésbicas e gays que não vêem com bons olhos essa orientação sexual.  Assim, é importante mostrar que existem outras possibilidades.  Inclusive a assexualidade.  


Lynda Carter, uma das mais famosas encarnações
Mulher Maravilha, desenhada.
Aliás, se pensarmos em uma sociedade de um sexo só, caso de Themyscira, o correto seria pensar em lesbiandade (compulsória) ou assexualidade.  Só que ser lésbica é fechar a porta para o acesso dos homens ao corpo das mulheres, algo inaceitável em um mundo machista.  Lésbicas (de verdade) são uma ameaça à ordem patriarcal e heteronormativa.  Já ser assexual, para muita gente, é algo “contra a natureza”.  Resumindo, essa história de bissexualidade da Mulher Maravilha ou das amazonas me cheira a outra coisa...

Bissexualidade feminina na mídia – e não espero nada mais que sugestões lesbianas leves – tende a ser algo oferecido para o deleite do fetiche masculino.  O homem assiste duas mulheres muito dentro dos padrões de beleza hegemônicos flertando, ou mesmo transando, e se imagina como o terceiro elemento ali.  Seja como voyeur, seja como parceiro.  Há quem nem veja o relacionamento entre duas mulheres como "sexo de verdade", afinal, só é sexo quando há um falo envolvido.  Enfim, eu realmente não confio muito nesse papo de bissexualidade feminina como algo progressista na TV, comics, cinema etc. quando é um homem fala sobre isso.  

E, ano que vem, teremos o filme.
Alguém já viu homem hetero sugerindo que um grande super-herói ou personagem masculina vista como super viril seja colocada como bissexual?  Eu nunca vi.  Sabe por qual motivo?  Porque, como coloquei lá em cima, homem bi é gay que não tomou posição.  E, bem, ser gay é – na cabeça de muita gente – abraçar um lado feminino.  Nada mais degradante do que um homem sair do seu lugar de destaque para se tornar algo inferior.  Para o homofóbico, um homem gay é um ser perigoso e abjeto, alguém que atenta contra a identidade de todos os homens.

Escrevi demais, enfim, mas é como eu tentei pontuar.  Tornar a Mulher Maravilha bissexual é importante para a diversidade e representatividade dentro dos comics.  Sim, sem dúvida, mas é, ao mesmo tempo, uma jogada de marketing e não representa, pelo fato dela ser mulher “bonita”, que deve se envolver com outras mulheres “bonitas”, nada de muito subversivo.  De novo, o Paraíso da bissexualidade feminina é um paraíso aos olhos de quem?  Enfim, vamos ver qual será o resultado.  A depender do que ler por aí, talvez, acabe dando uma olhada no quadrinho.

Uma das encarnações
mais famosas da Mulher Maravilha.
P.S.: Um moço deixou um comentário me acusando de falar "várias bobagens", porque a Mulher Maravilha não poderia ser lésbica (*claro, lésbica, jamais!*), porque ninguém vira gay de repente e ela teve vários parceiros importantes ao longo da sua história.  Mas não é reboot?  E não é o que os americanos mais fazem, mudar as origens, a história, a personalidade e tudo mais das personagens ao sabor dos interesses do momento?  Ora, ora, o Sulu da nova série de filmes de Jornada não "virou" gay, quando canonicamente ele era um galinha como o Kirk?  O George Perez quando redesenhou as origens da MM (*um reboot, portanto*), não eliminou o motivo principal da sua saída da Ilha Paraíso que era ir atrás de um homem?  Enfim, mas como pontuei no meu texto, bissexualidade feminina na cultura pop não raro é isca para macho.  Até que se prove o contrário, não vejo nada a celebrar nessa história de Mulher Maravilha Bissexual.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Mangá-ka Yoshi Masako comemora 35 anos de carreira


O Comic Natalie anunciou que para comemorar os 35 anos de carreira de Yoshi Masako, foi lançado no Japão um volume com uma coletânea de seus trabalhos intitulada Mou Ichidou Setsuna Sugiru Yoshi Masako Karadashi Best (もう一度あいたい―せつなすぎる よしまさこ蔵出しベスト).  Neste volume há, também, entrevistas e outros materiais que podem agradar aos fãs.  


Yoshi estreou em 1979 com dois trabalho Utena no Kekkon (うてなの結婚) e Boo Boo. A autora começou no shoujo mangá, mas faz algum tempo que publica principalmente josei.

Quais animes da Era Showa os japoneses gostariam que fossem refeitos?



Reboot é uma palavra que volta e meia aparece em manchetes de noticiários.  Jornada nas Estrelas (Star Trek), Os Caça Fantasmas são reboots famosos do momento.  Reboot, bom avisar, não é remake, pode contrariar o canon estabelecido para uma série ou mesmo a obra original.  Nesse caso, acredito que o termo se aplique, afinal, as obras já nasceram neste formato.  A meu ver, o melhor reboot de animação (*baseada em mangá*) que os japoneses já fizeram foi Patrulha Estelar (*Yamato*).  Ficou muito, muito bom e superior ao anime original em seu roteiro e composição de personagens.

A pesquisa do site Anime Anime se aplica a animes que derivados de mangá (*salvo Gunbuster, se não me engano*).  Caberia então a palavra reboot?  Sim e não, afinal, quando um anime faz muito sucesso - e isso poderia se aplicar a uma adaptação de livro - uma revisita, não raro, vai olhar para o original e para as versões para cinema e/ou TV.  Isso se aplica aos rebbots e aos remakes indistintamente, eu diria. Caso clássico?  Orgulho & Preconceito de Jane Austen.  Quantas vezes vocês já viram Mr. Darcy com a camisa molhada ou se largando em um lago?  Pois é, não está no livro... A lista que o site produziu foi a seguinte:

1. Galaxy Express 999
2. Macross
3. Akira
4. Dragon Ball
5. Sherlock Hound
6. Captain Tsubasa
7. Aoki Ryuusei SPT Layzner
8. Gunbuster
9. Space Adventure Cobra
9. Armored Trooper Votoms

Gunbuster, clássico da ficção científica
apesar da roupa de ginástica fanservice.
Para quem não sabe, a Era Showa corresponde ao período do governo do Imperador Hiroito, o único líder do Eixo que foi preservado ao final da 2ª Guerra, e que se estende de 1926 até 1989.  O recorte temporal foi grande, mas as escolhas praticamente se limitaram ao final dos anos 1970 e anos 1980.  Senti falta de muita coisa.  Ashita no Joe, por exemplo.  Ace wo Nerae é outro, porque eu sei que fez sucesso para além dos limites do público feminino original do mangá.  O primeiro Gundam, cadê ele?   E Touch????   Nenhum mahou shoujo?  Enfim, mas amostragem é tudo, vamos lá!  

A pesquisa foi feita entre 13 e 18 de setembro com 475 pessoas, 70% eram homens.  Bingo!   A desproporção entre os gêneros deve ter tido um impacto grande nesse resultado aí de cima.  Outro ponto, 30% eram adolescentes e pessoas na casa dos 20 anos.  Esse pessoal não assistiu aos animes da Era Showa quando exibidos.  O site dá dados incompletos e diz que 20% do grupo tinha 40 anos ou mais. Isso dá 50% somente.  E os outros 50%?  Deveriam ter colocado um gráfico mais claro.

O espetacular Ace Wo Nerae.
Nenhum shoujo.  Vocês devem se perguntar o motivo para essa pesquisa aparecer aqui no Shoujo Café.  Normalmente, não publico pesquisas que não trazem um shoujo ou josei nos resultados.  Bem, motivo um nostalgia.  Eu vi uma parte considerável desses animes e alguns foram muito importantes quando eu estava na adolescência e na juventude.  Amo Gunbuster, por exemplo.  Acho uma ferramenta maravilhosa para ensinar Física para adolescentes.  É dramático, tem um roteiro poderoso boa parte do tempo e, sim, é uma homenagem ao meu mais que favorito Ace Wo Neare. 💞  Este é o motivo da publicação, mas está faltando muita gente e a lista poderia ser diferente com menos pessoas pós-era Showa e com mais mulheres, isto é certo.  

Se me perguntassem o que eu gostaria de ver refeito, diria que já passou da hora para que A Rosa de Versalhes tivesse uma nova animação que bebesse diretamente no mangá, mas não se esquecesse de coisas que funcionaram muito bem no anime.  Sim, quem me conhece sabe que tenho pesadas críticas ao anime do final dos anos 1970, a começar pela releitura machista que fizeram de protagonista, algo que fez com que, no Japão, o anime fosse um fiasco na sua primeira exibição.  Agora, ele tem uma trilha sonora linda, é poético em muitos momentos, tem um character design maravilhoso e algumas cenas que foram colocadas na versão para TV superaram o original.  A do quadro, por exemplo, é uma delas.

Minky Momo, cadê?!  Nenhum Mahou Shoujo?
P.S.: Tropecei na pesquisa no Sankaku Complex.  Só aviso que é NSFW e para maiores de 18 anos.  É pesada a coisa lá, mas, volta e meia, eles publicam algo legal.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Ranking da Oricon


Este é o ranking da Oricon da semana passada.  Não tinha postado ainda e não quero postar junto com o desta semana.  Enfim, somente cinco mangás femininos, o melhor colocado, Tokyou Tarareba Musume, é a série josei mais importante de Akiko Higashimura, mas esta autora também aparece com um seinen, Yukibana no Tora, em 15º lugar.  De resto, há outro josei, Hatsukoi no Sekai.  Quando o novo ranking estiver na página da Oricon, eu posto aqui.

4. Tokyou Tarareba Musume   #6
9. Gozen 0-ji, Kiss Shi ni Kite yo   #4
21. Love Phantom   #4
24. Touken Ranbu Anthology ~Shutsujin Junbichuu!~
29. Hatsukoi no Sekai   #1

Comentando Cegonhas - A História que não te contaram (Storks, 2016)


Ontem fiquei fora da net durante a tarde e a noite, porque levei Júlia para assistir Cegonhas (Storks, 2016).  Tinha prometido, o trailer era bonitinho e a crítica do principal jornal de Brasília foi favorável.  Enfim, das animações que vi este ano, Cegonhas é páreo duro para Angry Birds (*que não comentei no blog*) em termos de roteiro ruim, mas leva algumas poucas vantagens, eu diria, que me obrigam a comentar rapidamente o filme aqui.

O filme tem como centro a empresa CornerStore.com, que pertence às cegonhas (*não me peçam explicações*) e entrega produtos no mundo inteiro.  Com sua experiência entregando bebês, não existe melhores entregadoras de produtos e, dentre as cegonhas, o melhor de todos os profissionais é Jr.  Mas por qual motivo deixaram suas origens?  Um dia, uma das cegonhas, Jasper, enlouqueceu ao ser contaminado pela fofura de Tulipa.  Perdeu-se a referência de entrega e a criança teve que ser criada pelas cegonhas.  Depois do incidente, as cegonhas pararam de entregar bebês, mas não me perguntem como, em 18 anos, bebês continuaram a aparecer, porque o filme não explica.


O filme é fraco, mas os bebês são fofinhos.
Jr. é chamado por seu chefe – uma cegonha capitalista selvagem – que lhe oferece seu cargo gerencial, já que seria promovido, e lhe dá uma missão: Tulipa completou 18 anos, ela é um problema e deve ser demitida.  Enfim, Jr. fica deslumbrado com a possibilidade da chefia, mas não tem coragem de demitir a menina.  Ele simplesmente a coloca na seção de cartas.  Como ninguém manda cartas, ela vai ficar lá esquecida e sem gerar problemas.  Só que um menininho solitário humano, Nando (*Nat, no original*), quer um irmãozinho que seja companhia para ele, já que seus pais não lhes dão atenção.  

O menino encontra um velho folheto de propaganda das cegonhas, manda uma carta e esta cai nas mãos de Tulipa.  A moça vai cumprir sua missão e, por acidente, coloca a fábrica de bebês para funcionar.  Um bebê é criado e Jr. agora tem que se livrar da criança sem que seu chefe descubra, isso vire um escândalo e sua promoção vá para o saco.  Junto com Tulipa, ele parte para cumprir a missão tentando se manter imune à fofurice da bebezinha, no caminho encontram lobos enlouquecidos, Jasper e tem no seu encalço um pombo que trabalha na CornerStore e quer o cargo de Jr.


Os lobos caem de amores pela bebezinha.
Resumi o filme.  Ele é cheio de furos de roteiro, muitos mesmo, e pontuado com cenas engraçadinhas para tentar maquiar isso. Como em muitos filmes de animação contemporâneos,  as referencias a outras produções aparecem o tempo inteiro e isso, claro, nada tem a ver com garantir o bom andamento do filme, é recurso cômico mesmo. Fora isso, a animação é espetacular, de grande qualidade mesmo, fora os bebezinhos, todos fofinhos e multirraciais,  prontos para serem colecionados, por assim dizer. Agora, será que atingiu?  Estava em uma sala vazia, mas, quem estava lá,  riu em vários momentos. 

Uma das cenas que achei realmente engraçada foi a do duelo dos protagonistas, Tulipa e Jr., contra os pinguins aue receberam do chefe a incumbência de dar sumiço na bebezihha. A bebê tinha demorado muito a dormir, eles lutam em silêncio absoluto, apesar da dor, dos ferimentos, porque, bem, ninguém quer acordar a criança e recomeçar o ciclo... Agora, uma ou outra cena não justificam o filme e seu roteiro desmazelado.


Eu quero um irmãozinho!
Mas vamos a um ponto positivo: o filme discute ativamente a questão da representação da família moderna. Tulipa, Jr. E a bebê se veem como uma família. Por que não seriam?  Quando, já no final, milhares de bebezinhos são entregues (*vejam o filme para entender*), há mãe solteira, famílias multirraciais aos montes, famílias com dois pais e duas mães.  Assim, um filme meia boca passou batido da patrulha dos defensores da suposta família tracicional enquanto Procurando Dory foi queimado na fogueira por uma sequência inócua.  Pois é,  acontece... Nesse quesito, o filme pontua alto, mas é só. 

O filme cumpre a Bechedel Rule? Olha, a co-protagonista é uma mulher, há a mãe de Nando, a Senhora Jardim (Gardner), mas é só.  E elas não conversam entee si. Há a bebezinha, mas ela não fala. Na CornerStore, assim como em todo o filme, há mulheres e fêmeas figurantes, algumas têm uma fala, mas será que isso é representatividade?  Entre as cegonhas, aparentemente, todos os entregadores são machos. Uma lástima nesse quesito.


Fofinhos!
Assim, se você não tem uma criança pequena como eu, não perca tempo no cinema com Cegonhas. Espere sair em vídeo,  na TV por assinatura, Netflix, enfim, não há pressa.  De resto, fico feliz de não ter pago a entrada, usei, pela primeria vez, meus pontos do Premmia, programa da Petrobrás. Duas entradas de graça e u  bolso menos pesado.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Comentando o filme Kuragehime (2014)


Quinta-feira passada, finalmente, assisti ao filme baseado em Kuragehime (海月姫), algo como "Princesa Água-Viva", série divertidíssima de Akiko Higashimura.  O filme, lançado nos cinemas japoneses em dezembro de 2014, tenta resumir e recontar a história que conhecemos do mangá, história essa que já havia sido recontada na série animada de 2010.  No geral, foi bem divertido assistir ao filme e só ajudou a acirrar o frenesi em que me encontro no momento.  Estou finalmente lendo o mangá.  Lendo com gosto e avançando rápido nos seus 16 volumes.

Kuragehime é a história de uma moça otaku fanática por águas-vivas, Tsukimi Kurashita (Rena Nounen), que tem sua vida transformada ao conhecer um rapaz crossdresser, o jovem Kuranosuke (Masaki Suda).  Moradora de uma comunidade onde homens são proibidos e cada uma das residentes tem um hobby em especial, ela vê seu mundo ameaçado por um programa de reestruturação urbana que prevê que o seu refúgio, o Amamizukan, será demolido.  Já Kuranosuke bagunça a vida da moça ao apresentá-la a seu irmão mais velho, Shuu (Hiroki Hasegawa), um jovem tímido e com promissora carreira política.  Tusukimi se apaixona por ele, o rapaz por ela, contudo a moça que ele vê não é real, mas uma construção de Kuranosuke.  

As AMARS.
Tsukimi se acha indigna de ser amada, mas é obrigada a tomar uma série de atitudes corajosas e inéditas para tentar salvar o seu lar.  Tsukimi começa a mudar e todas as pessoas ao redor passam por algum tipo de modificação.  O motor da transformação?  Kuranosuke, que se vê repentinamente fascinado por alguém que ele mesmo considerava uma aberração. Ele ama Tsukimi?  Mas ela ama Shuu, ou será... Como se resolverá esse triângulo?  Eles vão conseguir salvar o Amamizukan? 

O filme de Kuragehime começa situando a paixão da protagonista, Tsukimi Kurashita, por águas-vivas e conhecemos logo de saída as moradoras do Amamizukan, um prédio antigo em uma área valorizada de Tokyo.  Banba (Chizuru Ikewaki), fanática por trens; Mayaya (Rina Ohta), cuja vida gira em torno do clássico Romance dos Três Reinos; Chieko (Azusa Babazono), especialista em quimonos e apaixonada por bonecas japonesas antigas; e Jiji (Tomoe Shinohara), que passa o tempo sonhando com homens (bem) mais velhos.  

A cena do aquário.
Juntas elas formam a irmandade das AMARS, as monjas do Amamizukan, um grupo de mulheres, já perto ou passadas dos 30 anos, todas otaku e NEET, isto é, "Not in Education, Employment, or Training" (*algo como: fora da escola, sem emprego ou em formação profissional*).  Tsukimi é bem mais jovem que elas e veio para Tokyo sonhando em se tornar ilustradora.  Além delas, há ainda uma mangá-ka BL, Meijiro-sensei, que nunca é vista, mas funciona como uma espécie de mentora do grupo.  Para ela, homens não são bem-vindos no Amamizukan e quem quebrar esta regra merece a morte.  Por conta disso, Kuranosuke precisa fingir que é uma mulher e, bem, ele é muito bem-sucedido nesse aspecto.

Um dos pontos altos do filme e, para mim, a cena foi muito melhor que a do mangá, é quando Kuranosuke é aparentemente desmascarado, pois seu pai se refere a ele como “filho” diante de Jiji e Chieko.  Sim, porque Tsukimi é cúmplice, ela sabe que se trata de um homem desde a manhã do encontro dos dois, quando Kuranosuke a ajuda a salvar Clara, que se torna a água-viva de estimação da moça.  Mas, enfim, como Kuranosuke engana as AMARS?  Ele as convence de que vive um dilema saído direto de A Rosa de Versalhes!  Ele é uma mulher, assim se sente, mas é obrigado a se comportar como um homem, porque o pai, um político respeitado, não queria uma menina, mas mais um herdeiro político.  

Decepcionando-se com Shuu.
A cena toda é dramática e histérica e se sustenta em sutilezas como o fato do rapaz escorregar e usar “ore”, o eu masculino típico, ao invés de “watashi”, o eu neutro ou feminino.  Kuranosuke é reconhecido como Kurako – nome que, no filme, ele usa desde as primeiras cenas – e se tornar uma AMAR honorária, mesmo contra sua vontade. O impacto do moço sobre as AMARS é enorme.  No início do filme é explicado que elas não conseguem falar com fashionistas, ou homens, elas viram pedra, literalmente.  Kuranosuke consegue se impor e elas vão mudando.  Como o filme tem quase duas horas, o que é muito pouco, muita coisa do mangá é enxugada e modificada.  Os dramas são reduzidos a dois: o destino do Amamizukan e a transformação de Tsukimi.  

O prédio, que pertence à mãe de Chieko, será demolido?  Bem, Kuranosuke jura que não, mas uma agressiva funcionária da construtora, Shōko Inari (Nana Katase), quer convencer políticos e a dona do prédio.  Inari-san tenta seduzir e chantagear Shuu, deixando o rapaz, que é absolutamente inexperiente em assuntos amorosos ou sexuais, em péssima situação.  Ele pode ajudar a obter apoio político para o projeto, algo, aliás, desnecessário, já que seu pai é a favor da reestruturação do centro da cidade.  Como testemunha distante do suposto romance entre Inari e Shuu, Tsukimi sofre.

Tsukimi em um de seus momentos de inspiração.
A moça, aliás, tenta a todo custo se refugiar em si mesma, seus sonhos e devaneios, são uma forma de esquecer a realidade.  Kuranosuke a puxa para fora e a ajuda a descobrir o seu talento para a moda.  Daí, lindos vestidos inspirados em aguás-vivas vão nascendo e tem como modelo o rapaz.  Ela os cria para ele, a sua princesa ideal.  Sim, há discussões sobre gênero, orientação sexual e identidade de gênero em Kuragehime, mas elas são mais presentes no mangá.  Kuranosuke efetivamente gostaria de ser uma mulher, por ser homem, seu pai o separou de sua mãe e eles não se veem há dez anos.  Ele tem genuíno prazer em vestir-se com roupas femininas e adotar maneirismos de gênero, mas é essencialmente heterossexual e se apaixona por Tsukimi.

Ao tentar aproximar a moça de seu irmão – e, no filme, duas várias ótimas sequências são enxugadas – ele acaba se enredando.  Cria uma Tsukimi embelezada, na moda, em contraposição à moça tímida e sem graça que ela acredita ser.  Shuu fica deslumbrado, ele mesmo termina mudando empurrado pelo amor por Tsukimi e à perseguição movida por Inari, mas Kuranosuke passa a ser corroído pelo ciúme.  Como é muito comum nas boas histórias japonesas, os irmãos não brigam por ela, não se ferem nem se enfrentam, mas, cada um à sua maneira, vão construindo a relação com a moça.  

Kuranosuke, a moça mais bonita do filme.
Kuranosuke continua tentando negar o que sente e Shuu, ainda que de forma tímida, tenta se aproximar a partir do momento que descobre que a moça otaku estranha é Tsukimi.  Aqui, cabe uma crítica ao filme, pois ao cortar uma cena na qual Shuu vai até o Amamizukan entregar os pertences de Tsukimi e não reconhece na moça a beldade que ele consolou na visita ao aquário (*a cena é diferente do mangá, mas, ainda assim, bonita e engraçada*), perde sentido o agradecimento que a protagonista faz quando eles se reencontram na reunião com as partes interessadas no projeto de reestruturação do centro da cidade.  Ele não a reconhece, ela sofre.

Não sei como este texto está parecendo para você, leitor/a, mas a minha impressão é de estar produzindo um material muito desorganizado.  O filme não é um dramalhão, acreditem, é muito mais comédia do que qualquer coisa, talvez, o foco da minha análise é que esteja errado.  De qualquer forma, Kuragehime, o filme, captura o espírito do mangá (*e do anime*) e oferece uma leitura muito divertida da história.  O elenco trabalha muito bem, conseguiram mesmo entrar nas personagens.  

Preparando o desfile que pode salvar o lar das AMARS.
O Kuranosuke de Masaki Suda é, de fato, uma bela princesa e absolutamente fiel ao mangá, assim como a interpretação de Rena Nounen é muito fiel à Tsukimi original.  O mesmo se pode falar para todas as Amars.  Nana Katase oferece uma Inari-san muito mais exagerada em alguns momentos do que no mangá, mas sem se afastar do original.  Pena que, por conta do tempo restrito do filme, a relação dela com o Shuu tenha sido enxugada.  

Hiroki Hasegawa é um Shuu convincente, ainda que bem mais bonito que o original.  A necessidade de resolver a história faz com que ele passe por uma transformação acelerada, tornando-se assertivo e corajoso por causa do amor de Tsukimi e dos perrengues que passa como Inari-san.  E, se o assunto é beleza, Mokomichi Hayami é um verdadeiro colírio interpretando o motorista da família de políticos.  Amigo de infância de Shuu, ele tem fixação por carros luxuosos e acaba servindo de mestre de cerimônias no desfile dos vestidos de Tsukimi.  

Tsukimi sendo preparada para um de seus encontros com Shuu.
O filme cumpre a Bechdel Rule, nem é preciso discutir esse ponto.  Agora, Kuragehime é um material feminista?  Não, mas traz algumas discussões feministas sobre empoderamento, identidade e papéis de gênero que são interessantes.  Tsukimi é talentosa, capaz de criar beleza e encantamento e uma pessoa especial e digna de ser amada como ela é, as mudanças pelas quais passa são válidas e importantes, um amadurecimento, mas não implicam em obrigá-la a se tornar outra pessoa.  Inclusive, nesse aspecto, a imposição de um padrão de moda/aparência às AMARS e, em especial, a protagonista, não se faz presente.  Já com Kuranosuke é possível discutir as imposições de gênero e como o binarismo pode ser rompido e as pessoas podem ser mais complexas do que imaginamos.  

É isso.  Trata-se de um  produto derivado e que pode ser apreciado de forma isolada, mas não deve ser encarado como um filme de primeira linha.  É feito muito mais para quem curte a série original e pensado para esse público e como propaganda da obra de   Akiko Higashimura.  Sua força e fraqueza residem aí, no fato de ser uma adaptação.  Dito isso, recomendo muito o filme e mais ainda o anime e o mangá.  Estou lendo o mangá de forma acelerada, é uma obra bem viciante mesmo, então, é possível que tenhamos uma resenha nos próximos dias. 

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Betsuhana comemora os 20 anos de carreira de Shigeru Takao


Shigeru Takao tem um traço lindo e é uma das mangá-kas mais importantes da revista Betsuhana.  A última edição da publicação está em festa e o Comic Natalie publicou detalhes sobre as comemorações.  O brinde da revista é uma coleção de postais com as obras da autora: Dear Mine (ディア マイン), Golden Days (ゴールデン・デイズ), Issho ni Neyou yo  (いっしょにねようよ), Ningyoushibai  (人形芝居), Slop Mansion ni Okaeri  (スロップマンションにお帰り), Teruteru x Shounen  (てるてる×少年), Wasure Yuki no Furu Koro  (忘れ雪の降る頃 高尾滋作品集) e Madame Petit (マダム・プティ), sua obra atual.  Falando em Madame Petit, já há scanlations da série.  Eu estava ansiosa por isso.

Primeiro volume de Akazukin Chacha é brinde da revista Cookie


O Comic Natalie noticiou que a última edição da revista Cookie trouxe o primeiro volume de Akazukin Chacha (赤ずきんチャチャ), de Ayahana Min, e antigo sucesso da Ribon, como brinde.  Uma continuação da série, Akazukin Chacha N  (赤ずきんチャチャN), está em publicação na Cookie, e o volume 3 acabou de ser lançado.  Akazukin ChaCha teve série animada entre 1994-95 com 74 episódios, mais os especiais, ou seja, muita gente lembra da série.

O CN informa que tudo é parte de uma coleção e quem comprar o volume da nova série e juntar o obi (*o cinto de papel que envolve o volume*) e o ticket que está na última Cookie pode concorrer a 50 brindes da série.  É preciso enviar até o dia 25 de novembro.  Se entendi bem, as mangá-kas Sugihara Ryouko, Sakurai Riya, Tanabe Mayumi, Toriumi Risako e Morina Riri homenagearam a série com ilustrações.  O CN fala ainda de receitas... Como não conheço a série, não sei se há receitas relacionadas a nova versão de Akazukin Chacha.  


Já na edição que sai em 26 de novembro, que corresponde a janeiro de 2017, teremos um brinde de NaNa (ナナ).  Como Ai Yazawa disse em sua última entrevista que deseja voltar a fazer a série, sempre fica uma esperança de retorno.  Agora, o fato é que volta e meia algum brinde de NaNa aparece na Cookie e um novo mimo nada quer dizer de concreto.

domingo, 25 de setembro de 2016

Orange terá um filme animado em novembro


Enfim, às vezes, o fôlego de Orange (オレンジ) me surpreende.  Hoje mesmo coloquei no blog a notícia sobre o gaiden do Suwa e, claro, este anúncio do  filme animado para o cinema, que acabou de sair no Comic Natalie, tem a ver com ele, afinal, pelo que sabemos até agora, a história será contada pelo ponto de vista do Suwa.  A imagem acima já é o primeiro cartaz do filme.

O filme, que estréia em 18 de novembro, trará a história que já conhecemos – as cartas do futuro, o lamento por Kakeru, a tentativa de salvá-lo etc. – pelos olhos do Suwa.  Inclusive, serão aproveitadas cenas da série de TV.  Agora, o importante é o foco no Suwa adulto, que parece ser i tema do gaiden que será publicado a partir do mês que vem.  

Parece que o elenco do anime para a TV e a equipe técnica serão os mesmos.  Estou em falta, porque ainda não assisti ao anime.  Vi somente dois capítulos, mas pretendo tentar assistir o resto.  A série animada, aliás, terminou hoje.

Novo gaiden de Orange anunciado


O ANN noticiou que um gaiden em duas partes de Orange (オレンジ), o bem sucedido mangá de Ichigo Takano, sobre Suwa e sua vida com Naho depois do trágico acontecimento que marcou as vidas do grupo de amigos da série.  Como eu escrevi em uma das resenhas do mangá, não lembro qual, Orange tem muito material para várias outras histórias.  


Além do gaiden, cuja primeira parte sai em 25 de outubro, não tinha comentado que o mangá que é lido por Hagita, uma das personagens de Orange, está sendo publicado na Monthly Action.  O nome é Sorigerisu e a arte é do mangá-ka Matsupon.  Falando em Orange, o último episódio do anime, exibido hoje, foi um especial de 1 hora de duração.  Algo bem raro. 

Natsume Yuujinchou retorna em 4 de outubro às TVs Japonesas


A quinta temporada de Natsume Yuujinchou (夏目友人帳), seguramente a série shoujo derivada de um mangá mais bem sucedida quando o assunto é animação em mais de uma década, estréia em 4 de outubro.  Volta e meia aparecem notícias e, normalmente, termino não comentando nada (*shame on me*). Enfim, há duas notinhas hoje.


A primeira está no Comic Natalie e é sobre a última edição da revista LaLa.  Ela traz informações sobre o anime e um booklet de brinde.  A capa da revista, aliás, está linda.  A outra notinha é sobre uma grande exposição que vai mapear o percurso da série do mangá até a animação e que irá abrir em novembro, entre os dias 11 e 23, na Seibu Gallery em Ikeburo.  São mais de 300 ilustrações.  A página da exposição é esta aqui.

sábado, 24 de setembro de 2016

Maurício de Sousa apóia a campanha #HeForShe


O link do Estadão colocou no título que a Mônica, a personagem, apóia a campanha #HeForShe da ONU Mulheres, um um esforço global para envolver homens e meninos na luta dos direitos iguais das mulheres e meninas. Afinal, um mundo com mais igualdade de gêneros é um mundo melhor para todos.  No entanto, a coisa é melhor ainda, porque é Maurício de Sousa, o criador do universo da turma da Mônica, que se posiciona a favor da igualdade de gênero.  No vídeo que vocês podem ver aí embaixo, ele define muito bem, trata-se de uma questão de direitos humanos.


A campanha #HeforShe tem como sua principal embaixadora a atriz Emma Watson, famosa por interpretar a personagem Hermione de Harry Potter.  A campanha foi lançada em setembro de 2014 e o objetivo no Brasil seria conseguir um total de 100 mil assinaturas de homens.  Acredito que o alvo ainda não tenha sido atingido.  Daí, ter um Maurício de Sousa participando é muito importante.  Um olhadinha nos comentários - todos de homens - à matéria serve para reforçar a necessidade.  O site em português do #HeForShe é este aqui.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Algumas palavras sobre a tal reforma do Ensino Médio


Sei que é bem off-topic, mas eu sou professora, eu leciono para o Ensino Médio, me preocupo com educação e tenho uma filhinha pequena aqui para zelar.  Preciso escrever, então.  Ontem o novo governo, aquele cuja plataforma não foi votada, mas que está sendo executada, apresentou a sua proposta de mudanças no Ensino Médio.  Proposta é bondade, foi uma medida provisória, um cumpra-se.  O texto na íntegra pode ser lido aqui.

Me senti obrigada a escrever por ter visto gente postando o vídeo de campanha onde a Dilma fala em tirar Sociologia e Filosofia do Ensino Médio, quando ela se referiu à sobrecarga curricular deste segmento do ensino básico. Ela falou, tomou pedrada, ficou na dela e estava rolando a discussão com a sociedade da base curricular comum. Discussão, vejam bem. Temer assumiu e desceu uma canetada. Simples assim. Percebem a diferença?  a forma de fazer as coisas.  Pior ainda, quando vemos este "perguntas e respostas" que saiu no Estadão, a coisa não está sequer definida, está alinhavada, mas é para cumprir.  Professores e, principalmente, alunos e alunas que se virem.  E quais matérias rodaram?  Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física!  Esta última foi uma surpresa, para mim, e nem esperaram a lembrança das Olimpíadas esfriar em nossa cabeça.


Eu fiz o ensino médio entre 1990 e 1992. Na época, vigoravam as diretrizes do tempo do regime militar que obrigavam as escolas a inserirem pelo menos uma disciplina de formação profissional.   A maioria das escolas colocava ou uma matéria genérica  (Técnicas Comerciais, Economia Doméstica, Técnicas Industriais, Laboratório etc.) e iam tocando, mas o comum mesmo é que nas escolas públicas e particulares para as classes trabalhadoras houvesse ensino técnico no 2º  Grau, antigo nome do Ensino Médio.  Você com 14, 15, 16 anos sendo convocado a decidir seu futuro, porque, para muitos, era ali a decisão.  Vai fazer o que?  Enfermagem?  Normal?  Eletrônica?  Processamento de Dados?  Administração?  Técnico de Laboratório?  Química?  Educação Física?  Científico era coisa de elite ou de gente que não se preocupava com o futuro dos filhos e filhas... E havia as pressões de gênero, claro... Menina fazendo Eletrônica?  Absurdo!  Garoto na Enfermagem?  É bicha, com certeza!

Olha, eu não tive Sociologia, nem Filosofia, no Ensino Médio. Artes, só na quinta e sexta-série (*6º e 7º ano*) e olhe lá.  Queria ter tido, talvez tivesse chegado na universidade em melhores condições, assim como meus colegas que vieram de colégios particulares de elite, ou do Pedro II. No final do meu primeiro ano, que na maioria das escolas particulares "para pobre"  era chamado de "formação geral", meu maior medo era não ver nunca mais Química, Literatura e outras disciplinas e ser colocada em um curso técnico (Formação de Professores, era meu destino desde a infância) que me formataria para o mercado de trabalho. Meu pai, e eu não o culpo, ele era pragmático, sabia das necessidades que passava para nos dar uma "boa educação", insistia nisso. "Professora sempre vai ter trabalho. Depois, você estuda o que quiser." Universidade? Que é isso mesmo? Ninguém na minha família próxima tinha feito mesmo... Em quem me mirar?


Alguns acidentes de percurso acabaram me fazendo ir parar no Científico. Meus pais, meu pai em especial, muito preocupados com o onde eu iria trabalhar depois. Enfim, as coisas acabaram saindo melhor do que eu poderia ter esperado. Se eu não tivesse ido parar no meu segundo ano em uma escola mais elitista, eu teria ficado para trás.  Teria, sim.  Ou teria penado muito, como meu irmão que fez curso técnico de Desenho Mecânico e nunca trabalhou com isso.  Mas foi sorte, acidente, ou intervenção divina. Escolham aí. Para a maioria dos meninos e meninas deste país, queria algo melhor e não pior do que eu tive.

Sei que há muito adolescente ingênuo comemorando, mas matéria optativa no Ensino Médio seria a criatura poder escolher um aprofundamento em cálculo, em algum tópico de literatura, cinema, ou introdução à arqueologia. Optativa não pode ser matéria fundamental para a formação geral de uma pessoa. A função da escola é abrir horizontes, formar um cidadão culto que possa se virar bem na maioria dos assuntos e círculos, não bitolá-lo.   


Com essa história de áreas, vai ter muito pai e mãe escolhendo por seus filhos, como eu vi acontecer quando lecionei no curso Normal.  Em pleno ano 2000, meninas obrigadas a fazer formação de professores, porque, na Baixada Fluminense, muita gente, mesmo anos depois, continuava pensando como meu pai, ou que eram obrigadas a concretizar sonhos frustrados das mães.  Ela não pode fazer Normal, a filha vai fazer.  Simples assim.  Humanas?  Que isso, meu filho!  Isso não dá dinheiro! Vai fazer exatas!  E há ainda outros abacaxis, como a semestralidade e o ensino integral, mas deixo isso para outro dia...

A educação no Brasil precisa ser reformada?  Sim.  Há sérios problemas?  Sim.  Os resultados dos testes internacionais apontam para isso, fora os outros indícios.  Só que o buraco é mais embaixo.  Conto um causo.  Estava em uma reunião geral e foi comentado que os alunos e alunas que chegam para entrar no terceiro ano sempre tiram nota baixa em matemática, ou seja, não poderiam entrar na série.  Então, o coordenador geral de matemática pediu a palavra e disse "não pensem que o caso é mandar voltar para o primeiro o segundo ano, o problema deles é de matemática básica".  


Enfim, sem entrar em questões político ideológicas, no tal do "notório saber", nem o fato de eu saber que vão dar dinheiro público para escolas privadas, porque este é o plano, me sinto muito triste com tudo isso.  Triste por mim, apesar de, pelo menos na proposta que está dada, minha disciplina (História) estar preservada, mas pelo futuro.  

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Comentando o livro "Novela: A Obra Aberta e seus Problemas"



Ontem, enquanto esperava horas intermináveis no pronto-socorro de um hospital, terminei de ler o livro Novela: A Obra Aberta e seus Problemas, de Fábio Costa.  Gosto de novelas, ultimamente, mais de ler sobre novelas do que de assisti-las e quando vi o livro sendo comentado pelo crítico Nilson Xavier no Twitter, decidi que precisava ler o material. Foi difícil, a distribuição da Giostri, a editora, não parece ser das melhores, mas, depois de um bom tempo encomendado na Livraria Cultura, ele chegou.

A obra como um todo é rica em informações sobre as telenovelas brasileiras desde que se tornaram diárias, em 1963, com 2-5499 Ocupado.  O autor, Fábio Costa, jornalista e historiador, fez um extenso trabalho de pesquisa, isso não há dúvida.  Sua bibliografia reúne muitos livros, alguns famosos (Nossa Senhora das Oito que é sobre Janete Clair, por exemplo), outros acadêmicos (A Negação do Brasil, é um deles), mas acredito que o grosso das informações vieram dos periódicos mesmo, que devem ter sido explorados à exaustão.  

Os Gigantes, um dos casos mais radicais de intervenção em novelas.
Uso esta palavra – exaustão – não é à toa, ela se enquadra perfeitamente ao trabalho feito por Costa, pois ao dividir seus capítulos por temas, ele tenta exauri-los e oferecer o máximo de informações sobre o máximo de obras.  Na maioria das vezes, o resultado é satisfatório, em outros casos, nem tanto.  Além do prefácio de Lauro César Muniz, cada capítulo é aberto com a fala de um novelista e traz como subtítulo o nome de uma novela famosa que se relaciona com o tema.  Exemplo, o capítulo 2, que é sobre a Censura durante a Ditadura Militar, tem como subtítulo “Acorrentados”, novela de Janete Clair produzida em 1969, na sua fase antes da rede Globo.

Cada um dos capítulos tem uma introdução rápida, que poderia ter sido mais estendida, porque eu sei que, ali, o autor poderia desenvolver melhor as suas próprias idéias, e os exemplos.  Nesse sentido, Obra Aberta se mostra um livro de curiosidades, um almanaque mesmo, que seria mais interessantes se tivesse algumas fotos.  O livro não tem ilustrações. Com oito capítulos, cada um aborda um aspecto do drama vivido na feitura de uma novela: desacertos entre autor e diretor; censura; afastamento de atores ou atrizes (*doença, gravidez, morte); problemas com elenco (*escalação para outras obras, desentendimentos com autor/diretor, demissão etc.*); desentendimentos gerados por estrelismos de atores/atrizes ou do autor; intervenções por necessidades de audiência ou dramatúrgicas; a necessidade de esticar  ou encurtar uma novela; aquilo que não coube antes entrou aqui (*^_^*).

Whalter Negrão, o salvador de novelas.

Navegar pelo livro é muito interessante e, ainda que alguns capítulos possam parecer cansativos pelo excesso de exemplos, é uma leitura satisfatória para quem sem interessa pela história das telenovelas e, pode, também, servir de ponto de partida para quem esteja pensando em pesquisa-las academicamente.  Por exemplo, sobre censura, papel deste ou daquela novelista, motivos principais de intervenção etc.  Realmente foi uma surpresa ver o quanto Walther Negrão foi mobilizado ao longo de décadas para consertar novelas vistas como problemáticas.  Lendo o livro, perdi a conta.

Incrível, também, ver como era freqüente que atores e atrizes mudassem de emissora e largassem uma novela até o início dos anos 1980.  Imagino que multas contratuais altíssimas foram criadas para resolver um problema.  Pior ainda, se eram protagonistas.  Interessante, também, foi descobrir que na Tupi era comum que muitos autores fossem também os diretores de suas novelas e que pelo menos um deles, Geraldo Vietri, parece não ter se adaptado na Globo por não ser o diretor de suas novelas.  Seria muito bom, dadas as repetições de certos nomes e novelas, que houvesse um índice remissivo ao fim do volume, mas sei que é raro livros brasileiros com esse tipo de recurso tão útil.  Não é, portanto, uma crítica particular para Novela: Obra Aberta.  Agora, mais alguns comentários sobre o livro em si: 

Vera Fischer e Felipe Camargo, mãe e filho em Mandala.
Quando o autor cria um capítulo sobre Censura, não convém acreditar que ela vem somente do governo militar, ou da lei de censura que sobreviveu ainda durante parte do Governo Sarney e atingiu, por exemplo, a novela Mandala, da qual me lembro bem.  Ela se baseava no mito mais conhecido de Édipo e gerou-se forte reação ao romance entre mãe e filho.  A censura pode partir da audiência, dos grupos de discussão, das cartas enviadas.

Um dos casos mais emblemáticos disso, foi o destino de um dos primeiros casais interraciais das nossas telenovelas.  Na novela Passo dos Ventos (1968/69) de Janete Clair, havia um romance entre um negro e uma branca.  A novela se passava no Haiti do século XIX ou XVIII.  Era ainda o tempo das novelas distantes da nossa realidade.  Enfim, foram as cartas dos leitores que separaram o casal, cada um seguiu caminho com “outro amor”.  O caso já me era conhecido, porque é citado no livro Nossa Senhora das Oito e é a maior omissão da tese do Joel Zito Araújo, A Negação do Brasil, porque, bem, sendo um trabalho sobre “o negro” na telenovela e falando basicamente de Globo, ele esquece este caso emblemático.

Milton Gonçalves em Pecado Capital.
Aliás, o autor, Fábio Costa, deveria tentar um trabalho temático, porque em alguns momentos percebe-se que ele poderia fazer discussões interessantes, como quando ele problematiza – algo que não fez em nenhum outro lugar – os motivos da rejeição à personagem Dr. Percival, interpretado por Milton Gonçalves, que pediu para Janete Clair que lhe desse a possibilidade de interpretar alguém que fugisse dos estereótipos impostos aos atores negros.  Culto, o Dr. Percival acaba flertando com a irmã de uma paciente, que é branca e casada.  

Outros livros, como os que eu citei no parágrafo acima, falaram que a censura não gostou do casal, porque era tabu – e os exemplos neste caso são muitos – a representação do adultério em novelas.  A censura reclamava, impunha limites, a igreja católica dava em cima e muitos fãs também se manifestavam contra.  Enfim, o romance não vingou. Costa não leva em consideração a questão do adultério, a meu ver o determinante, e levanta um ponto interessante, não teriam rejeitado o romance por não ser um casal pobre.  Daí, ele cita outros casais interraciais, todos com homem negro, mulher branca, anteriores.  O traço comum é que eram casais pobres.  Será que isso pesou?  Não sei, mas seria algo a se discutir com base nas cartas recebidas, se elas ainda existirem.

Lucélia Santos e Edwin Luisi em Escrava Isaura
Falando em pontos falhos.  O autor repetidamente deixa de explicar coisas ao largar frases que terminam com “não funcionou/não deu certo por vários motivos”.  Ora, quais  motivos?  Ainda que elucubrações do autor, seria importante lê-las, ou que fosse mudada a estrutura da frase.  Outro ponto um tanto decepcionante se refere a citação, mais que conhecida, da censura à palavra “escravo” na novela Escrava Isaura.  Sim, podem rir.  O autor, Gilberto Braga, já falou disso várias vezes em entrevista, comentei inclusive o livro de entrevistas A Seguir Cenas do Próximo Capítulo..., aqui no blog, e colocou em sua minissérie Anos Rebeldes a tal situação surreal usando uma das personagens que era novelista.  Fábio Costa fala da censura e não diz que na cabeça do censor, falar de escravidão era algo feio, que deveria ficar no passado, e que poderia produzir idéias subversivas na cabeça das pessoas, se elas associassem escravo com operário, exploração e por aí vai.  Era preciso explicar, porque a piada é boa.  

Aliás, as trapalhadas da censura são um caso sério.  O autor citou um caso obscuro de uma novela de 1965, Ainda Resta uma Esperança, na qual a censura vetou o nome original da novela, As Desquitadas, interveio de muitas formas, mas deixou passar uma menção clara à aborto. Segundo Costa, uma das protagonistas interrompe a gravidez, ou isso é sugerido em diálogo, porque estava se separando e não queria ter que criar o filho do ex-marido.  Isso seria muito forte hoje, aliás, não pensem que estou falando que há evolução de usos e costumes, mas a questão era tabu e continua sendo, só que, agora, com uma militância mais agressiva, imagina em 1965?  

Janete Clair, "Nossa Senhora das Oito"
As loucuras da censura, aliás, deveriam ser um inferno para os autores. Cenas cortadas, capítulos desfigurados, novelas inteiras embargadas, Janete Clair convocada para criar uma novela que pudesse substituir às pressas uma que foi proibida.  Não pode divórcio, não pode adultério, não pode gravidez na adolescência, bandido popular tem que morrer... Ainda assim, Dias Gomes tentava driblar de uma forma espetacular: uma cena cortada por um censor, reaparecia em outro capítulo. Vai que o censor não é o mesmo?  Vai que passa?  E, às vezes, passava mesmo.

Agora, censuras do regime, a gente até entende.  Mas e as rejeições do público?  O caso mais gritante é o de Torre de Babel, de Sílvio de Abreu.  Na explosão do shopping foram embora o casal de lésbicas, a velha ranzinza cadeirante, o jovem drogado, o pai que transou com a esposa do filho... Muita gente indesejável!  E a pressão foi do público.  Eu vi a sequência e lembro em detalhes.  Agora, o autor fala bastante de Torre de Babel, mas esqueceu que entre as remodelações para tornar a novela mais aprazível houve a transformação do ferro-velho, lugar soturno, sujo, feio e realista, em um bar temático colorido.  Aliás, foi isso que fizeram, também, com a cidade de A Padroeira, que o autor cita nas intervenções, porque foi caso notório, mas não detalha como em outros casos.  Aliás, em alguns momentos o livro é excessivamente detalhista, em outros, passa batido pelos casos.

Torre de Babel e sua explosão higienista.
O autor comete um erro ao incluir Ana Raio e Zé Trovão, da Rede Manchete, no capítulo das novelas que sofreram intervenções, afinal, ele não cita quais seriam e eu, que fui obrigada a assistir a novela pelo bem da unidade familiar, sei que apesar de chata, de não dar o audiência que a emissora precisava, e com história rala, ela seguiu sem problemas até o seu fim.  Na verdade, Ana Raio e Zé Trovão não deveria aparecer no livro.  Agora, outras novelas que sofreram intervenções, ele ignorou, isso sem falar de Desejo Proibido, de Whalter Negrão, que foi encurtada e nem citada está.
  
Em O Direito de Amar, de Whalter Negrão, uma das minhas novelas favoritas, o vilão, o terrível Sr. de Montserrat (Carlos Vereza) caiu no gosto popular e ganhou um monte de fãs que o queriam com a mocinha, Rosália (Glória Pires), que havia sido obrigada a casar com ele para salvar o pai de suas dívidas.  A ordem foi aumentar as vilanias da personagem para tentar reverter a situação, afinal, tínhamos que torcer pelo mocinho, Adriano (Lauro Corona), que era o filho do tal vilão.  Já em Sinha Moça, a primeira versão, Benedito Ruy Barbosa queria Giulia Gam, uma jovem atriz em ascensão, como protagonista, mas a Globo lhe impôs Lucélia Santos.  Isso está no livro A Seguir Cenas do Próximo Capítulo, que consta na bibliografia do autor.  Por qual motivo omitir algo que mudou, efetivamente, a cara de uma novela inteira?

Sem Lucélia Santos, Sinhá moça seria outra novela.
A outra omissão, eu tempero com elogios.  A parte em que o autor fala de Os Gigantes, que periga ser uma das novelas mais marcantes da TV brasileira, afinal, fala de eutanásia, homossexualidade (*aqui a censura vetou e a coisa foi abortada*) e termina com a mocinha e suicidando, foi uma das melhores do livro.  O autor, por exemplo, fala de todos os problemas de Lauro César Muniz com a Globo, das intervenções em sua novela, que depois o autor admitiu que ele se excedeu, também.  Foi demitido, aliás.  Fábio Costa esqueceu de falar de algo importante aqui, Benedito Ruy Barbosa foi convocado para terminar a novela, se recusou e demitiu-se em solidariedade ao colega.  Está em A Seguir Cenas do Próximo Capítulo, que tem entrevistas dos dois.  A novela foi terminada pela estreante Maria Adelaide Amaral e por Walter George Durst. 

O fato é que ler um livro como Novela: Obra Aberta só me faz pensar no quanto nossas novelas já foram criativas, especialmente, nos anos 1970.  Do quanto ousaram, mesmo driblando a censura e outras resistências.  Do quanto, em muitos aspectos, somos mais conservadores hoje, seja o público, seja as emissoras.  E, algo importante a escrever, se este livro saísse uns seis meses depois, seria incluída a trágica morte de Domingos Montagner, protagonista da atual novela das nove da Globo, Velho Chico.  Enfim, para quem se interessa por telenovela brasileira, Novela: Obra Aberta e Seus Problemas pode ser uma leitura interessante.  Tem problemas, mas tem grandes qualidades, também.  Talvez seja um ensaio para outro livro melhor do autor, quem sabe?  Para quem se interessar, o preço de capa é 50 reais.  É possível encomendar nas grades livrarias.