Ontem fui assistir Círculo de Fogo junto com meu marido. A sessão era normal, sem 3D, e legendada. Como foi no geral uma tarde agradável, não tenho motivos para reclamar de ter que me deslocar para o Pier 21, shopping muito acolhedor, mas que fica relativamente longe de casa. Obviamente, deveria ter seguido o meu primeiro feeling e escolhido outro filme ou ficado em casa, mas estava incomodada pelo zum-zum-zum em torno da personagem Mako Mori, de um texto que me mandaram que reputava Pacific Rim como um “filme feminista” (*Há!*) e a tal história de que as lutas dos robôs eram espetaculares assim como seu design. Bem, tudo balela. Círculo de Fogo não é ruim, deixo esse rótulo para Prometheus, mas é um filme fraco, cheio de clichês e que aproveita muito mal seu grande chamariz, os mechas. Eu não troco meus velhos Spectreman e Ultramen por Círculo de Fogo com toda a sua tecnologia, porque falta algo muito importante ali: alma e coração.
Círculo de Fogo começa explicando dois termos: kaiju, monstro em japonês, nome dado às criaturas que apareceram de repente e atormentam a humanidade; e jaeger, caçador em alemão e nome dados aos robôs que os combatem. Em 2013, várias cidades às margens do Oceano Pacífico são atacadas por monstros. Eles promovem destruição em massa e seu sangue e fezes contaminam o ambiente. Governos da região decidem se juntar e patrocinar o Projeto Jaeger: robôs gigantes são construídos e controlados por duplas de pilotos em conexão neural. Após os primeiros reveses, os pilotos de jaeger começam a derrotar regularmente os kaiju, tornando-se verdadeiros heróis.

2020, os irmãos Becket pilotam Gipsy Danger em mais uma missão, eles são uma das melhores duplas de pilotos jaeger. No entanto, o monstro desta vez é maior do que de costume e a tragédia acontece, o robô é destruído e um dos irmãos morto. Raleigh (Charlie Hunnam), o sobrevivente, decide se retirar do serviço. Cinco anos depois, a ameaça kaiju parece maior do que nunca, mas os governos do Pacífico decidem extinguir o Projeto Jaeger e investir em grandes (*e ineficientes*) barreiras de contenção. O que sobrou dos jaeger – somente quatro robôs – está em Hong Kong e o Marechal Stacker Pentecost (Idris Elba) tem poucos meses para mostrar que eles ainda são importantes e que seu plano de destruir a fenda de onde saem os monstros é válida. Nesse intuito, ele decide ir atrás de Raleigh e convencê-lo a pilotar novamente. Concomitantemente, sua filha de criação, Mako Mori (Rinko Kikuchi), precisa convencer o Marechal de que ela é a melhor escolha para pilotar Gipsy Danger junto com Raleigh.
O filme Círculo de Fogo é cheio de referências aos tokusatsu, seriados live action japoneses, e aos animes. Quando é dito que a poluição e as transformações climáticas tornaram o ambiente terrestre novamente aceitável para os monstros, trata-se de um elo direto com Spectreman, meu seriado japonês favorito, só para citar um exemplo. É possível ver referências a Godzilla, Evangelion, Robô Gigante, aos animes clássicos de robôs de Go Nagai, aos seriados com patotinha – como Changemen, mas que os novinhos devem identificar aos Power Ranger, e por aí vai. Eu certamente perdi uma parte considerável das menções carinhosas, pois efetivamente, não me interesso por tokusatsu faz muito tempo e os animes do Go Nagai com seus robôs impossíveis e trilhas sonoras espetaculares, morreram quando o primeiro Gundam impôs uma nova tendência para o gênero. Só que eu sei reconhecer uma boa luta de robôs, um bom drama e isso Pacific Rim não tem.

Toda primeira parte do filme é quase perdida com muita falação e temos somente duas lutas completas durante mais de duas horas de filme. Se eu contar com a primeira, curta e trágica, já que o irmão do protagonista morre, temos três. Eu fui para o cinema querendo ver os robôs e lutas dramáticas, já que houve toda a falação sobre a homenagem aos clássicos japoneses, só que tudo foi previsível, sem emoção, com frases clichê, como Mako sacando a espada do robô – até então desconhecida – e berrando “Pela minha família!” e matando o monstro. Mas tudo muito sem sal, corrido, sem aquele dramalhão que os japoneses sabem colocar neste tipo de seqüência. Mas voltarei para Mako daqui a pouco. Achei uma verdadeira ofensa a forma como os jaeger chinês e russo foram destruídos. Eles não lutaram, foram simplesmente destroçados. Se os russos – pilotados de um casal que parecia saído dos filmes de gangue ou bárbaros dos anos 1980 – eram os mais experientes em serviço, dessem a eles um fim digno. Se os chineses que eram o único caso de pilotagem tripla – sintonia fina entre trigêmeos –, se eram tão geniais, que mostrassem a que vieram. Nada disso, tudo foi rápido e sem nenhuma emoção. Pá-Pum! E sobrou somente o jaeger australiano, mesmo assim, incapacitado.
Enquanto isso, comendo o tempo que poderia ser investido em lutas de robô, um tempão do filme foi perdido com a exibição de testosterona e pouco cérebro do piloto australiano Chuck Hansen (Robert Kazinsky). E nesse ponto, justiça seja feita ao herói, Raleigh não é o machão típico, não entra gratuitamente na pilha e consegue ser simpático. Já Hansen-filho – o pai pilota junto com ele – incorpora todos os clichês do machinho revoltado que os americanos adoram inserir em seus filmes. Outro clichê – dessa vez compartilhado pelo herói – é o do piloto que quebra as regras. Ninguém nesses filmes americanos consegue ser herói e disciplinado e profissional ao mesmo tempo.

Outro clichê que já se tornou irritante é o chefe negro. Gosto do Idris Elba, ótimo ator, bonitão, com uma voz espetacular, mas vamos combinar que chefe negro é algo que os americanos colocaram em seus filmes lá nos anos 1980, especialmente o chefe de polícia negro, dentro daquela coisa das cotas, e arrastam até hoje. Por que não colocar um oriental? Um latino? Uma mulher? Ou, melhor, porque não deixar o chefe caucasiano e colocar o piloto-protagonista negro (*ou latino, ou oriental, ou...*)? Claro que não! Aí não pode! Já basta a japonesa pilotando a robô protagonista. Sim, se vocês prestarem atenção, Gipsy Danger é a única robô-menina do grupo de quatro, garantindo as cotas.
Voltando ao design dos robôs, antes de passar para assuntos mais indigestos, eu mal consegui vê-los. Os japoneses em seus seriados gostavam de colocar as lutas em plena luz do dia, mesmo nos animes é assim. Você via os robôs, os golpes, conseguia observar os detalhes muito bem. Já em Círculo de Fogo tudo é muito, muito escuro e as lutas são frenéticas, rápidas, mas sem a dramaticidade que os japoneses conseguem imprimir. Vemos os robôs, especialmente o russo e o chinês, de relance, nunca de uma forma detalhista. E eu fico imaginando como conseguiram apreciar tanto o design mecânico. Fotos de produção? Só assim mesmo. Meu marido, que achou Círculo de Fogo um lixo quase completo, ficou pontuando as incoerências físicas do filme, do guarda-chuva de Mako, que não balançava quando perto do helicóptero grandão pousando, até o reator nuclear, passando pelo navio usado como maça e que não se partiu. Sou muito menos exigente, e o que mais me ofendeu foi colocarem meia dúzia de micro-helicópteros para carregarem os robozões. Se os Evas precisavam de um grande avião, imagina os jaeger? Na dúvida, olhem só o infográfico abaixo.

Fora isso, temos o clichê básico dos cientistas geniais e doidos. Ambos brancos (*claro*), com sobrenomes alemães ou judaicos (*Gottlieb e Geiszler*), e sempre com picuinhas entre si. Coisa velha, já vista, batida e pisada. Todo cientista (*ou nerd*) é doidinho, se veste mal, fala engraçado... Ai... Ai... Devo celebrar Pacific Rim por causa disso???? Até houve uma boa sacada em relação às teorias dos dois. A união neural com o cérebro do kaiju e o que se seguiu, com uma seqüência em Hong Kong, que me lembrou a história do Profeta Jonas, e não falo da personagem de Ron Perlman ser engolida, mas de todo mundo pagando o pato por causa do “pecado” de um homem só, foi bem razoável. Não posso entregar as teorias dos dois cientistas, já que isso seria um spoiler grande demais, mas foi meio absurdo que ambos, ou um deles, não morresse no processo de união neural com a criatura. Falando em união neural, se um piloto lia o pensamento do outro, devo considerar que a vocalização dos golpes deva ser referência carinhosa aos animes e live actions nos quais as personagens costumam gritar os golpes ou foi falha de roteiro mesmo? Vou dar um desconto e ficar com a primeira opção...
E chegamos ao ponto principal do texto. Eu fui assistir Círculo de Fogo, principalmente, porque um leitor do blog me enviou o link para o texto The Mako Mori Test: 'Pacific Rim' inspires a Bechdel Test alternative. Enfim, ao que parece, e isso para mim só se explica por carência mesmo, criou-se a partir do Tumblr a proposta do Mako Mori Test como um índice de feminismo em um filme quase em oposição ao Bechdel Test, que eu uso sempre neste blog para estabelecer o índice de representatividade feminina em um filme. O tal “Mako Mori Test” compreenderia três critérios: a) pelo menos uma personagem feminina; b) que tivesse seu próprio arco; c) que não seja para suportar a história de um homem (*normalmente o herói*). A autora do texto, Aja Romano, parece não considerar nem o Bechdel Test, nem o Mako Mori Test como indicativos de que um filme é, ou não, feminista. Entretanto, parece que outras pessoas não pensam assim.

A Bechdel Rule não foi proposta para medir se um filme era feminista, mas, simplesmente, e dentro de um contexto satírico (*quadrinho aqui*), apontar que boa parte dos filmes produzidos em Hollywood não tinha nenhum compromisso em representar minimamente as mulheres (*vide video da Anita Sarkeesian sobre a questão*). E há filmes que cumprem a Bechdel Rule e são indesculpavelmente machistas. Indo para Círculo de Fogo, além dos estereótipos raciais variados, a película não preenche Bechdel Rule. Temos um número enorme de figurantes mulheres. E são somente isso, figurantes. A piloto russa, mal fala, e quando o faz é na cena de sua morte. Se houvesse algum interesse em promover mínima representatividade, ela teria maior destaque ou um dos cientistas poderia ser uma mulher... Não, acho que, não, porque mulheres cientistas normalmente ou são sexy bombs com decotões e roupas justas (*vide Wolverine, que não resenhei ainda*) ou a caricatura da feminista mal humorada, prestando-se pouco às piadinhas rasteiras que o filme promove com os dois homens da ciência. O japonês do controle poderia ser uma mulher, basta lembrar das produções japonesas live action e animadas, mas não é. Ser um oriental com peso na história, já cumpre a sua cota. Estabelecidos os pontos, é Mako Mori que está no filme para cumprir todos os possíveis papéis femininos dentro do filme. Querem ver?
Ela é a filha do chefe durão; ela é o tênue interesse amoroso do herói (*olhares, cena da camisa, e por aí vai*); ela faz as vezes de secretária/braço direito competente do chefe durão; e, sim, ele é a mulher que consegue mostrar que pode, apesar de emocionalmente instável, pilotar o jaeger. Eu entendo a fascinação pela personagem, dada a indigência de papéis femininos com alguma representatividade em filmes de ação hollywoodianos, mas não posso endossar as opiniões que superestimam a importância da personagem para além do próprio produto, tornando-a quase um ícone feminista. Em Círculo de Fogo, Mori acaba sendo uma personagem que carrega um peso enorme e é, também, um estereótipo racial. Sua modéstia, seus olhos baixos, seu excesso de cortesia, a aparição com o guarda-chuva, tudo me remete aquela imagem submissa das mulheres japonesas que o Ocidente adora perpetuar.

Junte-se a isso que, ainda que ela tenha sua própria linha de história, ela quer ser um piloto para vingar sua família. Um homem poderia agir assim, também, no entanto, o herói não parece muito interessado em vingar seu irmão, mas em cumprir a missão e salvar a Terra. Sabemos que Mori é capaz, ainda que aquela cena de luta tenha sido mais uma das enrolações e competente, mas será mesmo que ela age por interesse próprio? Não me pareceu. Fora isso, ela se mostra vulnerável e frágil, precisando ser salva pelo herói. E o mais curioso é ver gente achando o máximo que não tenha rolado beijo no fim, como se isso fosse destruir a personagem, como se ser assexuado fosse sintoma de força. Olha, depois de toda aquela seqüência final, que pedia o sacrifício do herói, o mais lógico seria que os dois se beijassem. Ou será que sugerir que a mocinha tenha sexualidade ou sinta tesão pelo herói e vice-versa deporia contra a sua capacidade como piloto? Por favor...
Não quero cair na necessidade da personagem feminina forte (*Strong Female Characters/SFC*) ter o dever de ser feita de aço, perfeita, só quero pontuar que Mako Mori estar sendo supervalorizada com base neste modelo, quando não o preenche. Pior ainda, a meu ver, é quererem estabelecer um Mako Mori Test para medir o quão feminista um filme que só tem uma personagem feminina – normalmente um SFC – em um elenco quase que integralmente masculino. Acho que precisamos exigir mais do que isso e sugiro como leitura o excelente artigo I hate Strong Female Characters.

O que quero dizer é que é possível gostar de Mako Mori sem tentar superestimar sua importância para além do Círculo de Fogo. Só não venham cair nessa balela de testes para medir feminismo em filmes; o Bechdel Test não serve para isso, o Mako Mori Test, muito menos. Achar o filme em si legal e vibrar com ele, também, é direito seu. Eu esperava um tiquinho mais de Guilhermo Del Toro a julgar pelo frisson que o filme causou em certos grupos de fãs. Aliás, teria sido melhor contratar uns japoneses para cuidarem das cenas de lutas com robôs, eles fariam melhor, aliás, já fazem muito melhor com menos recursos faz quatro décadas. Sei que não era o público alvo de um filme como Círculo de Fogo, mas não vi reações apaixonadas dentro de uma sala de cinema cheia de adolescentes e homens. O filme poderia ser muito melhor e até serve de alívio que as platéias norte americanas não tenham dado o retorno que os produtores esperavam, pois ou não teremos continuação, seja prequel ou seqüência, ou os envolvidos farão uma autocrítica em relação à produção. É isso. Da próxima vez, sigo meu impulso inicial e não deixo a curiosidade me pegar.